Por Flavio Aguiar
Normalmente, a presença brasileira no Festival Internacional de Cinema de Berlim, conhecido como Berlinale, é bastante variada, festejada, e premiada. O Brasil costumava comparecer com algo em torno de duas dezenas de filmes, entre as centenas exibidas em toda a cidade, e todo o ano pelo menos um filme brasileiro recebia algum tipo de prêmio – sendo que por duas vezes nosso cinema foi agraciado com o prêmio máximo, o Urso de Ouro, com Central do Brasil, em 1999, e Tropa de Elite I, em 2008.
Além disto, a Embaixada Brasileira em Berlim costumava oferecer uma concorrida recepção aos cineastas, cinéfilos, jornalistas brasileiros e estrangeiros, com debates, enfim, assinalando a presença marcante de nosso cinema na capital alemã e na Europa, pois o público da Berlinale costuma vir de todo o continente europeu, além de outros também.
Este ano as coisas estão muito diferentes. Primeiro, devido à pandemia a organização do festival mudou muito. Sua apresentação dividiu-se um duas partes: a primeira, predominantemente virtual, realizada agora no começo de março, destina-se apenas aos produtores, diretores e outros profissionais do cinema, além dos jornalistas e da crítica especializada.
Outra parte acontecerá em junho, possivelmente aberta ao público, de acordo com as possibilidades. Por outro lado, a presença brasileira murchou. Desde o golpe de 2016, contra Dilma, essa presença foi minguando, em vários aspectos. Já no segundo ano do governo Temer aquela recepção na Embaixada deixou de existir, pelo temor das manifestações de protesto. Com o atual governo, e sua política de boicote às artes e à cultura, que atingiu também a Ancine, o caldo desandou.
Nesta edição, a 71a., em 2021, o Brasil está presente com três produções: “A última floresta”, sobre os Yanomami, a serie do Canal Brasil, “Os últimos dias de Gilda”, e “Se face camino al andar”, que faz alusão ao famoso verso do poeta espanhol Antonio Machado. Além destas, há uma co-produção com a Argentina, o filme “Esquí”, que se passa na região andina de Bariloche.
Ao contrário do habitual, este ano, mantido em meu confinamento caseiro, não estou cobrindo o Festival, coisa que fiz desde a edição de 2008 até a de 2020. Entretanto, por gentileza dos produtores, distribuidores e da equipe de divulgação, pude assistir ontem, 03/03, o filme “A última floresta”, ambientado entre uma tribo dos Yanomami, nas terras altas da fronteira do Brasil (estados de Roraima e Amazonas) e da Venezuela (províncias de Bolívar e Amazonas), com direção de Luiz Bolognesi.
O filme é uma obra de primeira grandeza. A paisagem e as tomadas da floresta são soberbas. A trilha sonora combina os ruídos da natureza (a chuva, as águas, os animais) com a fala e os sons dos Yanomami, seus cantos, seus rituais, suas histórias. O filme é falado inteiramente numa das seis línguas da família Yanomami. Na cópia que assisti, havia legendas em inglês.
Detalhe curioso: assim como seu território é invadido por garimpeiros, a língua dos Yanomami também é “invadida” por termos correlatos da língua portuguesa, como “garimpeiro”, “mineração”, “petróleo”. Quando os “personagens” (são Yanomamis interpretando Yanomamis) se referem a um ano, o numeral que aparece é expresso em português: “mil novecentos e oitenta e seis”, por exemplo. O detalhe mais original do filme está em seu roteiro, criado conjuntamente por Bolognesi e Davi Kopenawa Yanomami. Na verdade, são dois roteiros, fundidos num só. Um deles, o do primeiro plano, se é que se pode falar em “primeiro plano”, vai da crise do presente para o passado, recuperando a história dos Yanomami.
O outro roteiro vem do passado para o presente, e conta história dos Yanomami, desde seu mito de origem até a crise do presente. Esta crise do presente, ponto nodal que une os dois roteiros, se deve ao retorno, com o favorecimento pelo atual governo, dos garimpeiros e seus problemas, como a poluição, onde sobressai a do mercúrio, as ameaças, as armas, a sedução dos “presentes” e “benesses” da civilização, a exploração dos nativos.
No primeiro roteiro viajamos do olhar e da captação do som pela câmera em direção à história dos Yanomami, que, dentro da sua originalidade, tem aspectos de tantas outras histórias semelhantes: a vida já milenar na floresta, sua preservação, o convívio com o perigo que mora sempre ao lado, isto é, a predação das riquezas naturais e humanas pela ganância do ganho desregrado e imediato sob a bandeira da “civilização”.
Esta viagem nos leva ao encontro do segundo roteiro, que é a visão da história dos Yanomami encenada por eles mesmos, numa encenação que traz para o nosso presente toda a riqueza de seu pano de fundo mitológico (mito, aqui neste contexto, não é insulto, é menção à “história de uma origem”), que explica, a seu modo, as tensões e crises que estão sendo vivenciadas hoje.
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