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Julius Deutsch, o antifascista que organizou trabalhadores no esporte

O socialista austríaco Julius Deutsch foi uma figura-chave nos clubes esportivos dos trabalhadores da Viena Vermelha. Fundador da militância trabalhista de Schutzbund, Deutsch e seus camaradas usaram o orgulho de classe construído no campo esportivo para se mobilizar contra a ascensão do fascismo.

Uma entrevista com  Gabriel Kuhn /  Tradução: Cauê Seignemartin Ameni

Hoje em dia, o controle empresarial sobre os esportes é galopante – e está estendendo seu controle sobre o espaço público em geral. Os recentes Jogos Olímpicos e Copas do Mundo fizeram os países anfitriões suspenderem os direitos democráticos garantidos constitucionalmente a fim de suprimir as críticas a esses mega-eventos e às marcas que os usam como plataforma de propaganda. Confrontado com à crítica a publicidade agressiva de marcas como a Coca Cola nos campeonatos como a Eurocopa 2020, o gerente da Inglaterra, Gareth Southgate, insistiu que essas empresas são cruciais para investir em instalações esportivas populares.

Mas os esportes não precisam ser assim. No período entre as guerras, um movimento vibrante dos trabalhadores conectou os esportes à auto-organização da classe trabalhadora e uma forte rejeição aos promotores corporativos e clubes profissionais. Na década de 1920, as organizações ligadas ao Socialist Workers’ Sport International (SASI) contavam com mais de um milhão de membros, enquanto o Red Sport International (RSI), do centro soviético, tinha cerca de dois milhões. As Olimpíadas dos Trabalhadores do SASI foram um ponto alto desse movimento: os jogos de 1931 em Viena tiveram mais espectadores e participantes do que os Jogos Olímpicos de Verão de 1932 em Los Angeles.

Na Áustria, o movimento esportivo dos trabalhadores estava intimamente ligado à defesa dos trabalhadores contra a crescente ameaça fascista. Uma de suas figuras mais importantes foi Julius Deutsch, que também fundou a militância antifascista em Schutzbund e se tornou um conselheiro militar na Guerra Civil Espanhola. Uma introdução valiosa ao trabalho de sua vida aparece em Antifascism, Sports, Sobiety: Forging a Militant Working-Class Culture, uma seleção de seus escritos publicados pela PM Press. Gabriel Kuhn, que traduziu e editou o volume, falou com David Broder, da Jacobin, sobre a vida cultural do socialismo entre as guerras, os esportes dos trabalhadores e o antifascismo de Deutsch.


DB

Em sua introdução, você diz que os socialistas da Viena Vermelha não se organizaram apenas nos locais de trabalho ou buscaram esclarecer as massas, mas também construir uma ampla cultura de classe. Além da oferta real de instalações de lazer, as ideias de Deutsch sobre os esportes dos trabalhadores muitas vezes se concentravam no treinamento de uma base militante com uma certa disciplina e “ética”. Que experiências moldaram seu pensamento? Isso foi uma reorientação de uma cultura pré-existente de esportes dos trabalhadores?

GK

Eu diria que os aspectos culturais do movimento operário do início do século XX são sua característica mais marcante. Eles desafiam qualquer sugestão de que a política da classe trabalhadora deva se concentrar apenas ao local de trabalho e à organização sindical. Esses aspectos são, é claro, muito importantes, mas as ambições do movimento da classe trabalhadora na época eram muito mais amplas. O objetivo era nada menos do que uma nova sociedade, na qual valores “proletários” como comunidade, solidariedade e ajuda mútua substituiriam os valores “burgueses” como individualismo, competição e obtenção de lucro.

Viena Vermelha” representou uma transformação social fundamental durante a governança da cidade pelos chamados austromarxistas, que estavam organizados no Partido Operário Social-Democrata Austríaco (SDAP). O SDAP foi o partido mais radical dos social-democratas da Europa na época, tentando criar um caminho entre o reformismo e o bolchevismo. Havia clubes de esportes de trabalhadores, grupos de teatro de trabalhadores, círculos de estudo de trabalhadores, tudo isso.

Uma base militante era necessária para defender essas ambições. A Áustria estava politicamente muito polarizada. A velha aristocracia, a nova burguesia, a Igreja Católica, os camponeses que perceberam o movimento da classe trabalhadora como uma ameaça (especialmente no que diz respeito à propriedade da terra) e um movimento fascista emergente influenciado pelos camisas negras de Benito Mussolini – havia muitos inimigos. Eventualmente, uma coalizão deles acabou com a Viena Vermelha em 1934.

A Viena Vermelha significou uma reorientação do movimento esportivo dos trabalhadores? Certamente fortaleceu os laços entre o esporte dos trabalhadores e a militância da classe trabalhadora. O “Wehrsport” (literalmente, “esportes de defesa”, embora ser traduzido como “esportes paramilitares”), com foco em corrida cross-country, tiro esportivo e artes marciais, não teria sido tão central em outras circunstâncias. Mas as origens dos esportes organizados em geral estão intimamente ligadas à disciplina dos internatos e às Forças Armadas. Isso também se refletiu nos esportes dos trabalhadores.

DB

Hoje, muitos socialistas criticariam os efeitos do patrocínio empresarial, órgãos governamentais irresponsáveis e a megalomania dos Estados na formação de grandes eventos esportivos como a Copa do Mundo e as Olimpíadas. Mas Deutsch também criticava o espetáculo dos esportes profissionais como tal. Você poderia explicar o que foi isso?

GK

Para Deutsch, esportes eram experiências comuns que combinavam saúde, recreação e construção de autoconfiança. Qualquer coisa comercial era considerada resultado da influência e corrupção burguesas.

É muito fascinante ler a crítica de Deutsch a eventos como a “Luta de Contagem Longa” de 1927 em Chicago, onde Gene Tunney e Jack Dempsey lutaram pelo título mundial de boxe peso-pesado. Em alguns parágrafos, Deutsch lista quase tudo que ainda reconhecemos como aspectos negativos dos grandes eventos esportivos: o sensacionalismo, as “máquinas de propaganda”, o dinheiro envolvido, o foco nos recordes. Isso vai mostrar o quão relevante essa crítica ainda é, e também o quão longe a comercialização do esporte chega.

A crítica de Deutsch certamente contém um elemento do “ópio para as massas” que ainda é bastante comum entre a esquerda. A diferença é que Deutsch não vê isso como um problema do esporte como tal, mas de exploração capitalista. Em vez de condenar os esportes, ele buscava formas alternativas de praticá-los e organizá-los.

DB

Nas primeiras décadas do século XX, houve um movimento internacional de trabalhadores que organizou suas próprias Olimpíadas internacionais. Por que isso foi criado – e conseguiu ser genuinamente de massa? Qual análogos internacionais havia no caso austríaco?

GK

Deutsch entendeu o apelo do esporte para a classe trabalhadora muito cedo. Segundo a lenda, ele entrou no escritório de Victor Adler, o fundador da SDAP, com a tenra idade de 14 anos, exigindo a formação de um time de futebol no clube dos trabalhadores que frequentava. Deutsch explicou que o treinamento físico era tão importante para a classe trabalhadora quanto a busca pela educação. Adler ficou impressionado e colocou o jovem Deutsch sob sua tutela. Cerca de 20 anos depois, Deutsch se tornaria presidente da Liga dos Trabalhadores Austríacos para o Esporte e Cultura Corporal (ASKÖ) e do Socialist Workers’ Sport International (SASI). Deutsch estava convencido de que o movimento esportivo dos trabalhadores era essencial para fortalecer a classe trabalhadora e construir a consciência de classe.

O movimento esportivo dos trabalhadores certamente teve seguidores em massa. Em seu auge, o SASI organizou mais de 1 milhão de atletas trabalhadores por meio de suas afiliadas nacionais. Quase 80 mil participaram das Olimpíadas dos Trabalhadores de 1931 em Viena. Havia também cerca de 2 milhões organizados no Red Sport International (RSI), a contraparte comunista do SASI. A maioria dos membros do RSI veio da União Soviética.

A Áustria era um centro do movimento esportivo dos trabalhadores, mas o movimento também era forte em outros países. A Alemanha tinha uma liga nacional de futebol dos trabalhadores que rivalizava com a liga profissional. A única vantagem dos clubes profissionais era o dinheiro: eles recrutavam os melhores jogadores das equipes da classe trabalhadora, oferecendo-lhes salários e um alívio do trabalho na fábrica. Os jogadores que aceitavam essas ofertas eram frequentemente vistos como “traidores” por seus pares da classe trabalhadora. Era um clima altamente politizado.

Saiba mais em: https://jacobin.com.br/2021/07/julius-deutsch-o-antifascista-que-organizou-trabalhadores-no-esporte/

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