Um pensador cubano sustenta: não é possível naturalizar bloqueio dos EUA contra a ilha. Mas é irresponsável tachar os que protestam de “mercenários” – ou resolver divergências por meios policiais. Saídas estão na política e ampliação dos direitos
Por Julio Cesar Guanche | Tradução: Antonio Martins | Imagem: REUTERS/Stringer
No exame da atual crise cubana, vale a pena atentar para o que diz Julio Cesar Guanche. Professor da Universidade de Havana, ele editou diversas publicações político-culturais em seu país (entre outras, Alma Mater e La Jiribilla) e foi diretor adjunto do Festival Internacional do Novo Cinema Lationoamericano. Em textos, publicados no blog La Cosa, sobressaem o compromisso com a revolução e a condenação ao bloqueio norte-americano que vai completar 60 anos.
Mas Guanche está convencido de que as dificuldades reais vividas por Cuba, e a insatisfação popular dela resultante, não serão resolvidas dividindo o país, nem acusando os que têm críticas de contrarrevolucionários. Por isso, mesmo do exterior (está se doutorando em Quito, na Flacso – Faculdade Latinoamericana de Ciências Sociais) participou dos protestos de 27 de novembro do ano passado. Após uma série de detenções, centenas de jovens artistas e intelectuais exigiram, diante do ministério da Cultura, liberdade de expressão e criação. Tiveram apoio de gente como o músico Silvio Rodriguez e dos cineastasFernando Pérez e Ernesto Daranas. Guanche escreveu sobre o episódio no site espanhol Sin Permiso(com o qual colabora frequentemente) e falou sobre ele à revista chilena Palabra Publica.
Nos dois textos a seguir, o professor e editor comenta os protestos populares do último domingo (11/7) e os fatos que os desencadearam. Suas ideias centrais: 1. Só a política, resolverá a crise – e não haverá espaço para ela enquanto o país estiver polarizado entre quem chama de “contrarrevolucionários” os que pensam diferente e quem naturaliza as tentativas de intervenção dos EUA. 2. A história de Cuba sugere que o caminho para enfrentar os dilemas atuais é expansão de direitos – tanto políticos quanto sociais – e não restringi-los. (A.M.)
I.
Só a política fará acordar o amanhã
(11/7/2021)
O que está acontecendo agora em Cuba é tão grave quanto sem precedentes.
O presidente Díaz-Canel pediu o combate, porque “as ruas são dos revolucionários”.
É verdade que a pandemia agrava várias crises anteriores e sucessivas. É verdade que existem aqueles que procuram lucrar de forma infame com os apelos à “intervenção humanitária” após o agravamento da pandemia. É verdade que neste momento a intervenção militar é convocada de Miami. É verdade que a corrente trumpista cubana celebrava a asfixia da nação, com a extensão infinita do bloqueio, ao mesmo tempo que lançava slogans à vida e à liberdade.
Mas também é verdade que em Cuba só o exército e a polícia têm armas. Um povo convocado pelo Estado e apoiado por todas as suas instituições, incluindo as militares, não é “o povo” combatendo a contrarrevolução.
É uma parte do povo, apoiado pelo Estado, enfrentando juntos um protesto social que tem uma longa incubação, causas conhecidas, demandas resolutas, urgências muito claras e necessidades profundas.
A distinção entre “contrarrevolucionários” e “revolucionários confusos” foi um esboço de reconhecer as razões legítimas do protesto. Mas o chamado a combatê-lo como a primeira solução, em vez de reunir coragem e imaginação para propor soluções políticas para o conflito; e de em seguida comprometer-se a percorrer esse caminho, foi a escolha oposta ao indispensável, já que tentou apagar o fogo ateando-lhe gasolina.
Quem crê que o governo cubano, ou os cubanos conscientemente revolucionários, são quatro gatos pingados, com cargos e regalias no governo, engana-se totalmente. Ninguém pode pensar que irão abrir mão do direito de defender tudo em que acreditam e a que dedicaram suas vidas.
No entanto, não há nada mais revolucionário do que intervir, por meio da política, no curso de acontecimentos que parecem definidos. Não há nada mais revolucionário do que procurar maneiras de resolver conflitos. Não há nada mais revolucionário do que voltar-se para a política quando apenas a guerra civil parece possível.
É muito difícil responder ao grave e ao inédito, mas não há nada mais revolucionário do que fazê-lo com respostas também inéditas. O que é inédito não é totalmente desconhecido. Sabemos, desde Tucídides, que a guerra é uma professora severa e que só a política torna possível e dá vida em comum
Há muito o cenário cubano emite sinais de que chegará a um ponto como o de agora. A grande maioria das advertências foi ignorada. Boa parte de seus autores – mesmo aqueles com propostas patrióticas ponderadas para o diálogo e o tratamento dos conflitos – foi silenciada, ou pior, sofreu represálias.
Agora só podemos perguntar como acordaremos amanhã. Sabemos que existem certezas e deveres da “defesa da revolução”. Mas o povo é uma construção plural e nunca é o inimigo. A promessa de 1959 foi “Liberdade com pão e pão sem terror”.
As causas dos levantes sociais são conhecidas, assim com consequências de uma “ordem de combate”. Mas ninguém pode calcular as consequências de um levante, nem das tentativas de contê-lo por meios policiais ou paraestatais.
Esta noite parece ser a mais longa em Cuba em décadas. Só a política nos fará acordar amanhã com algo que temos o orgulho de chamar de pátria em nossas mãos.
Veja mais em: https://outraspalavras.net/descolonizacoes/cuba-dois-textos-sobre-umacrise-incomoda/
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