Por Marcio Pochmann |Créditos da foto: (Reprodução/kknews.cc)
Após quase três décadas de variada retórica profética negativa, contrária à evolução quantitativa dos empregos, a realidade aparece ser menos dramática do que amplamente difundida. Isso porque, a partir dos anos de 1990, a perspectiva alarmante sobre o “fim de emprego” ganhou expressão, contaminando decisivamente a interpretação acerca do presente e, sobretudo, do futuro do trabalho no Ocidente[1].
Coincidiu, todavia, com a dominância neoliberal na gestão em crise capitalista desde então, cujo discurso da automação destrutiva do emprego buscou se contrapor à força reativa da classe trabalhadora frente a imposição da falsa dicotomia: emprego ou direitos sociais e trabalhistas. Assim, a ideologia do terrorismo patrocinadora de cenário futuro avassalador para a classe trabalhadora serviu de inibição às suas reivindicações progressistas, como a redução da jornada laboral, a postergação do limite etário para o ingresso no mercado de trabalho associado à garantia de renda, a regulação das novas formas de emprego, entre outras.
No rastro de reportagens assustadoras publicizadas por jornais e revistas populares acerca da substituição de trabalhadores por robôs e inteligência artificial, o patronato impôs a redução no custo do trabalho e generalizou a expansão dos empregos mais precarizados, com menos direitos sociais e trabalhistas. Somente entre os anos de 2008 e 2014, por exemplo, 110 países realizaram 642 alterações nos seus sistemas nacionais de regulação pública do trabalho, sendo 55% delas direcionadas à diminuição da proteção social do empregado[2].
Em consequência, ocorreu o enfraquecimento do poder de barganha dos trabalhadores. Ao mesmo tempo, o declínio na participação do trabalho na renda nacional, com a crescente desigualdade intra ocupados e maior concentração do capital.
Também estudos de natureza acadêmica e relatórios de consultorias patronais trataram de fortalecer a hipótese da automação responsável por ampla e diversificada destruição dos empregos[3]. Na trilha da defesa do discurso da automação, proliferaram as proposições a respeito do crescente “desemprego tecnológico”, da ampla substituição de trabalhadores por máquinas e do acelerado ingresso na nova sociedade extensamente automatizada.
Na descrição de suposto decréscimo na demanda por mão de obra nas economias profundamente automatizadas, restaria as classes trabalhadoras adoçadas a simples integração nos programas de educação e reciclagem e de renda básica. Isso porque os “sismógrafos do trabalho”, para validar no presente as visões futuristas da anulação de empregos, passaram a alimentar projeções, com as de estudos de grande repercussão midiática a apontar, por exemplo, a perda de 47% dos empregos estadunidenses por força da automação, bem como a previsão da destruição de 14% das vagas nos países da OCDE, entre outros[4].
O pensamento único proposto, bem ao gosto do neoliberalismo, defendia que as tecnologias de automação substituiriam totalmente o trabalho humano, sem a possibilidade de elevar as capacidades produtivas humanas e de aumentar as ocupações a partir da transformação da natureza do trabalho. Ao abandonar a perspectiva histórica de lutas e conquistas das classes trabalhadoras em torno da regulação do emprego e do papel do Estado, o discurso da automação explicitou o viés patronal, descolado da própria realidade.
Ao se comparar o perfil dos empregos atuais com os existentes na década de 1960, nota-se que quase 60% deles não existiam mais, uma vez que a automação teria sido traço comum na própria história do capitalismo, acompanhada do ilusionismo da perda de centralidade do trabalho na vida humana[5]. O fato de o capitalismo operar geralmente com menor demanda por empregos em relação à oferta de mão de obra não autoriza, necessariamente, o discurso da automação.
Ao contrário, o simples acompanhamento do conjunto dos 27 países da União Europeia permite constatar a geração de 13,4 milhões de empregos, ademais do adicional de 18 milhões de empregos nos EUA e de quase 26 milhões de novas ocupações na China no período de 2009 a 2019. Em consequência, a taxa média do desemprego declinou no mesmo período de tempo de 9,2% para 6,7% da força de trabalho nos 27 países da União Europeia, de 9,2% para 3,7% nos Estados Unidos e de 4,3% para 3,6% na China. Justamente esses países que sobressaem na presença da robótica, automação e inteligência artificial, convivendo, inclusive antes da pandemia da Covid-19, com situação próxima do pleno emprego.
Os dados da Federação Internacional de Robótica revelam a aceleração da robotização, com mais de 2,7 milhões em operações em 2019 e crescimento acumulado de 2,7 vezes entre 2009 e 2019 no mundo. Embora a China responda por quase 29% do total de robôs no mundo, Singapura e Coreia do Sul se destacam por registrar cerca de 900 robôs instalados a cada 10 mil trabalhadores, enquanto a Alemanha detém 346, os Estados Unidos, 228, e a China, 187.
Em vez do desemprego tecnológico expandido, verifica-se a massificação do subemprego que se generaliza a quem exerce o próprio medo de não saber quiçá como financiará a próxima refeição. Produzida pela digitalização, a superindustrialização dos serviços faz avançar as ocupações novas e instáveis que se generalizam sem regulação pública e representação laboral.
A tecnologia pode ajudar a libertar o tempo do trabalho não pago, mas requer a ruptura tanto do trabalho com a renda como do lucro com a renda. Para isso, o fortalecimento do poder laboral, que pode fazer pressão para alterar as formas de intervenção governamental na economia, modificando a composição básica da ordem social atualmente estabelecida.
Enquanto isso não acontece, o planeta se torna mais quente, com massas sobrantes crescentemente tentando se reinventar em novos e velhos subempregados considerados de vendedores ambulantes a entregadores como se fossem riquixás a serviço das fortalezas aclimatadas dos ricos, poderosos e privilegiados. Essa linha do tempo não pode mais continuar, pois reprodutora da própria barbárie.
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