A lucrativa gestão de fortunas: em 2019, dos quatro setores econômicos do país, as finanças aumentaram 27%, contra déficit no comércio, indústria e serviços. Financeirizadas, empresas recebem de volta apenas 15% da receita gerada
Por Ladislau Dowbor
Em termos econômicos, produzir e extrair constituem dinâmicas diferentes. Os magnatas das arábias se entopem de dinheiro vendendo o petróleo que nunca tiveram de produzir, inclusive repassando para corporações transnacionais a tarefa da extração, comercialização e transporte. Estão vendendo o futuro dos seus países, dilapidando recursos naturais de que as próximas gerações irão precisar, e contribuindo para o desastre climático. O petróleo alimenta não só os sheiks, como um mundo de acionistas pelo mundo afora, que dizem “investir” o seu dinheiro, e que passam a aumentar o seu capital à medida que o capital natural do planeta vai se esgotando. No Nordeste usam a imagem de “festa com o chapéu dos outros”, e a expressão traduz rigorosamente o que em economia chamamos de rentismo, que extrai valor sem aumentar ou contribuir para a produção. Geração de renda por meio da produção de coisas úteis para a sociedade é diferente do rentismo que se generaliza. Quem extrai dinheiro apenas drenando o que outros produzem é um rentista, e o dinheiro extraído é “renta”.
Porque é tão importante? Porque o capitalismo atual gerou um mundo de parasitas que extraem renta por meio de um emaranhado de mecanismos de intermediação financeira, de pedágios sobre qualquer transação, permitindo fortunas absurdamente elevadas nas mãos de gente esperta, mas que trava a economia. “Renta – considerada como renda não ganha – foi classificada como uma transferência do setor produtivo para o setor improdutivo, e era em consequência excluída do PIB. ”[1]
Entender como se alimentam as maiores fortunas do planeta, e se agrava a desigualdade mundial, em proveito de gente que não só não produz como essencialmente descapitaliza a economia, é essencial para resgatar os rumos de uma economia que funcione. São os mecanismos que permitem entender como, em plena pandemia, com a economia em crise (com exceção da China), 42 bilionários no Brasil tenham aumentado as suas fortunas em 34 bilhões de dólares, equivalentes a 180 bilhões de reais, seis anos de Bolsa Família, em praticamente quatro meses (entre março de julho 2020), sem precisarem produzir, simplesmente cobrando juros, dividendos e outros ganhos financeiros. Inclusive ver a Bolsa subir enquanto a economia cai, é significativo.
Outro exemplo: A publicação Valor Econômico: Grandes Grupos apresentou em dezembro de 2020 a evolução dos 200 maiores grupos econômicos do país. Baseado em dados de 2019, portanto antes do impacto da pandemia, o estudo constata que “dos quatro setores analisados, apenas o setor de Finanças registrou aumento no lucro líquido (27,1%). Comércio (-6,8%), Indústria (-7,8%) e Serviços (-34,8%) caminharam para trás.” Trata-se não do conjunto da economia, e sim apenas dos grandes grupos, onde as finanças predominam, mas é impressionante. O estudo ressalta “o bom desempenho da área financeira, sobretudo bancos, cuja fatia no lucro líquido consolidado dos 200 maiores aumentou de 37,7% para 48,9% ”. (p.12)[2] Traduzindo, o que rende é ser banco, e de preferência grande; não é produzir, é cobrar pedágio de quem produz. E quanto mais os intermediários financeiros extraem, menos sobra para o investimento produtivo.
A leitura do último livro de Mariana Mazzucato, The Value of Everything, explicita os mecanismos.[3] “Hoje, o setor [financeiro] se expandiu muito além dos limites da finança tradicional, essencialmente atividades bancárias, para envolver uma imensa gama de instrumentos financeiros, e criou uma nova força no capitalismo moderno: gestão de ativos (asset management). O setor financeiro hoje representa uma parte significativa e crescente do valor agregado e dos lucros da economia. Mas apenas 15% por centos dos fundos gerados vão para as empresas no setor de indústrias não-financeiras. O resto é negociado entre instituições financeiras, fazendo dinheiro simplesmente pelo dinheiro mudar de mãos, um fenômeno que se desenvolveu enormemente, dando lugar ao que Hyman Minsky chamou de “capitalismo de gestores de dinheiro” (money manager capitalism). Ou dizendo de outra maneira: quando as finanças fazem dinheiro ao servir não à economia ‘real’, mas a si mesmas”. O setor financeiro passou a “capturar uma parte crescente do excedente da economia”.
O sistema passou a drenar a capacidade de compra das famílias, o ritmo de investimento das empresas produtivas, e os investimentos públicos – pelo endividadmento generalizado. As empresas abertas se veem também drenadas da sua capacidade de expansão pelo dividendos cobrados pelos “investidores institucionais”. As fortunas dos mais ricos em vez de servirem para financiar atividades produtivas, passaram a ser geridas pela indústria de gestão de fortunas (wealth management). O comércio internacional de commodities passou a ser administrado por traders, grandes intermediários que criaram gigantes financeiros por meio dos chamados derivativos: o maior deles, a BlackRock, tem ativos da ordem de 8,7 trilhões de dólares, cinco vezes o PIB do Brasil. Desenvolveu-se a indústria de securitização, autêntica indústria de distribuição de riscos que levou em boa parte às crises sistêmicas, e que também cobra pedágios sobre as operações. As corporações financeiras são suficientemente poderosas para extrair parte dos nossos impostos por meio de suporte público direto (QE, Quantitative Easing) em volume que nos EUA superou 4 trilhões de dólares. O dreno é generalizado, os favorecidos nunca tiveram o trabalho de entrar numa fábrica, numa fazenda, num hospital. Administram papéis, hoje aliás simples sinais magnéticos.
Os bancos também cobram taxas impressionantes sobre o lançamento de ações de empresas (IPOs), e aplicam um conjunto de tarifas que oneram o setor produtivo. Financeirizar o ensino superior também se generaliza: temos hoje uma geração de jovens enforcados nas dívidas que lhes permitiram aceder ao ensino superior, mas que irão carregar por décadas. Quando as contraíram, lhes acenaram com os excelentes salários que iriam ganhar. O dinheiro, há algumas décadas ainda essencialmente impresso pelos governos, hoje constitui apenas a chamada “liquidez”, sinais magnéticos nos computadores.
Um impacto indireto da financeirização é que deforma profundamente o nosso cálculo do PIB. Quando calculamos como aporte produtivo o que são custos adicionais de intermediários – obrigando-nos a sustentar uma imensa burocracia financeira privada – criamos uma falsa impressão de crescimento econômico. Contar os lucros dos atravessadores da atividade produtiva como aumento do PIB, portanto como expansão da própria produção, quando apenas aumentamos os custos com mais intermediários, constitui um erro técnico elementar, mas um presente político que resultou da pressão das corporações financeiras.
Na realidade, se trata de uma contabilidade simplesmente errada. Se eu tenho uma empresa produtiva, e tenho custos financeiros, esses serão incorporados no valor do meu produto final, fazem parte dos custos de produção. Mas se o dinheiro que eu transfiro para os bancos é também contabilizado nos bancos, como valor de produção, estou contando duas vezes a mesma soma no PIB. Na contabilidade tradicional, seriam deduzidos como “consumo intermediários”. Se eu produzo carros, e incorporo no meu custo final o que me custou o aço que comprei, em termos de contas não posso contar como produto o aço da siderúrgica, pois já está incorporado no valor do carro.
Essa dupla contagem dos custos financeiros, uma vez no lucro dos bancos e outra vez no valor da produção final das empresas tomadoras dos serviços financeiros, é recente. “Durante grande parte da história humana recente, em radical contraste com o atual entusiasmo com o crescimento do setor financeiro como sendo um sinal (e estimulante) da prosperidade, os bancos e os mercados financeiros foram durante longo tempo considerados como o custo de fazer negócios. Os seus lucros refletiam o valor agregado apenas nas proporção em que melhoravam a alocação dos recursos de uma país”. Mais recentemente, no entanto, “por meio de uma combinação da reavaliação econômica do setor e de pressões políticas exercidas, as finanças foram promovidas de fora para dentro das fronteiras produtivas – e no processo geraram o caos (havoc).”
Assim, a partir da revisão do sistema de contabilidade nacional de 1993, os custos financeiros passaram a ser calculados como valor agregado, contribuindo para o PIB: “Isso transformou o que previamente era considerado como um custo, em uma fonte de valor agregado, da noite para o dia. A mudança foi oficialmente apresentada na conferência da International Association of Official Statistics de 2002, e incorporada na maioria das contabilidades nacionais bem a tempo antes da crise financeira de 2008. Os serviços bancários são naturalmente necessários para manter as rodas da economia girando. Mas isso não significa que os juros e outros encargos cobrados dos que usam os serviços financeiros sejam um ‘output’ produtivo. ” (108) “As contas nacionais agora declaram que estamos melhor quando uma massa maior da nossa renda flui para pessoas que “administram” o nosso dinheiro, ou que jogam (gamble) com o seu próprio dinheiro.” (109) Para o Brasil, isso é muito significativo, pois os lucros dos intermediários financeiros, custos para a economia, permitem que o PIB apareça como “crescendo”.
Saiba mais em: https://outraspalavras.net/outrasmidias/dowbor-rentismo-pedagio-que-rouba-de-quem-produz/
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