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Marcia Tiburi: ”Eu perdi meu país”

A escritora analisa o complexo de vira-lata brasileiro e a dor do exílio

Por Leneide Duarte-Plon / Créditos da foto: (Reprodução/bit.ly/3CVyVo1)

 

Além de escritora best-seller, Marcia Tiburi é professora de filosofia e artista plástica, autora de alguns livros de sucesso. “Como conversar com um fascista” lançou um inflamado debate no pós-golpe, em 2016.

Corajosa, ela deu um salto arriscado: lançou sua candidatura ao governo do Estado do Rio pelo PT, em 2018. Com a vitória do capitão e o clima de ódio instalado no país, sua vida no Rio ficou inviável. Ameaçada de morte, teve que se exilar.

Na França, ela se divide entre as aulas de filosofia na Universidade Paris-8 e a atividade de escritora e artista engajada, que prepara uma exposição para falar do Brasil, que ela vive de longe como uma ausência e um sofrimento.

“Busco usar meu tempo de modo produtivo, busco tornar o peso menos pesado. Mas nem sempre é possível. Há pouco mais de um mês, meu pai faleceu, e voltei a pensar que o exílio é um fardo pesado demais. Até comecei um livro com esse título, mas creio que não vou publicá-lo”, conta.

A impossibilidade de voltar ao Brasil é uma dura renúncia a parte de sua vida, de sua história:

“No começo eu pensava: como posso sofrer tanto por um país? Essa questão me levou a me conectar com questões da minha ancestralidade e, evidentemente, não seria possível atravessar isso sem muita psicanálise. Para além de qualquer nacionalismo que eu deploro, a experiência coletiva da morte de um projeto de país me toca muito.”

Em seu novo livro “Complexo de vira-lata: Análise da humilhação brasileira”, Marcia Tiburi utiliza a consagrada expressão de Nelson Rodrigues para fazer uma radiografia do Brasil.

“O fascismo à brasileira, que vem sendo chamado de “bolsonarismo”, não nasceu do nada, não é simplesmente uma invenção de um líder autoritário e tacanho. Ele tem suas raízes na ditadura militar, mas diz respeito a todo um processo relacionado à fragilidade da nossa democracia diante de um passado autoritário, do qual o presente autoritário é a expressão. Eu resolvi analisar os fundamentos disso e, a meu ver, a colonização que pesa sobre nós é o principal deles”, conta.

A seguir, a íntegra da entrevista:

Leneide Duarte-Plon: Desde o início de 2019 você está exilada na França. Por que o exílio e por que a França?

MARCIA TIBURI: Incialmente, uma instituição que protege escritores perseguidos me chamou para ficar nos Estados Unidos. Eu poderia ficar o tempo que quisesse, inclusive anos me dedicando aos meus livros. Mas surgiu essa oportunidade na Universidade Paris 8. Sair e não voltar não era a minha intenção inicial. Mas não surgiram condições para que eu voltasse ao Brasil até o momento, em nenhum sentido. Lá eu não tenho segurança e nem trabalho. E como professora e escritora, eu preciso trabalhar para viver e, no meu caso de pessoa atacada e ameaçada de morte, eu também preciso viver para trabalhar.

LDP: O que é o exílio?

M.T. : O exílio é uma solidão particular. Há muitos anos sonhei que eu estava em uma torre de vidro afastada de todo mundo. Me lembro desse sonho todos os dias e parece que ele se realizou em uma dupla medida. Me refiro a esse duplo estado de exceção. De um lado, como exilada, vivo o meu estado de exceção particular. Tenho a minha solidão particular (afetiva, política, concreta e pesada) e tento me entender com ela. De outro, há o estado de exceção sanitário que se abateu sobre nós. Se trata de um estado de exceção coletivo. Essa solidão partilhada vem fazer peso sobre a minha solidão particular. Carregar esse peso me custa muito, sobretudo no aspecto familiar e pessoal. Contudo, por mais que eu possa ter vocação para experiências e reflexões profundas, não tenho vocação para a tristeza profunda. Busco usar meu tempo de modo produtivo, busco tornar o peso menos pesado. Mas nem sempre é possível. Há cerca de um mês, meu pai faleceu, e voltei a pensar que o exílio é um fardo pesado demais. Até comecei um livro com esse título, mas creio que não vou publicá-lo.

LDP: Como você vive, como intelectual e ativista, o que se passa no Brasil a 10 mil quilômetros de distância?

M.T. : Parte do ano de 2020 e de 2021 foram vividos por todos via internet e redes sociais devido à pandemia. Para mim, foi uma época de aproximação com o Brasil através desses meios digitais. Eu atuei bastante na campanha das eleições de 2020, com as companheiras feministas. No final do ano, criamos o Levante Feminista contra o Feminicídio que segue unindo feministas de todos os estados, entidades e gerações. O Brasil está em mim e, em certo sentido, eu estou no Brasil. Meu corpo está aqui, mas meu coração está lá. E meu olhar avalia o que se passa sempre tendo em mente que é preciso encontrar soluções.

LDP: O escritor do Togo Sami Tchak disse em entrevista ao “Le Monde” que o exílio é uma « morte simbólica ». Em que consiste essa morte simbólica?

M.T. : É uma morte sim, talvez até mais que simbólica. Tenho a sensação de uma morte histórica. Eu sinto como se tivesse perdido o meu país. Esse é o meu luto. E sei que é o de muita gente, em condições diversas. Mas temos isso em comum. No começo eu pensava: como posso sofrer tanto por um país? Essa questão me levou a me conectar com questões da minha ancestralidade e, evidentemente, não seria possível atravessar isso sem muita psicanálise. Para além de qualquer nacionalismo que eu deploro, a experiência coletiva da morte de um projeto de país me toca muito.

LDP: O escritor cubano Reinaldo Arenas em sua autobiografia escreveu: “No exílio a gente se torna um fantasma, a sombra de alguém que não pode atingir sua própria realidade ». Qual aspecto de sua vida ficou mais inatingível no exílio?

M.T. : É muito duro perder o contato com a família. A morte do meu pai, o fato de eu ter acompanhado o seu velório pela internet. O fato de tê-lo visto morto dentro do caixão por meio de uma tela de celular foi impactante. Em certo sentido, a morte de meu pai tem algo de espectral. Como enterrá-lo virtualmente? Me questiono que relação com a morte teremos a partir da vida digital. Creio que a nossa relação com a morte define nossa relação com a vida, pelo menos para mim sempre foi assim e ainda mais agora em que a morte de tanta gente, e no Brasil a morte política de 600 mil pessoas, exige a nossa reflexão.

LDP: O que você ganhou ou aprendeu no exílio ?

M.T. : Eu perdi meu país. Eu espero tê-lo de volta. Eu realmente espero.

LDP: O que o Brasil representa hoje no mundo?

M.T. : Eu fico muito triste de ver o espanto, a pena e o desprezo que ele gera em pessoas que conhecem o nosso caso. Creio que os governos do mundo estão fazendo pouco caso, afinal, Bolsonaro foi eleito e isso o legitima. Todos fazem questão de esquecer que Hitler também foi eleito. Pelo menos Trump foi derrotado em uma eleição. Espero que o Brasil possa fazer bom uso desse método. Contudo, a questão do possível cancelamento das eleições não pode ser abandonada.

Saiba mais em: https://www.cartamaior.com.br/?/Editoria/Politica/Marcia-Tiburi-Eu-perdi-meu-pais-/4/52166

 

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