“Somos 99%”. Em 2011, debate sobre a injustiça econômica ecoou no centro do império. Reuniu juventude, ação pelos direitos civis, sindicatos, acadêmicos e artistas. Em meio à crise civilizatória, seu mote permanece central na disputa política
Por David Brooks |Tradução: Diálogos do Sul
Há 10 anos explodiu ‘Occupy Wall Street’, cuja presença física durou só um par de meses, mas cujo impacto continua retumbando pelos Estados Unidos ao mudar a narrativa política com seu famoso lema de “somos os 99%”, colocando a injustiça econômica no centro do debate sobre a democratização do país e nutrindo alguns dos movimentos progressistas sociais e eleitorais sem precedentes ao longo desta última década.
Respondendo a um apelo feito por uma revista independente ativista, Adbusters, de 20 mil manifestantes tomarem Wall Street em 17 de setembro de 2011, só uma centena de jovens respondeu. Se encontraram com uma massiva presença policial estabelecendo um perímetro de segurança de várias quadras ao redor de Wall Street, mas que em efeito logrou o objetivo dos manifestantes — sitiar o símbolo do capitalismo, a Bolsa de Valores de Nova York. Até a famosa escultura do touro de Wall Street teria proteção policial de 24 horas durante dois meses.
Ao serem impedidos de chegar a Wall Street, os manifestantes foram para o Parque Zuccottei a umas quatro quadras, uma praça a um lado da Broadway, que foi tomada e rebatizada como “Praça Liberdade”. Durante os primeiros dias instalaram uma cozinha popular, uma biblioteca, uma barraca de assistência médica e começaram a organizar fóruns. Todos os dias realizavam uma “assembleia-geral” nas quais todas as decisões eram tomadas por consenso em seu experimento de organização horizontal sem líderes.
Identificaram como sua inspiração o movimento dos Indignados na Espanha, a Primavera Árabe, as mobilizações de estudantes no Chile e reconheceram como seus antepassados imediatos o movimento altermundialista do fins dos anos 1990 — e alguns tinham como referência ao EZLN e novas expressões na América do Sul.
Ficaram assombrados ao ver que eram percebidos como uma ameaça tão perigosa que as autoridades designaram centenas de policiais e agentes para proteger-se do que era um movimento não violento e, no princípio, muito branco e de classe média. Mas suas fileiras foram crescendo e diversificando-se tanto em cor como em idade.
Nos primeiros dias, de repente apareceu uma brigada de trabalhadores do sindicato do transporte público de várias raças e etnias em coro “somos os 99%”. Com o passar dos dias, começaram a somar-se integrantes de outras organizações e movimentos, incluindo os de outros sindicatos — telefonistas, professores, eletricistas, diaristas — como agrupamentos de direitos civis, ativistas LGBTQIA+, veteranos de guerra, religiosos, anarquistas, ativistas comunitários, acadêmicos e artistas.
A mudança foi notada nas conversas e intercâmbios, nos idiomas e sobretudo no ritmo dos incessantes tambores, que agora faziam dançar.
Um cozinheiro popular dava de comer a todos de maneira gratuita, graças a donativos de todo o país. Foram coordenados projetos de difusão e comunicação, inclusive um jornal impresso de alta qualidade chamado The Occupied Wall Street Journal; foram organizados grupos de trabalho e até uma “universidade” sobre temas de todo tipo.
Apareceram e participaram líderes sociais e intelectuais e artistas de renome, entre esses Jesse Jackson, Pete Seeger, o presidente da central operária nacional, Rich Trumka, Tom Morello, Michael Moore, Naomi Klein e em outras cidades participaram Noam Chomsky e Cornel West.
Em um dos fóruns do Occupy em Nova York, Arundhati Roy declarou que “o que vocês conseguiram desde 17 de setembro… é introduzir uma nova imaginação, um novo idioma político no coração do império. Vocês reintroduziram o direito a sonhar”.
Realizavam ações diretas diárias, marchas, bailes, ações não violentas e algumas aventuras e travessuras com grande humor e produziam vídeos com nomes enganosos para difundir suas mensagens.
Ocupa Wall Street multiplicou-se e em um momento chegou a ter presença em mais de 100 cidades — desde Filadélfia a Boston, Chicago, Oakland, Phoenix, Washington e até Alasca — com diversas expressões e dimensões como em outros 82 países, incluindo brevemente no México.
O sociólogo Immanuel Wallerstein proclamou que era, em seu momento, “o acontecimento político mais importante dos Estados Unidos desde os levantamentos de 68, dos quais é descendente…”. Jesse Jackson, ao acompanhá-los declarou que os manifestantes eram “os filhos da campanha dos pobres” de Martin Luther King.
A autora e analista Rebecca Solnit registrou que foi o primeiro momento unplugged da geração que nasceu ligada aos computadores e às redes cibernéticas, porque pela primeira vez se reuniram fisicamente, podia ver-se, zangar-se, enamorar-se e organizar-se pessoalmente. Entre suas conquistas, escreveu no primeiro aniversário dessa explosão, foi “articular, clara e incontroversamente, a todo volume, que espantoso e destrutivo é o atual sistema econômico. Nomear algo é uma ação poderosa… falar a verdade muda a realidade (…) Os astutos de Ocuppy trouxeram um cavalo de Troia cheio da verdade à cidadela de Wall Street”.
Dois meses mais tarde, a polícia conseguiu reprimir e desmantelar o acampamento na Praça Liberdade, chegando com gases e equipamento antimotim e jogando no lixo centenas de livros. “Não podem desalojar uma ideia cujo momento chegou”, foi resposta em cartazes.
Dez anos depois se debate o impacto real do Occupy. Um líder veterano de diversas lutas sociais, desde o sindicalismo democrático nos anos setenta, o movimento Arco Iris de Jackson, à fundação de um partido político de esquerda, comentou ao La Jornada esta semana que se tem que reconhecer que “Occupy pôs a desigualdade sobre a mesa — eles mudaram [o debate político] sobre esse tema mais em três meses que nós em 30 anos”.
Muitos jovens que despertaram politicamente com esse movimento se somaram a uma ampla gama de novas iniciativas, desde cooperativas de trabalhadores a novos movimentos ambientalistas [ver novo apelo de Adbusters] ao movimento pelas vidas negras a novas organizações político-eleitorais, e que inclusive ganharam postos eleitorais.
De fato, vários veteranos de Occupy participaram nas duas campanhas presidenciais do socialista democrático Bernie Sanders que retomou e pôs ao centro da mensagem de seu movimento o vocabulário do Occupy de defender os 99% contra o controle antidemocrático do 1% mais rico da economia e da política neste país.
O foco na injustiça econômica, o 1% contra os 99% promovidos pelo Occupy Wall Street continua sendo um foco central da disputa política, econômica e social nos Estados Unidos 10 anos depois.
Veja em: https://outraspalavras.net/outrasmidias/dez-anos-apos-o-occupy-o-que-mudou-nos-eua/
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