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Garcia Linera vê os novos desafios da esquerda

Ressurge uma “onda rosa” na América do Sul. Ex-vice de Evo Morales analisa o dilema crucial: agora, os governos terão de sacudir as velhas estruturas – mas o motor das mudanças precisa estar na mobilização autônoma da base social

por Álvaro García Linera

O ex-vice-presidente boliviano, Álvaro García Linera, é um dos maiores intelectuais da América Latina e um dos atores políticos mais experientes da região. Durante seus catorze anos à frente do governo plurinacional da Bolívia, foi responsável não só por projetar grande parte da estratégia política de Evo Morales, mas também por fornecer as bases teóricas para o partido governista MAS (Movimento ao Socialismo).

Durante a década de 1980, García Linera liderou, junto com outros companheiros, o Exército de Guerrilha marxista Túpac Katari; devido à sua atividade política, grande parte de seu tempo de formação intelectual ocorreu atrás das grades, enquanto cumpria uma pena de cinco anos pelo suposto envolvimento em uma insurreição armada contra o governo de Jaime Paz Zamora. Foi nesses anos que García Linera se dedicou ao estudo de Marx e do marxismo; e escreveu seu já clássico Forma Valor e Forma Comunidade.

As influências intelectuais de García Linera são bem variadas e ecléticas: marxismo e indigenismo, o pensamento autonomista de Toni Negri e o socialismo democrático de Nicos Poulantzas. Segundo muitos relatos, García Linera é um dos pensadores mais originais da esquerda — latino-americana e além.

Antes de retornar à Bolívia, onde se reuniria com Luis Arce em sua posse presidencial, García Linera sentou-se com os editores da Jacobin América Latina, em Buenos Aires, para uma ampla discussão, onde trouxe as lições aprendidas com o golpe na Bolívia, o estado dos governos progressistas na América Latina, e a ampla estratégia política de como melhor preparar o caminho rumo a um futuro socialista.

Gostaríamos de começar abordando os recentes eventos na Bolívia. Em sua análise do golpe de 2019, você tende a focar no papel desempenhado pela chamada “classe média tradicional” (em oposição à nova classe média formada sob o governo do MAS). Em que medida a vitória de Luis Arce em 2020 confirmou ou alterou sua primeira leitura do golpe?

Primeiramente, embora golpes de estado sejam sempre maquinações de pequenos grupos, sua viabilidade final depende de outros fatores. Eles contam com grupos sociais mais amplos para possibilitar o golpe — um setor que possa criar uma vontade geral de romper com a ordem constitucional e a democracia.

No grupo conspiratório responsável pelo golpe de 2019, havia um conjunto de interesses distinto: generais do exército, um grupo de empresários que havia comprado oficiais e comandantes de tropas, Luis Almagro [da OEA – Organização dos Estados Americanos], o Departamento de Estado, membros da Igreja Católica, e vários ex-presidentes. Este grupo central orquestrou e uniu as forças necessárias para realizar o ato.

Mas o golpe não veio do nada: nos últimos quatro anos, assistimos ao crescimento de um setor social que se opõe cada vez mais à democracia. Este grupo é, como você mesmo diz, a classe média tradicional da Bolívia. Ao disseminar uma linguagem sectária e racista, nas redes sociais e em outros veículos, a classe média tradicional criou um clima favorável para o que acabou sendo uma derrubada armada e autoritária.

Esse grupo social ainda está presente na Bolívia. Eles foram para a frente dos quartéis, convocar outro golpe. Alegaram fraude depois que saíram os resultados das eleições de 2020 — para eles, apesar da ausência de qualquer evidência, se os indígenas ganham é porque houve fraude eleitoral. Claro, eles foram derrotados e continuarão a ser derrotados, porque são uma minoria, e são decadentes.

Muitas pessoas ficaram surpresas ao ver que o golpe não encontrou grande resistência por parte das forças populares nem do governo do MAS. Será que não se trata de uma repetição do dilema de Salvador Allende, algo como uma confiança excessiva na “neutralidade das Forças Armadas”? Em outras palavras, dado o fato de que sempre haverá tentativas de golpe imperialista da direita contra os governos populares, como deveríamos enfrentar ações conspiratórias como a que ocorreu em novembro de 2019?

Em novembro de 2019 houve a derrota militar de um projeto popular nacional. Forças conservadoras foram mobilizadas para ocupar cidades e territórios. O governo do MAS enfrentou essa tentativa de maneira não coercitiva; tentou estimular uma ação coletiva que funcionasse como uma corrente contrária às manifestações da direita. Nossa esperança era de que perdessem o fôlego.

Nossa resposta foi política — e se os acontecimentos que levaram ao golpe tivessem sido mantidos no plano político, teríamos saído vitoriosos. O que não levamos em consideração — e esse foi nosso grande erro político — foi que as forças políticas ultraconservadoras iriam encontrar apoio entre os militares. Essa foi a verdadeira novidade de 2019. Quando eles tentaram lançar um golpe em 2008, empregamos duas táticas: primeiro, contenção política, tentando isolar essas forças até que finalmente se esgotassem; e em segundo lugar, apelamos à mobilização social em massa para dominá-los.

Mas antes que as forças conservadoras pudessem ser enfraquecidas, eles procuraram os militares e a polícia. E isso não estava em nossos cálculos — que eles iriam subornar as forças armadas.

Quando optaram pela via militar, nos deram duas alternativas: convocar ou não mobilizações para enfrentar policiais e militares. Essa decisão cabe ao presidente. Naqueles primeiros dias, nos dias 9 e 10 de novembro, o presidente pensou: “Não vou mandar meus camaradas para a morte”. Houve uma decisão consciente baseada no que era essencialmente uma visão moral. Hipoteticamente, poderíamos ter nos envolvido em um confronto aberto, mas teria havido grandes perdas, com muitas mortes. Portanto, decidimos não nos mobilizar e o presidente preferiu renunciar.

A primeira lição é exatamente essa: é preciso neutralizar politicamente essas células de operação. Você tem que tentar neutralizar as causas subjacentes que dirigem esses grupos numa inclinação fascista, enquanto ainda mantém as políticas que favorecem a igualdade. Se você começa a recuar nos esforços que promovem a igualdade social e os direitos indígenas, não pode mais se chamar de governo progressista. Porém, o que você pode fazer é manter políticas de mobilidade social para as classes populares e trabalhadoras e, ao mesmo tempo, promover mobilidade e rotação para a classe média tradicional, compensando assim sua tendência ao ultraconservadorismo.

A questão policial e militar é mais complicada. Você nunca conseguirá impedir um ou outro empresário rico de suborná-los com milhões de dólares. Os militares estão aí pra ficar; e seu poder é garantido pelo Estado. Eles têm sua própria dinâmica, mas é preciso que existam políticas em vigor para contê-la — políticas que respeitem o status institucional dos militares, ao mesmo tempo que criem um esprit de corps menos suscetível ao suborno e, portanto, mais solidário para com os interesses do povo. Em suma, a composição de classes das Forças Armadas deve ser alterada.

Em parte, os militares apoiaram o golpe porque, com o passar dos dias, não houve mobilização social. Não parecia um grande problema para nós na época — vimos muitas tentativas similares ao longo dos anos. Mas o ponto é basicamente esse: não confie em si mesmo ou em experiências anteriores. Quando a classe empresarial começa a conspirar junto com os militares e a se conectar com a classe média tradicional mais conservadora, ela precisa enfrentar uma mobilização social em massa.

Me refiro a uma moral social bem mais profunda: temos que nos mobilizar para defender o que temos. Vimos a prática dessa realidade em agosto de 2020 [quando os apoiadores do MAS fizeram protestos e bloqueios de estradas para impedir o adiamento das eleições]. O MAS convocou as organizações sociais e os indivíduos a enfrentarem militares e policiais no exercício do controle territorial, assim como aconteceu no ano 2000.

O povo — não os líderes políticos, nem o partido — percebeu que uma nova onda de repressão só poderia ser combatida se tivéssemos o território. Essa foi a fonte da nossa força em agosto de 2020: havia um conhecimento prático e tático implantado pela sociedade para evitar outro massacre ou operação militar sangrenta dos golpistas.

Este tipo de conhecimento coletivo precisa ser reforçado e fortalecido. Não é tanto uma questão militar, mas de como você cria as lições táticas para a ação coletiva contra a ameaça de um conflito armado. Em um país como a Bolívia — com uma grande população rural, “setores urbanos empobrecidos” e apenas uma classe trabalhadora escassamente organizada nos centros industriais — é por meio da organização coletiva que as pessoas encontraram uma maneira de se defender. No futuro, devemos expandir e melhorar esse tipo de ação para neutralizar os golpes militares e policiais.

Como você caracteriza a situação política atual na América Latina? Embora pareça haver um “novo ciclo progressivo” em andamento, ele também parece ser nitidamente mais moderado e conciliador do que o anterior. Você concorda com essa visão?

Prefiro muito mais falar em ondas do que em ciclos, porque os “ciclos” sugerem determinismo, enquanto que as “ondas” são algo mais fluido e dinâmico. Marx usou o conceito de ondas em 1848 para mostrar que dentro de uma revolução existem movimentos, e que estes vêm em ondas.

Não podemos esperar que esta nova onda seja uma repetição da primeira, por vários motivos. Por um lado, o boom dos recursos acabou e os últimos anos testemunharam uma recessão econômica sem precedentes. Além disso, hoje temos que lidar com um elenco diferente de pessoas, incluindo novos líderes.

Mas há uma questão ainda mais profunda em jogo: diferente do período de 2005 a 2015, quando a direita foi esmagada pela onda progressista, ela agora está começando a encontrar um ponto de apoio — improvisado e míope, talvez, mas que não deixa de ser. Sua resposta é antidemocrática, uma espécie de neoliberalismo violento, misógino, racista e conservador.

A direita não tinha soluções significativas para as crises políticas e econômicas que afetam a região. Passou uma década dando o mesmo conjunto de prescrições neoliberais, que ninguém na época queria tomar. Hoje, a direita não mudou, mas passou a aceitar que enfrenta um inimigo diferente: a Maré Rosa.

Isso significa que agora entramos em um novo período de ondas e contraondas. Hoje, a Maré Rosa está fragmentada, mas a maré conservadora também está. Os dois lados ficarão travados na batalha por algum tempo. Nesse sentido, seria um erro supor que o consenso progressista previamente estabelecido será, simplesmente, restabelecido como antes. Trata-se de uma expectativa impossível, porque, na política, todas as vitórias são temporárias.

Há outro assunto que também devemos considerar. Na minha opinião, neste momento, estamos vivendo uma espécie de suspensão. Quando não temos qualquer tipo de horizonte, como nos ocorre agora, não há uma linha do tempo, não há nenhuma seta apontando para um ponto final. Por que não temos essa orientação? Porque hoje todos se sentem inseguros sobre praticamente tudo — se terão um emprego amanhã, se haverá outra pandemia e assim por diante.

O cenário que eu descrevo é aquele em que a política se torna taticamente intensa e estrategicamente suspensa. Taticamente, o que deveria ter levado dez anos na Bolívia, aconteceu em um. Um ciclo conservador que deveria ter durado quatorze anos na Argentina, acabou em quatro [a presidência de apenas um mandato de Mauricio Macri]. O mesmo vale para o atual ciclo progressista: não sabemos se vai durar para além dos próximos quatro anos. O mesmo pode-se dizer da Bolívia: quem sabe se vai durar dois, quatro ou seis anos?

Essa incerteza estratégica é um elemento novo com o qual a nova onda progressiva deve lidar. Em 2005, na ausência de respostas conservadoras, o ciclo progressivo parecia a substituição definitiva do neoliberalismo. Mas hoje não é o único projeto disponível — há também o movimento ultraconservador.

De certa forma, o que aconteceu com Trump nos Estados Unidos revela os limites de um discurso político conservador movido pelo ódio. O neoliberalismo conservador de Trump é um paliativo, mas o mesmo acontece com todos os outros projetos políticos existentes hoje. Em meio a esse caos, é importante que os projetos progressistas se questionem, tentem superar suas fraquezas e construam a partir daquilo que estão fazendo direito.

Em outras palavras, é um falso debate discutir se este ciclo é de fato novo ou se o anterior poderia ser revivido. Aqui, acho que a Bolívia oferece uma lição poderosa. Em meio a esse caos, as perspectivas de um projeto progressista de esquerda dependerão de duas coisas, uma das quais já discutimos: deve haver um estágio de ação coletiva antes de que qualquer projeto progressista possa se estabelecer. A segunda, é que esse projeto deve ser de poder popular — um projeto não para as classes populares, mas das classes populares.

A Bolívia nos mostrou isso: podem ocorrer golpes e reveses temporários, mas se o governo indígena popular for o projeto dos setores subalternos, no final, você vai vencer. Se você conseguir isso, você terá muito combustível histórico para trabalhar. Se você sempre tiver em mente que se trata do seu projeto, sua organização e sua capacidade de tomar decisões sobre seu próprio futuro, seus inimigos até podem colocar todos os obstáculos que quiserem, mas você será capaz de se recuperar.

Saiba mais em:https://outraspalavras.net/movimentoserebeldias/garcia-linera-ve-novos-desafios-da-esquerda/

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