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A privatização da Amazônia – e de quem nela habita

Governo inclui reserva que abriga o território Mossaco – onde há registro de índios isolados – em programa que privatiza a preservação da floresta. Condição exigiria conhecimento especializado e consulta aos povos, que foram ignorados

Por Antonio Oviedo, Fany Ricardo, Rafael Pacheco e Tiago Moreira

Reserva Biológica (Rebio) do Guaporé foi incluída, no último mês, no programa Adote Um Parque, do Governo Federal. Nesse programa, as empresas “adotam” Unidades de Conservação e passam a se responsabilizar por elas. Os investimentos, que variam de R$ 50 para empresas nacionais a R$ 70 por hectare para estrangeiras, envolvem ações de monitoramento, prevenção e combate a incêndios florestais e desmatamento ilegal, infraestrutura e manutenção das UCs.

O Programa é lançado em um momento em que o Ministério do Meio Ambiente se exime da sua própria responsabilidade. Desde que assumiu, Ricardo Salles tem desestruturado o MMA, o Ibama e o ICMBio com cortes orçamentários, redução de funcionários e diversas desregulamentações (veja aqui). Só por isso, o programa Adote Um Parque levanta questionamentos: por que empresas privadas deveriam assumir uma função que o próprio Estado não está cumprindo?

Mas, no caso da Rebio Guaporé, a questão é mais dramática. A reserva tem 409.579 ha sobrepostos à Terra Indígena Massaco, território homologado (que passou pela última etapa de demarcação) e que conta com um registro de povo indígena isolado confirmado pela Funai. Os povos indígenas isolados são grupos de indígenas que não têm contato com outros indígenas e não indígenas. Tiram da floresta tudo o que precisam para viver, e sua vulnerabilidade é ainda maior que a dos indígenas contatados, sobretudo em tempos de pandemia.

A concessão de Terras Indígenas para a iniciativa privada é inconstitucional, e fere o artigo 231 da Constituição. As TIs são de usufruto exclusivo dos indígenas. São terras da União, mas que só podem ser utilizadas pelos povos indígenas. O setor privado não pode se apropriar delas por nenhum mecanismo.

Mapa mostra a sobreposição dos dois territórios

Sem ferir a lei, o governo poderia conceder apenas os 207.721 hectares da Rebio que não se sobrepõe à TI. Mesmo assim, não existem fronteiras na floresta, e nada impede que um indígena isolado, que não conhece os limites impostos pela nossa civilização, circule também por outras áreas da Rebio. Qualquer ação nesta Unidade de Conservação exige um acompanhamento minucioso e um conhecimento técnico profundo para lidar com a frágil situação desses indígenas.

Não é lógico nem coerente, tampouco cientificamente defensável, considerar neste novo programa governamental UCs em sobreposição com TIs sem a devida consulta prévia às organizações que representam os povos indígenas, tais como a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), e sem o acompanhamento da Fundação Nacional do Índio (Funai).

O Estado brasileiro tem a responsabilidade legal pelo monitoramento e proteção das UCs, compreendendo prevenção e combate a incêndios florestais e desmatamento ilegal, assim como a gestão da infraestrutura e manutenção dessas áreas protegidas. Entretanto, a iniciativa do governo federal de transferir tal responsabilidade para a iniciativa privada pode não garantir nem os recursos necessários, nem os critérios técnicos para a efetiva implementação das medidas sem incorrer em riscos a este povo indígena isolado da TI Massaco.

A seleção de uma área frágil como essa evidencia a falta de clareza do Ministério do Meio Ambiente na própria concepção do programa e levanta riscos para os isolados que vivem nessa área. É urgente que essa unidade de conservação seja retirada deste programa considerando todos os riscos que as intervenções previstas trazem aos povos indígenas e para a integridade de seu território.

Veja em: https://outraspalavras.net/outrasmidias/a-privatizacao-da-amazonia-e-de-quem-nela-habita/

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