O escritor, jornalista e sociólogo marxista, José Carlos Mariátegui, faleceu prematuramente neste dia em 1930. Ele inspirou muitos revolucionários latino-americanos do século XX, de Che Guevara aos zapatistas, e agora tem um livro que destrincha todo seu legado.
Por Deni Alfaro Rubbo e Silvia Beatriz Adoue
Ahistória do marxismo não se pode reduzir às tendências prevalecentes na esquerda do fim do século XIX até hoje. Tampouco é uma linha homogênea. Existe uma constelação intelectual e política subterrânea pulsando nessa corrente heterogênea, reprimida pela centralização burocrática e pelo reformismo social-liberal. Na América Latina uma das estrelas mais visíveis dessa tradição errante é a figura de José Carlos Mariátegui (1894-1930).
Ao longo das décadas, a obra do marxista peruano tem se mostrado como uma das referências essenciais do nosso tempo. Marxista convicto e confesso, como ele mesmo gostava de se definir, suas hipóteses heréticas sobre diversos temas candentes da vida social parecem ainda possuir uma espantosa atualidade, como um espectro que vem assombrar o pensamento achatado e superficial tão em voga no tempo presente.
“Precursor”, “pioneiro”, “original”, “autêntico”. Esses e outros adjetivos similares são atribuídos constantemente por autores de diferentes quilates quando se referem à produção marxista de Mariátegui. Essa fama póstuma assenta-se na ideia de que, no conjunto de seu projeto político-teórico, a relação entre América Latina e marxismo não se construiu por meio do encadeamento mecânico dos efeitos e das causas, da cópia descarada da teoria produzida na Europa, de aplicação imediata de fórmulas positivistas. Para ele, o marxismo não era uma religião de salvação terrestre e a América Latina não seguia o trem da história do progresso homogêneo e linear. Nessa complexa relação, enigmática e insinuante, emergia uma temporalidade histórica dissonante na América Latina. As temporalidades aparentemente descompassadas marcaram a matriz da exploração capitalista, mas também apresentam, no olhar de Mariátegui, fulgores de possibilidades futuras.
Mas, afinal, a tradição teórica inaugurada por Marx não era tributária de uma fervorosa apologia à teleologia da história e do determinismo econômico, confiante nas engrenagens do progresso, como afirmam as centenas de narrativas liberais, social-democratas e neostalinistas? Em seu belo livro Marx, o intempestivo, Daniel Bensaïd assevera que a contribuição decisiva de Marx é uma nova representação da história. Contrariamente às formulações de cunho positivista e fatalista, a “nova escrita da história” de Marx estaria plasmada no desenvolvimento desigual entre as diferentes esferas de uma formação econômico-social específica e uma abordagem crítica da noção abstrata de progresso. Uma concepção “aberta” da história que caminha nos trilhos da incerteza do presente. Um futuro que não estava desenhado de antemão, definido, garantido. Ora, foi uma nova escrita da história latino-americana que Mariátegui começou a produzir depois de seu périplo europeu, no qual afirmou “o dever de uma tarefa americana”.
A originalidade do socialismo latino-americano
Omarxismo crítico de Mariátegui estava ciente da relação tensa entre uma realidade dinâmica e o imperativo de interpretá-la e transformá-la. Para torná-lo palpável na América Latina era preciso questionar sobre seus alcances e limites. O socialismo na América Latina implicaria um difícil encontro entre passado e futuro. Por isso, buscou apreender o enigma latino-americano e suas peripécias históricas através da “criatividade heroica”, expressão que certamente causara calafrios às ortodoxias constituídas do terror burocrático: “não queremos, certamente que o socialismo seja na América decalque e cópia. Deve ser criação heroica”.
Decifrar a esfinge latino-americana sem decalque nem cópia e sim criação heroica para novas gerações, sentenciava Mariátegui. Essa orientação teórica e política de formidável alcance serviu de bússola para gerações de intelectuais-militantes e para a sociologia crítica latino-americana, que encontrou distintas maneiras de discorrer sobre as complexidades e heterogeneidades da região. “Modernidade sem modernidade”; “a originalidade da cópia”, “desenvolvimentos desiguais e combinados”, “coexistência dos tempos”, “tempos mistos e superpostos”.Como bem assinala Patricia Funes, são diferentes maneiras de abordar sociedades policromas e bastante reticentes às categorias acabadas ou cristalizadas. Em alguma medida, na história intelectual das ideias da América Latina, vertentes teóricas como a Teoria da Dependência e, atualmente, os “estudos pós-coloniais” são devedores diretos ou indiretos das ideias de Mariátegui.
O espectro de Mariátegui não ronda apenas no campo da esquerda político-intelectual peruana. Também desvenda o enigma do capitalismo dependente na América Latina. E sinaliza uma estratégia na “agonia” (tal como Miguel de Unamuno definia a luta) e resistência das organizações sociais e políticas. Não é coincidência que, atualmente, o maior público de sua obra fique majoritariamente no campo da militância política. Por exemplo, a Escola Nacional Florestan Fernandes (ENFF), a principal escola de formação política do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), localizada na cidade de Guararema (São Paulo), tem ministrado dezenas de cursos sobre o marxista andino para diversos movimentos sociais da América Latina.
A obra de Mariátegui expressa um amplo e variado campo temático. Transitou entre questões literárias, artísticas, sociológicas e políticas. Provavelmente a profissão de jornalista, que exerceu durante toda a vida, o motivava a escrever sobre assuntos tão diversificados. Do ano de sua precoce morte, 1930, até o presente momento, muito se escreveu e discutiu sobre ele. Por um lado, alguns aspectos de sua trajetória e obra parecem se repetir, principalmente questões políticas e teóricas dos seus últimos anos de vida que geraram polêmicas e dissidências no seu itinerário, como as relações político-ideológicas com a Alianza Popular Revolucionária Americana (APRA) e com a Internacional Comunista, a especificidade do marxismo, a concepção de socialismo indo-americano, a relação entre política e religião. Por outro lado, outros aspectos ainda necessitam de estudos mais rigorosos para, enfim, iluminar uma interpretação global de seu pensamento e tempo.
O legado mariateguista
No livro Espectro de Mariátegui na América Latina, procuramos mesclar contribuições a respeito de Mariátegui de temas mais conhecidos e de menor audiência. Assim, será possível telegrafar ao leitor brasileiro momentos dessa trajetória errante e o desenvolvimento de algumas de suas ideias. Eis aqui o objetivo deste livro. Obviamente, não pretendemos esgotar a trajetória e o pensamento do autor. Muito pelo contrário. Aliás, seria preciso de mais alguns volumes para conseguir abarcar a totalidade do conjunto de seu pensamento. Na realidade, trata-se de um estímulo para que outros militantes e pesquisadores se inquietem com esse personagem errante da América Latina. É também um convite à leitura da variada obra do autor peruano.
Saiba mais em: https://jacobin.com.br/2021/04/jose-carlos-mariategui-e-a-aventura-inconclusa/
Comente aqui