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”A velha toupeira de Marx está logo abaixo da superfície”

Noam Chomsky fala sobre seu novo livro, a tentativa de golpe no Capitólio, a inquietação de 2020, e as perspectivas de progresso com Biden

Por Noam Chomsky e David Barsamian

A política estadunidense recentemente foi perturbada por crises convergentes, desde a pandemia, passando por levantes sobre justiça racial até a insurreição no Capitólio em 6 de janeiro. Quais são as perspectivas para a política progressista com a nova administração Biden? Noam Chomsky fala sobre clima, raça, imigração e revolução nessa versão editada de uma conversa de rádio entre o linguista e o anfitrião da Alternative Radio, David Barsamian, conduzida em 15 de março desse ano, no Arizona. Estabelecida em 1986, a rádio é um programa semanal premiado de uma hora que fala sobre relações públicas e é oferecido gratuitamente para estações públicas de rádio. Seus arquivos contam com uma das maiores coleções mundiais de conversas e entrevistas de Chomsky.

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David Barsamian: Você tem um livro novo, Consequências do Capitalismo: Produzindo Descontentamento e Resistência, co-escrito por Marv Waterstone, seu colega da Universidade do Arizona. É baseado no seu curso “O que é a política?” no qual você foi professor adjunto. Fale mais sobre ele.

Noam Chomsky: Basicamente é um registro expandido dos cursos que nós viemos concedendo nos últimos cinco anos, tanto para estudantes quanto para a comunidade. As palestras são divididas em séries. Começamos com perguntas sobre a fundamentação do modo como sabemos e acreditamos nas coisas. Como o senso comum hegemônico gramsciniano é imposto? Como o consentimento é produzido, para tomar emprestada a frase de Walter Lippmann? Então, vamos para áreas particulares, começando com as mais importantes para sobrevivência – militarismo e guerra nuclear, destruição ambiental – e partimos daí para uma variedade de questões domésticas: resistência aos movimentos sociais, o que podem alcançar, como são tomados os esforços para controlá-los. Trazemos palestrantes ativistas semanalmente para descrever o que eles fazem, quais tipos de problemas enfrentam e que tipos de oportunidades existem. E atualizamos essas palestras a cada ano. Tem sido uma experiência bem vivaz.

DB: Você escreve no prefácio, “A espécie sobreviverá? A vida humana organizada sobreviverá? Essas perguntas não podem ser evitadas. Não tem como ficar à margem.”

NC:
Querendo ou não, isso é um fato. É essa geração que vai decidir se a sociedade humana continuará de alguma forma organizada, ou se alcançamos limites irreversíveis, e nos desmembraremos em total catástrofe. A mesma questão permanece em relação à crescente ameaça das armas nucleares: simplesmente não há alternativa para além da decisão imediata. E temos outros problemas. A pandemia vai, de alguma maneira, ser controlada com um enorme e desnecessário custo sobre as vidas, mas temos outros problemas vindo em nossa direção. E eles podem ser até mais sérios a menos que tomemos medidas para nos prepararmos – tanto no trabalho científico quanto no cenário social. Então, teremos outros problemas com relação à sobrevivência de outras espécies – não somente a espécie humana. Estamos rapidamente destruindo outras espécies em uma escala incrível, que não é vista há 65 milhões de anos. E agora está acontecendo muito mais rápido do que naquela época. É o que chamamos de quinta extinção. Estamos agora em meio a sexta extinção.

DB: Um dos tópicos que você discute no livro é a conexão entre o filósofo iluminista do século 18 David Hume e o pensador marxista do século 20 Antonio Gramsci. Qual é essa conexão?

NC:
Hume foi um grande filósofo. Ele escreveu um ensaio importante, Os Primeiros Princípios do Governo (1741), um dos textos clássicos sobre o que chamamos agora de filosofia política ou ciência política. Ele abre seu estudo levantando um questionamento. Ele está surpreso em ver a “facilidade” com a qual as pessoas se subordinam aos sistemas de poder. Isso é um mistério, porque são as próprias pessoas que detêm o poder. Por que elas se sujeitam aos mestres? A resposta, ele diz, deve ser o consentimento: o mestre obtém êxito no que chamamos agora de consentimento produzido. Mantem o público na linha de acordo com sua própria crença de que eles devem se subordinar aos sistemas de poder. E ele diz que esse milagre ocorre em todas as sociedades, independentemente do nível de liberdade ou de brutalidade.

Hume escrevia na esteira da primeira revolução democrática, a Revolução Inglesa da metade século 17, que levou à criação do que chamamos de constituição britânica – basicamente, de que o rei seria subordinado ao Parlamento. O Parlamento na época era representado por mercadores e produtores. Adam Smith, amigo próximo de Hume, escreveu sobre as consequências da revolução. Em seu livro famoso A Riqueza das Nações (1776), ele apontou que os agora soberanos “mercadores e produtores” são os verdadeiros “mestres da humanidade”. Eles usaram seus poderes para controlar o governo e garantir que seus próprios interesses fossem bem cuidados, independentemente da severidade do efeito deles no povo inglês – e até pior, nas pessoas que são sujeitas ao que ele chamava de “injustiça selvagem dos europeus”, se referindo principalmente ao comando britânico na Índia.

Um ano antes da publicação de A Riqueza das Nações, eclodiu a Revolução Americana. Uma década depois, a constituição americana foi formada, em um processo bem parecido com o que aconteceu no primeiro levante democrático. Que foi apresentado como um conflito entre o rei e o Parlamento. E que terminou, como eu disse, com o rei sendo subordinado ao Parlamento, a classe ascendente de mercadores e produtores.

Mas essa não é a história toda. Também havia o público em geral, que não queria ser governado pelo rei ou pelo Parlamento. Foi um período panfletário. Trabalhadores itinerantes e pastores alcançavam boa parte do público comum. Seus panfletos e conversas exigiam que fossem comandados por camponeses, que sabiam o que as pessoas queriam, e não por soldados e cavalheiros que somente desejavam oprimir a população. Eles exigiam acesso universal à saúde e à educação e muitas outras coisas. Mas foram eventualmente derrotados. Hume e Smith ambos escreveram após a vitória dos mercadores e produtores na Grã-Bretanha – não somente sobre o rei, mas sobre o público em geral.

Isso foi reconstituído na constituição americana, como documenta Michael Klarman em seu livro The Framers’ Coup (2016). O povo queria democracia. Os formuladores – homens ricos, quase metade composta por donos de escravos – queriam evitar a ameaça à democracia, enquanto homens de “melhor qualidade”, como se autointitulavam durante a primeira revolução democrática. Não levou muito tempo para que James Madison percebesse o que Smith percebeu antes. Em 1791, ele escreveu uma carta ao seu amigo Thomas Jefferson em que lamentava o colapso do sistema democrático que ele esperava ter estabelecido – não tanta democracia, mas pelo menos alguma. As instituições financeiras da época, lamentou Madison, haviam se tornado a “ferramenta e tirania” do governo. Elas trabalhavam para o governo, mas também o controlavam, trabalhando em prol de seus próprios interesses.

Muitos dos mesmos problemas existem hoje. A versão gramisciniana dá conta dos mesmos princípios em termos modernos. E muitos dos mesmos problemas surgem. Então, sim, há uma conexão.

Saiba mais em: https://www.cartamaior.com.br/?/Editoria/Politica/-A-velha-toupeira-de-Marx-esta-logo-abaixo-da-superficie-Parte-I/4/50533

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