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Índia: raízes e retratos da revolta histórica no campo

O que a mídia esconde sobre a maior greve na história recente. “Reformas” de Modi ameaçam o que se conquistou em décadas de lutas. Mas crise agrária remonta ao domínio colonial britânico – que manteve estrutura de castas e nela se apoiou

Estes são retratos de camponeses, não de “bandidos, parasitas, terroristas e secessionistas”, como pintam os meios de comunicação dominantes, não são uma multidão sem rosto

São retratos de seres humanos com nomes, lutas e aspirações, uma forma de vida

São retratos de uma classe

São retratos de um protesto histórico

As fotografias deste dossiê foram feitas por Vikas Thakur, do departamento de Arte do Instituto Tricontinental de Pesquisa Social. Vikas, que vive em Delhi, visitou dois lugares estratégicos do protesto nas fronteiras com Singhu e Tikri durante dezembro de 2020 e janeiro de 2021. Com uma câmara de um celular Xiaomi Note 6 na mão, ele documentou a revolta dos agricultores. “A princípio só queria fazer fotos para arquivá-las”, diz Vikas. As imagens cruas resultantes são retratos de camponeses – principalmente de Haryana e Punjab – em sua ira e sua alegria, desafiando o frio de inverno em seus tratores, lendo poesia em seus carros e celebrando festivais religiosos. São retratos de camponeses, de uma classe e de seres humanos em uma revolta histórica.

Camponesas do Punjab e Haryana protestam na fronteira de Tikri, em Dehli, dia 24 de jeniro de 2021 Vikas Thakur / Instituto Tricontinental de Pesquisa Social

A Índia se encontra dominada pela segunda onda da pandemia de Covid-19. Os casos confirmados chegaram a 400 mil por dia em maio, enquanto o sistema de saúde colapsa, leitos hospitalares se enchem e os cilindros de oxigênio se esvaziam. O aumento na taxa de mortalidade criou filas nos crematórios. Enquanto os holofotes estão em Delhi e outros centros urbanos, mortes silenciosas estão se espalhando nas áreas rurais do norte da Índia. Pessoas estão morrendo de “febre” e “falta de ar” – expressões utilizadas pelo senso comum para descrever os sintomas da Covid-19. Como muitos não foram testados para a doença, suas mortes não constam nos números oficiais.

Em setembro de 2020, o governo da Índia, liderado pelo primeiro-ministro Narendra Modi e seu partido de extrema direita, Bharatiya Janata (BJ), aprovou três leis que afetam diretamente o setor agrícola. Não houve consulta prévia às organizações de agricultores e não se permitiu nenhuma discussão no parlamento. Os agricultores perceberam imediatamente que essas três leis os transformam em semisservos das grandes corporações comerciais da Índia. Eles deram início a uma onda de protestos que ainda perdura, meses depois, apesar da pandemia.

Agricultores e trabalhadores agrícolas marcharam pela primeira vez em direção a Delhi em novembro de 2020. Eles foram impedidos de entrar na cidade e, portanto, montaram acampamentos de protesto ao longo das rodovias nacionais. As mobilizações massivas começaram em Punjab, mas logo se espalharam por Haryana, Uttar Pradesh, Rajasthan e Madhya Pradesh. Nas semanas que se seguiram às primeiras marchas, a onda de protestos se espalhou pela Índia, de Maharashtra, no oeste da Índia, a Bihar, no leste, descendo até o sul do país. No Dia da República, 26 de janeiro de 2021, os trabalhadores agrícolas entraram em Nova Delhi, a capital, e deixaram claro que o dia de celebração da Constituição indiana de 1950 também era o dia deles.

A mídia corporativa vilanizou os agricultores, atacando sua integridade ao chamá-los de bandidos, parasitas, terroristas e separatistas que pretendem obstruir o desenvolvimento da Índia. Os agricultores não recuaram. Sabiam que representavam toda a sua classe, para quem esta batalha é existencial: aceitar os termos da nova política do governo é matar e destruir seu meio de vida e seu modo de vida. Eles sabiam que as três leis agrícolas dariam ainda mais controle sobre a agricultura indiana para grandes capitalistas, como as famílias Ambani e Adani. Uma série de organizações de agricultores, desde All-India Kisan Sabha (AIKS) ao Bharatiya Kisan Union, estendeu a mão aos camponeses e trabalhadores agrícolas em todo o país, buscando construir uma coalizão nacional para defender os agricultores e exigir a anulação das três leis.

Os protestos não diminuíram, embora os camponeses estejam sendo cautelosos devido à pandemia. Eles estão determinados a resistir, já que o governo do BJ tenha se recusado a recuar. Seja qual for o resultado, não há dúvida de que a agricultura indiana está no limite e que o governo Modi está decidido a empurrá-la para além desse limite. O campesinato indiano continua lutando por sua sobrevivência durante uma crise agrária crônica impulsionada por três décadas de reforma neoliberal. As três leis agrícolas de Modi dizimarão os restos da vida agrária do campesinato e entregarão o controle do setor às corporações e à cadeia de abastecimento global.

Qual é a crise agrária? É uma condição crônica cujos sintomas são variados: as contingências da agricultura, incluindo quebras de safra, que resultam em rendas baixas a negativas, endividamento, subemprego, expropriação e suicídio. Este dossiê traça as causas dessa crise, que não são difíceis de detectar, mas que remontam aos dias de domínio colonial britânico e aos fracassos do novo Estado indiano após a independência em 1947. O progresso na agricultura indiana vem no ritmo de uma imensa tartaruga, lenta e mantendo seu curso obstinadamente. Poucas coisas parecem ter mudado nos últimos 75 anos e, mesmo quando surgem novos fatores, os antigos persistem. Para entender por que a tartaruga agora para na beira do precipício, temos que refazer sua jornada.

Um camponês participa dos protestos em seu caminhão na fronteira de Singhu, em Dehli, 5 de dezembro de 2020 Vikas Thakur / Instituto Tricontinental de Pesquisa Social

O passado

Quando a Companhia Inglesa das Índias Orientais assumiu o controle da Índia pela primeira vez, em 1757, ela começou a desmontar e a reorganizar as relações econômicas mais antigas para melhor extrair tributos. Diferentes partes da Índia tiveram diferentes tratamentos, mas a estrutura principal da espoliação permaneceu a mesma. A terra foi transformada em propriedade vendável que poderia ser alienada dos camponeses, e novos intermediários impostos (como os zamindars) chegaram para cobrar aluguéis exorbitantes dos camponeses. Em 1770, os britânicos se mantiveram inertes enquanto Bengala, a primeira parte da Índia a ser governada pela Companhia, experimentou uma fome que matou um terço da população. Embora a sociedade aldeã antes do governo da Companhia não fosse um paraíso, durante o governo da Companhia e da Coroa (depois de 1858), tornou-se um inferno para o campesinato.

O economista Utsa Patnaik calculou que a Companhia e a Coroa Britânica extraíram 45 trilhões de dólares (nos valores de hoje) de 1765 a 1938 – o que não equivale a nem mesmo os dois séculos completos de domínio colonial. Em outras palavras, a pilhagem foi equivalente ao valor de duas décadas do atual Produto Interno Bruto (PIB) da Índia, de 2,5 trilhões de dólares.

A consequência de tal sangramento tão severo de recursos foi que, mesmo em momentos de boas safras, os camponeses mal tinham comida suficiente para sobreviver. Em anos ruins – quando a estação das monções chegava ao fim – os agricultores mal conseguiam juntar dinheiro suficiente para pagar seus impostos antes de cair em meses de fome total. Os camponeses não conseguiam economizar dinheiro ou comida em anos bons porque a tributação impedia qualquer economia. Isso os deixava ainda mais vulneráveis nos anos ruins. Quando a seca ou quebra de safra vinha, como inevitavelmente acontecia, os fazendeiros não tinham proteção contra a atrocidade da fome.

Entre 1850 e 1899, os camponeses indianos sofreram 24 fomes, uma a cada dois anos. Essas fomes mataram milhões de pessoas: durante a fome de 1876-1879, 10,3 milhões de pessoas morreram; na de 1896-1902, a baixa foi de 19 milhões. William Digby, um jornalista que relatou a fome de Madras, em 1876, escreveu, em 1901, que quando “o papel desempenhado pelo Império Britânico no século XIX for considerado pelos historiadores, daqui a 50 anos, as mortes desnecessárias de milhões de indianos serão seu principal e mais notório monumento”.

A memória dessas fomes – particularmente a fome de Bengala de 1943 – garantiu que o novo Estado indiano abolisse os impostos sobre o campesinato, o que eliminou a ameaça da fome e permitiu que os camponeses usassem seus rendimentos para investir em suas terras para melhorar a produção de alimentos. Durante as secas, o governo garantiu que o campesinato recebesse alimentos para evitar a fome extrema. Esta não foi eliminada, mas a fome extrema certamente foi.

No entanto, o Estado indiano, controlado pela grande burguesia e pelos latifundiários, preservou as hierarquias econômicas agrárias que os britânicos haviam legado a eles. Ao contrário da URSS e da República Popular da China, a Índia independente não combateu as hierarquias socioeconômicas das aldeias. Sob pressão do movimento de esquerda, forte em certas regiões da Índia, o governo indiano implementou reformas agrárias fracas; a redistribuição de terras era insignificante e limites a propriedades de terra não foram implementados devido ao controle que os proprietários de terras tinham sobre o sistema político em suas regiões. A legislação de arrendamento em diferentes estados teve impacto, uma vez que os camponeses em alguns estados obtiveram os títulos das terras que cultivavam. A concentração de terras permaneceu alta e a exploração neofeudal do pequeno campesinato e dos trabalhadores agrícolas sem terra, principalmente das castas oprimidas, continuou.

Em vez de modernizar o setor agrícola, a classe dominante indiana conduziu a industrialização liderada pelo setor público, incluindo a construção de enormes represas e projetos de irrigação. No final da década de 1950, a industrialização da Índia colidiu com os limites impostos por uma agricultura não reformada. O crescente setor industrial precisava de matérias-primas agrícolas e a expansão da força de trabalho industrial aumentou a demanda por alimentos. A escassez destes, consequentemente, tornou-se frequente, o que fez com que o preço dos grãos aumentasse; essa pressão inflacionária desacelerou a industrialização. As reservas de moeda estrangeira da Índia estavam quase esgotadas, o que limitou a capacidade do governo de importar grãos alimentícios.

Em 1965, os Estados Unidos haviam se tornado o principal exportador de grãos alimentícios para a Índia. O governo então implorou aos EUA em 1956 que os fornecessem sob a Lei Pública 480, segundo a qual a Índia importava grãos, principalmente trigo, e pagava aos EUA em moeda indiana, o que impediu a Índia de entrar em uma crise cambial mais profunda. Os EUA usaram o esquema da Lei Pública 480 para pressionar o governo indiano a alterar suas políticas, sobretudo a externa não alinhada da Índia. Um diplomata estadunidense disse que os grãos enviados para a Índia eram de má qualidade, úteis para ração de aves, mas não para consumo humano.

Devido às guerras da Índia com a China (1962) e com o Paquistão (1965), as reservas cambiais caíram drasticamente. Uma seca em 1965 reduziu a produção de alimentos em 20% no ano agrícola de 1965-1966. Políticos e diplomatas indianos defenderam mais importações de grãos de Washington, que enviaram menos do que o necessário para pressionar pela mudança de duas políticas: primeiro, desmantelar o modelo de substituição de importações de desenvolvimento econômico e abrir o país ao investimento estrangeiro e comércio; segundo, enfraquecer os laços com a URSS e cessar as críticas à guerra dos EUA no Vietnã. Quando a primeira-ministra Indira Gandhi foi a Washington, em 1966, para se encontrar com o presidente dos EUA, Lyndon Johnson, ela concordou com as condições estadunidenses e do Banco Mundial para suspender as restrições às importações, liberar um conjunto de indústrias, permitir investimentos dos EUA na produção de fertilizantes e desvalorizar a rupia indiana em 57%. Como resultado, a inflação disparou e a economia entrou em uma crise mais profunda. O governo da Índia acreditava que os EUA enviariam grãos e que o Banco Mundial concordaria com um pacote monetário, mas nem um nem outro cumpriram sua parte no trato. Isso foi uma humilhação para o governo indiano, um reconhecimento de que continuava dependente do sistema imperialista.

Durante esta crise, houve uma percepção nos círculos da elite de que, para um país tão grande como a Índia, alimentar seu povo com importações não era uma opção. Isso não seria apenas um convite à intervenção imperialista em sua soberania: permitir que a segurança alimentar de milhões de indianos permaneça dependente da oferta e dos caprichos dos preços dos mercados internacionais seria uma receita para uma grave crise interna. Essa constatação obrigou o governo indiano a buscar opções internas para alcançar a segurança alimentar e sair da crise.

Uma camponesa participa em uma carreata preparatória na fronteira de Singhu, em Dehli, em 7 de janeiro de 2021 Vikas Thakur / Instituto Tricontinental de Pesquisa Social

Dois caminhos para sair da crise

O governo indiano tinha dois caminhos para sair da crise:

  1. Redistribuição de terras. O governo indiano poderia ter implementado reformas agrárias por meio da redistribuição de terras, o que significaria entregar terras às famílias rurais sem-terra. A concentração fundiária havia se tornado um obstáculo ao aumento da produtividade agrícola. As relações neofeudais significavam que os proprietários podiam extrair altos aluguéis de seus inquilinos, bem como explorar trabalho gratuito dos inquilinos para seu uso pessoal.
    Os proprietários usavam a renda do aluguel da terra em empréstimos de dinheiro, em vez de investir em suas terras e em tecnologia. Os inquilinos que arrendavam a terra não usavam sua própria renda para melhorá-la e, além do mais, o aluguel alto consumia a maior parte de sua renda excedente. A falta de investimento na agricultura impediu altas taxas de crescimento. A redistribuição de terras, juntamente com os investimentos públicos em infraestrutura agrícola, teria aumentado a equidade socioeconômica e o crescimento econômico. O crescimento teria sido seguido por aumento da produtividade e aumento do consumo dos camponeses, o que teria estimulado a industrialização rural.
  2. A Revolução Verde. No início da década de 1960, o agrônomo Norman Borlaug desenvolveu variedades anãs de trigo de alto rendimento, que exigiam fertilizantes químicos e irrigação em escala industrial. Essa nova tecnologia agrícola de variedades de alto rendimento era muito mais produtiva em comparação com as tecnologias indígenas existentes. Assim, a Revolução Verde foi uma escolha agradável para a classe dominante indiana, que sentiu que isso aumentaria a produtividade agrícola sem reforma agrária.
    De fato, as reformas agrárias e a tecnologia da Revolução Verde não precisam ser vistas como dois elementos que se excluem mutuamente; a combinação de ambos, usada criteriosamente, poderia ter criado altas taxas de crescimento agrícola que beneficiariam o campesinato. O Estado indiano, no entanto, optou por evitar a reforma das relações fundiárias e se concentrou na Revolução Verde.

Em 1961, 12% das famílias rurais possuíam mais de 60% das terras agrícolas nas aldeias da Índia. Uma vez que o objetivo do governo era aumentar a produção agrícola para promover a autossuficiência em grãos alimentares em benefício da industrialização, fazia sentido implementar a tecnologia da Revolução Verde para beneficiar os grandes agricultores capitalistas. Melhorar a subsistência das massas rurais e alcançar a igualdade socioeconômica não eram as principais considerações. Supunha-se que os benefícios chegariam ao restante das famílias rurais à medida que a produtividade aumentasse e a renda dos fazendeiros ricos aumentasse.

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