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Cabeça e Estômago: como é sobreviver nas ruas em SP

Em 2019, 25 mil pessoas viviam em situação de rua – e haviam milhares de imóveis ociosos. Invisíveis, violentadas, psicologicamente massacradas. Um universo de histórias e traumas, à busca de proteção no centro da cidade que tenta apagá-las

Por Jeniffer Gomes, Isabelle Raymundo, Luana Gonçalves e Leonardo Siqueira

Cabeça

Tarde de segunda-feira, Dia dos Mortos no bairro da República. Um grupo de ciclistas pedala chacoalhando as braçadeiras enquanto viram o guidão de leve para não pegar na idosa que obstrui o caminho, no chão e coberta da canela a cabeça, que gira para acompanhar a velocidade das bicicletas. No outro lado da rua em frente ao mercado, um grupo guarda suas compras nas mochilas enquanto caminham em frente a um homem, uma mulher, um bebê e papelões. Mas sem perder o passo vão em direção à praça Roosevelt, e no caminho, ali na esquina entre a Martins Fontes e a Avenida São Luís, uma moradora de rua vende livros.

Gil Brasil cumprimenta a todos que passam em frente aos seus livros e agradece depois de começar um monólogo quando o cliente pergunta se é de graça.

Em São Paulo, o Censo da População em Situação de Rua de 2019 estimou que quase 25.000 pessoas estão sem um teto, e há 1.385 tetos ociosos, imóveis abandonados ou subutilizados segundo o Plano Municipal de Habitação. O ócio é o que se vende para a população paulistana sobre quem mora na rua. O desemprego é a imagem da negação ao trabalho. Na organização que estamos inseridos, ter um ofício é fazer parte da estrutura e do sistema identitário. Abdicar desse sistema deixa o cidadão mais distante do seu poder cívico, então após perder o posto o ser humano começa a se ver sem uma função social assim como diversos imóveis na cidade.

“Eu tinha um cartaz aqui, que me ajudava a disfarçar as condições né, de morador de rua, pra não dar tanta nó em goela. O pessoal acha que a gente é morador de rua, mas é vagabundo. Eu não tenho mais”

Gil Brasil, 51 anos, migrante do interior paulista

O Movimento Nacional sobre a População em Situação de Rua mostrou os principais motivos declarados pelas pessoas para que morassem nas ruas:’o desemprego, os conflitos familiares (50%) e o uso abusivo de álcool e outras drogas (33%).

A população em situação de rua dialoga com a sociedade para viver. Assim, os meios de exploração dessa superestrutura ficam evidentes em quem está mais vulnerável. O indivíduo é reprimido pela cultura dominante, pela sua condição social e psicológica. A desigualdade social tem forte impacto na formação de crianças e adolescentes.

“Eu cheguei em São Paulo com 11 anos fugindo do interior, perdi minha mãe com 8 anos por um câncer, muito religiosa, judia ortodoxa. Meu pai foi assassinado quando eu tinha 14 anos…”, diz Gil, que ajeita a máscara enquanto fala.

A maior cidade da América Latina se estrutura até o centro expandido e, para quem tem mais recursos e poder, a periferia paulistana é praticamente invisível pelo poder público. O êxodo rural (movimento de trabalhadores migrando para outro lugar para ter “melhores condições”) contribuiu para o grande crescimento irregular da cidade. Longe das zonas centrais, o crime organizado aparece reivindicando o poder ausente do estado, criando um grupo de influência para cada extremo de São Paulo.

Sentada em frente a Biblioteca Mário de Andrade, Gil conta quando fugiu da antiga Fundação Estadual para o Bem-estar do Menor (FEBEM), hoje Fundação CASA. Conheceu um garoto que gostou, conta ela sorrindo. Tinha ele como uma companhia. Mais tarde, a mando de um preso do Carandiru, o garoto foi queimado vivo. “Ele tinha 16 anos e eu tinha quase 15”, conta.

Um dos motivos para a população de rua de São Paulo ficar próxima ao centro se deve ao fato de ter maior “visibilidade” e recursos do que nas áreas extremas. Mesmo o acolhimento sendo quase escasso, o ser humano tem maior chance de sobrevivência perto do marco zero da capital.

Da livraria sobre a pedra tem de Mario Vargas Llosa até livros sobre revoluções, encadernados sobre lógica a exemplares de aromaterapia. Um senhor secando os livros pergunta se ela não faz o exemplar por R$ 1. Gil responde que não e explica o motivo: “o mínimo é…”. Ele se vira e segue seu caminho em direção à Câmara Municipal.

“Considera-se população em situação de rua o grupo populacional heterogêneo que possui em comum a pobreza extrema, os vínculos familiares interrompidos ou fragilizados e a inexistência de moradia convencional regular, e que utiliza os logradouros públicos e as áreas degradadas como espaço de moradia e de sustento, de forma temporária ou permanente, bem como as unidades de acolhimento para pernoite temporário ou como moradia provisória”

(Art.1º do Decreto Nº 7.053 de 23 de Dezembro de 2009).

O grupo sem moradia é um universo heterogêneo de histórias vindas de todo o Brasil que compartilham aspectos em comum, como a desigualdade. O brasileiro foi ensinado a tipificar esses grupos e ver a desigualdade como banal, a sobrevivência como ordinária, e a violência como normal.

Em 2020, a fragilidade dos conceitos neoliberais (que defendem a absoluta liberdade do mercado com pouca intervenção do estado) ficaram mais evidentes, não só pela influência na crise de 2008 nos Estados Unidos que atingiu o Brasil em meados de 2012, mas pela pandemia do coronavírus.

As alternativas políticas para a crise como a eleição do Jair Bolsonaro para a Presidência em 2018 mostram um afogamento da classe dominante no período. Essa classe possui um estado democrático de direito que é exclusivamente dela, enquanto as outras classes (dominadas) possuem um estado de exceção.

Em 2016, estudos da Oxfam mostraram que 1% da população mais rica do mundo possuía a mesma riqueza que 99% do restante. A parcela mais rica na atual organização é agente principal da causa da precariedade da situação de pessoas sem teto.

“Todos esses processos de construção do País em cima de dominação e violência são muito profundos. Acho que isso se reflete numa grande pobreza que a gente tem hoje no Brasil, e que está cada vez maior”

Beatriz Swenck, cientista social e doutoranda em Sociologia

A configuração atual de família e trabalho vieram de séculos de manutenção de um modo de vida exclusivo, opressor. A pessoa em situação de rua adota a ideia de culpabilização, que está naquela situação integralmente por escolhas que fez, que chegou aquele ponto por perder oportunidades, por não ter estudado, que é pobre por não ter usado a cabeça. O ser humano passa a se enxergar como insuficiente, e compra a ideia de ser alguém degenerado, se isola com humilhação e vergonha, se afastando dos laços familiares.

“A própria relação com o vício acaba ficando conveniente para que essa situação ocorra. Hoje para a sociedade é difícil viver com um dependente químico em casa. Isto é bastante relativo, já que alguns que foram rejeitados pela família. E tem a gravidez indesejada também”, diz Rafael Araújo, que morou na rua e hoje tem uma residência em São Mateus.

A sociedade brasileira é estruturada por laços familiares trágicos. A colonização europeia subjugou qualquer outra etnia que não fosse à própria, violentando e assassinando Tupis-guaranis, Aruaques, Caraíbas, e no que hoje seriam Luandenses (Angolanos), Beninenses, Quelimanenses (Moçambicanos) e outros.

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