Para justificar a extração voraz de riquezas, capitalismo constrói narrativas como arma para semear a docilidade das maiorias – e punir dissidências. Desafio vai além da economia: é hora de resgatar a História popular e descolonizada
Por Ladislau Dowbor
Durante muito tempo, sobretudo nas escolas, a História de nossos países foi apresentada sob a luz do passado glorioso; e a de nossos vizinhos, em tons muito mais sombrios. Com foco em momentos-chave de dada mudança estrutural, sublinhava-se a importância das elites como “sujeitos da história”, reafirmando a perspectiva e os valores da “civilização ocidental”. Raramente somos preparados para pensar a História como um drama da humanidade, portanto, de todos nós, e que se desenrola diante dos nossos olhos, para além dos grandes feitos históricos.
Na década de 1980, eu tive a oportunidade de resenhar a “História Geral da África” (Unesco, oito volumes), do historiador Joseph Ki-Zerbo, coordenador do então inédito e gigante esforço de trazer o continente africano para a história mundial. Uma história da África e não dos feitos europeus na África. Eu trabalhei anos em diferentes países da África, mas ao ler a obra fiquei espantado com a minha ignorância. Como posso eu saber tanto de Robespierre, mas nada de Sundiata Keita? Nada da produção de aço no Mali? Nada sobre as exportações têxteis da Guiné-Bissau para a Europa antes das invasões?
No Brasil, apesar de os descendentes dos africanos serem a maioria da população, o que se ensinava até outro dia na escola, era essencialmente o comércio de escravos. Nenhuma palavra sobre como eles viveram, trabalharam, se organizaram. Durante décadas, a visão eurocêntrica e racista do colonizador lançou a sombra do primitivismo sobre todo o continente africano. Ler Ki-Zerbo e os numerosos autores que contribuíram para esta reconstituição da história africana é mágico, no sentido de nos reconhecermos semelhantes frente aos dramas humanos.
Hoje, é fundamental usarmos a História como espelho para que possamos nos pensar enquanto humanidade, neste planeta solitário e frágil. Ki-Zerbo escreve na introdução do primeiro volume: “Natureza e homens, geografia e história, não foram generosos com a África. É imprescindível repassar as condições fundamentais desse processo de evolução, para colocar os problemas em termos objetivos, e não sob a forma de mitos aberrantes como a inferioridade racial, o tribalismo congênito e a pretensa passividade histórica dos africanos. Todas essas abordagens subjetivas e irracionais podem apenas mascarar a ignorância voluntária (25).”
Seguindo a trilha aberta pelos historiadores africanos, chegamos a outra história preocupada com a humanidade, A People’s History of the United Sates, do historiador estadunidense Howard Zinn. “Estima-se que África perdeu aproximadamente 50 milhões de seres humanos para a morte e a escravidão, naqueles séculos que chamamos de início da civilização ocidental moderna, nas mãos de comerciantes de escravos e proprietários de plantações na Europa Ocidental e na América, os países considerados os mais avançados no mundo. Esse tratamento desigual, essa combinação crescente de desprezo e opressão, sentimento e ação, que chamamos de ´racismo´ – foi isso o resultado de uma antipatia ´natural´ do branco contra o negro? Se o racismo não pode ser demonstrado como natural, então é o resultado de certas condições, e somos impelidos a eliminá-las.”
Zinn aponta “um impulso humano básico em direção à comunidade” (27). No comércio de escravos, quem eram os selvagens? Os europeus não eram negros, é claro. “Nos anos 1600 e 1700, por exílio forçado, por atrativos, promessas e mentiras, por sequestro, pela urgente necessidade de escapar das condições de vida no país natal, os pobres que queriam ir para a América tornaram-se commodities lucrativas para comerciantes, traders, capitães de navios e, eventualmente, seus mestres na América. Depois de assinarem um termo, pelo qual os imigrantes concordavam em pagar as despesas de viagem trabalhando para um mestre durante cinco ou sete anos, muitas vezes eles ficavam presos até a partida do navio, para garantir que não fugissem” (35).
Essa abordagem, adotada por historiadores de diferentes escolas e credos, de que é preciso olhar nossos desafios comuns, restaurando a importância das estratégias de sobrevivência das pessoas comuns, – para além de Hastings e Waterloo, por assim dizer – é rica em lições sobre a humanidade.
Outro esforço semelhante foi realizado pelo historiador polonês Adam Leszczynski, no recém-publicado Ludowa Historia Polski (Uma História do Povo da Polônia), com referência explícita ao trabalho de Zinn nos EUA. Reis e magnatas aparecem no livro, mas ele se centra nas lutas diárias da imensa maioria para sobreviver às sucessivas formas de servidão.
Eu estava ciente das diferentes e violentas formas de opressão na Polônia, particularmente através dos estudos clássicos de Witold Kula sobre o feudalismo. Mas uma história detalhada das formas concretas e sofisticadas de opressão, começando em 996 e trazida até os tempos atuais, muda profundamente a perspectiva. Não é a história de quais guerras e palácios as elites promoveram ou construíram com o excedente extorquido da população, mas como os sistemas de extorsão mudaram em suas formas e permaneceram em seu conteúdo.
Saiba mais em: https://outraspalavras.net/outrasmidias/dowbor-a-maquina-historica-da-opressao/
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