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Declaração de Roma sobre a saúde, no G20: Uma mistura de hipocrisia, cinismo e indecência

Não esperávamos propostas inovadoras, mas pelo menos um sopro de mudança. Bem…. não havia respiração. Pior ainda, havia ventos fortes e feios

Por Riccardo Petrella, Roberto Morea e Roberto Musacchio | Créditos da foto: Remo Casillo/Pool/AFP

1. Em primeiro lugar, a Declaração de Roma sobre a saúde nunca se refere, nem uma vez, ao “direito universal à saúde”. Assim, confirma o que os grupos dominantes fazem há anos: apagam esse direito da agenda política mundial e com ele o princípio de que garantir a saúde de forma universal, ou seja, para todos, é uma obrigação institucional do poder público, dos Estados, e não uma opção política de magnanimidade ou compaixão pelos “pobres” por parte de líderes mundiais. Pelo contrário, a Declaraçao fala várias vezes do “acesso equitativo e acessível” aos instrumentos para a luta contra a pandemia de Covid-19 (vacinas, tratamentos médicos, diagnósticos e aparelhos de proteção individual). Ou seja, princípio e objetivo tipicamente comercial, de troca monetarizada (compra e venda) de acordo com as regras de mercado que nada têm a ver com o direito à saúde em igualdade e justiça. No mercado não há direitos, exceto à propriedade privada, e não há justiça social. Esquecer o direito universal à saúde é um ato de indecência política.

2 Nao é de se estranhar – outro aspecto-chave- que a Declaração insista que as medidas a serem adotadas nos próximos meses a fim de que todos tenham acesso às vacinas devem respeitar os tratados da OMC (Organizaçao Mundial do Comércio, organismo independente da ONU) e, em particular, os tratados OMC-TRIPs (Direitos de Propriedade Intelectual Relacionados ao Comércio). E não que estejam no marco geral da ONU e, concretamente, da Organização Mundial da Saúde (OMS, uma agência da ONU). A Declaração de Roma continua presa à primazia atribuída, também no campo da saúde, à regulamentação “global” estabelecida na lógica do comércio internacional (dominado pelos mercadores e financistas dos países mais poderosos do mundo). A Declaração de Roma volta a rechaçar a atribuição deste primado à ONU em geral, e à OMS em particular, como têm pedido uma centena de Estados, centenas de premios Nobel, científicos, personalidades do mundo da cultura e milhares de associações e organizações, incluindo os sindicatos. Aceitar o primado da ONU e da OMS implica que as normas nessa matéria sejam estabelecidas respeitando a Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948 e os tratados internacionais sobre direitos civis, sociais e políticos dos anos 70. Os signatários da Declaração de Roma têm consciência que desde 1994, ano de sua criação, a OMC tem sico x cenário de duras lutas entre a grande maioria dos Estados membros e os mais poderosos para defender o direito à vida e sua soberania econômica e social, que têm sido sistematicamente desconsiderados nos tratados da OMC.

 3 Portanto, os Estados mais poderosos do G20 afirmarem que o objetivo da luta mundial contra a pandemia é “nao deixar ninguém para trás” é um ato de hipocrisia. A realidade mostra que a estratégia de luta contra a pandemia, adotada há um ano e meio em nome do acesso justo às vacinas e em cumprimento dos tratados OMC/TRIPs, tem ajudado a deixar para trás centenas de milhões de pessoas que, desde 21 de maio de 2020, nao têm acesso às vacinas (apenas 1% da populaçao africana foi vacinada) e, sobretudo, nem à atençao à saúde em geral. Segundo a OMS, mais de metade da populaçao mundial nao recebia atençao básica de saúde em 2020 – e com a pandemia a situação piorou.

4. A Declaraçao confirma que, hoje, a solução escolhida pelos governantes é aumentar a produção de vacinas, distribuí-las e aplicá-las o mais amplamente possível, o mais rápido possível e de forma equitativa, segura e eficiente, para o benefício das populações dos países mais pobres (92 no mundo) e dos países de renda média (mais de 30). Esta opção, aparentemente razoável, é inaceitável porque implica a aceitação e manutenção do abismo e das desigualdades entre os países ricos e “desenvolvidos” do Norte, particularmente os “ocidentais”, e os pobres, os países subdesenvolvidos ou menos desenvolvidos. Dar prioridade à produção e distribuiçao de vacinas significa essencialmente manter a supremacia estrutural e o poder dos países ricos nas esferas financeira, tecnocientífica, produtiva e comercial. Significa que as empresas privadas do mundo desenvolvido continuam sendo as donas absolutas do conhecimento sobre a vida, as proprietárias das patentes, as produtoras de vacinas, as líderes do comércio internacional, as provedoras de serviços médicos e de saúde, as controladoras dos mercados sanitários, as donas da digitalização dos sistemas de saúde… Portanto, no espírito da Declaração de Roma a melhor solução prática é que os países ricos (continuem) “ajudando” os países pobres. Neste contexto, a vida e o futuro de bilhões de pessoas dependem e dependerão necessariamente da ajuda, da “caridade” e da benevolência dos ricos e poderosos . Que concepção indecente e cínica! Vamos dar um exemplo emblemático. Na última reuniao do conselho-geral da OMC-TRIPs, o representante dos Estados Unidos disse que o governo Biden concorda, “agora que foi garantido o pleno acesso às vacinas para os cidadaos estadounidenses”, em considerar formas de suspender as normas da OMC sobre propriedade intelectual a fim de que todos os povos do mundo tenham acesso à vacina. Resumindo, só resta aos países pobres esperarem para receber as vacinas e terem acesso aos demais bens de saúde que oferecem os países ricos. Ainda assim tais países devem ser reconhecidos pela COVAX como elegíveis para a ajuda dos ricos. COVAX é o mecanismo criado pelos países do “Norte”, dirigido por duas organizações público-privadas, CEPI e GAVI, para fomentar o intercâmbio de pesquisa e desenvolvimento e compra e distribuição de vacinas para o benefício dos países pobres. As vacinas adquiridas são transferidas como ajuda gratuita para os países de baixa renda e com preço reduzido para os de renda média. A COVAX tem se mostrado inadequada por duas razões principais. Em primeiro lugar, porque os países ricos e os organismos de ajuda privados, como a fundação Gates, não contribuíram como se esperava com as finanças da COVAX – ela necessitava de US$ 40 bilhões e recebeu apenas US$ 12 bilhões. Em segundo lugar, a COVAX se baseia na manutenção do sistema de patentes que torna vacinas e material médico propriedades privadas por 20 anos, dando assim – como vimos – poder de decisão política e operacional sobre a vida e a saúde a empresas multinacionais. A COVAX não tem poder político nem poder autônomo de negociação e decisão. Depende da boa vontade dos oligopólios farmacêuticos e dos Estados mais ricos.

Saiba mais em: https://www.cartamaior.com.br/?/Editoria/Saude/Declaracao-de-Roma-sobre-a-saude-no-G20-Uma-mistura-de-hipocrisia-cinismo-e-indecencia/43/50665

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