Arcebispo de El Salvador, Dom Óscar Arnulfo Romero Galdámez foi assassinado no altar no dia 24 de março de 1980 por um atirador de elite treinado na Escola das Américas
Por Leonardo Wexell Severo
Em seu livro Espelhos, o uruguaio Eduardo Galeano relata como o bispo de El Salvador, Dom Óscar Romero, buscava uma audiência com o papa João Paulo II e da negativa recebida. De Romero entrando na fila da congregação para contar sobre a gravidade da situação vivida naquele pequeno país da América Central nas mãos da ditadura militar. E de um João Paulo II respondendo: “Não exagere, senhor arcebispo!”. A narrativa também está registrada no diário de Romero com a data de segunda-feira, 7 de maio de 1979.
Como lembra o jornalista argentino Fernando Bossi, na luta pela liberação do jugo imperial, El Salvador vivia um banho de sangue, com milhares de vítimas. Somente nos meses de janeiro e fevereiro de 1980, o Exército e os Esquadrões da Morte haviam assassinado mais de 600 pessoas. “A oligarquia, apoiada pelos Estados Unidos, semeava o terror diante do avanço das forças populares”, esclareceu Bossi.
Mas Romero não se intimidava e interiorizava a perda daqueles entes queridos, e ao mesmo tempo em que escrevia em um caderno as denúncias das torturas e barbáries, apontava para todos a necessidade da resistência. Sempre e cada vez mais na homilia do domingo descrevia com ardor e empatia o que havia escutado, e se entrincheirava ao lado das testemunhas, diante de uma catedral completamente tomada por fiéis em busca de justiça. E Galeano citava a frase de Romero: “A justiça é como as serpentes: só morde os descalços”.
Da parte do Vaticano, assim como da meia dúzia de famílias de vassalos de Washington, o chumbo vinha grosso. Romero não passava de “um marxista”, “um títere”, “um manipulado por padres da Teologia da Libertação que escreviam para ele os inflamados sermões” contra a injustiça social e a repressão.
Era domingo, 23 de março de 1980, quando Romero em sua homilia dominical disse: “Eu queria fazer um chamamento, de maneira especial aos homens do Exército. E, concretamente, às bases da Guarda Nacional, da polícia, dos quartéis… Irmãos, vocês são do nosso povo. Matam seus mesmos irmãos camponeses. Diante de uma ordem de matar, dada por um homem, deve prevalecer a lei de Deus que diz: ‘Não matar’. Nenhum soldado está obrigado a obedecer a uma ordem contra a Lei de Deus. Ninguém tem que cumprir uma lei imoral. Já é tempo de recuperar e obedecer a sua consciência ao invés da ordem do pecado”. E então, se contrapondo à catástrofe humanitária em curso, Romero ressaltou que “a Igreja, defensora dos direitos de Deus, da Lei de Deus, da dignidade humana e da pessoa, não pode ficar calada ante tanta abominação”. “Em nome de Deus e em nome deste sofrido povo, cujos lamentos sobem até o céu cada dia mais tumultuosos, lhes suplico, lhes rogo, lhes ordeno em nome de Deus: Parem a repressão!”, enfatizou.
Então, no dia seguinte, 24 de março, há exatos 41 anos, um atirador de elite made in USA, treinado na Escola das Américas, formado em “contra-insurgência anticomunista”, assassinou Romero a tiros, no altar. Pelo seu significado, a ONU reconheceu a data em 2010 como “Dia Internacional do Direito à Verdade em relação com Graves Violações dos Direitos Humanos e da Dignidade das Vítimas”. Em 2015 Romero foi beatificado onde foi morto, em El Salvador. Destemido e audaz, é o primeiro Santo da América Central.
São de Santo Romero as palavras: “Fui frequentemente ameaçado de morte. Devo dizer que, como cristão, não creio na morte sem ressurreição: Se me matam, ressuscitarei no povo salvadorenho”.
O presidente do Pontifício Conselho para a Família, o arcebispo italiano Vicenzo Paglia, recordou que se “passaram mais de 40 anos desde que assassinaram o monsenhor Romero no altar, enquanto celebrava a missa porque defendia os pobres”. “Seu povo era oprimido pelo poder opressivo de poucas famílias. Ele quis defendê-las. Não tinha armas nem nada mais. Somente tinha a palavra. Com a palavra falou. O assassinaram pensando que calariam sua voz”, refletiu.
Nos tempos em que, no Brasil, uma cúpula militar vende-pátria, nos arredores de Bolsonaro, se esmera em apagar nossa memória histórica, relembrar datas como o 24 de março tem um sentido mais do que especial. É preciso manter o valor dos que tombaram e a razão pela qual tantos latino-americanos deram suas vidas pela soberania e a democracia. Combater a submissão é impedir que o negacionismo avance junto com seu senso de “justiça”.
Queriam os algozes de Romero que partisse numa viagem sem volta rumo ao vazio. Mas ele transcende, como disse Galeano, “porque os cientistas dizem que somos feitos de átomos, porém eu creio que somos feitos de histórias”.
Comente aqui