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Marcuse e as revoltas estudantis de 1968: uma conferência não publicada

O filósofo alemão Herbert Marcuse foi uma das principais fontes de inspiração da Nova Esquerda na Europa e nos Estados Unidos durante a década de 1960. Nesta palestra de maio de 1968, ele discute como as revoltas estudantis incendiavam as ruas e as universidades em Paris e Berlim.

Por Herbert Marcuse | Tradução Guilherme Ziggy

Em maio de 1968, o filósofo neomarxista Herbert Marcuse visitou Paris e Berlim no auge dos protestos organizados pelos movimentos estudantis que estavam sendo noticiados em todo o mundo. O texto apresentado aqui é a transcrição de uma palestra de duas horas sobre esses acontecimentos que Marcuse deu em 23 de maio de 1968, logo após seu retorno aos Estados Unidos, enquanto os resultados do movimento de maio na França ainda eram incertos. Ele oferece uma visão única sobre a maneira como um pensador creditado frequentemente por fornecer aos movimentos estudantis europeus de 1968 grande parte de sua energia ideológica os via à medida que se aconteciam.

Marcuse foi a Paris para participar de uma conferência acadêmica sobre “O papel de Karl Marx no desenvolvimento do pensamento científico contemporâneo”. Quando chegou, o movimento estudantil já estava em andamento e a imprensa francesa se referia a ele como o “ídolo dos estudantes rebeldes”. Ele ainda estava em Paris no dia 10 de maio, quando testemunhou os violentos confrontos entre os estudantes e a polícia no Quartier Latin, que ele narra em seu discurso. Em 13 de maio, ele estava em Berlim, onde teve um encontro amplamente divulgado com estudantes radicais e fez seus primeiros comentários sobre o movimento francês.

Marcuse então voltou para a Universidade da Califórnia em San Diego (UCSD) e, na quinta-feira, 23 de maio, falou para um público que lotou o maior auditório do campus. A essa altura, os protestos estudantis franceses haviam se transformado em uma onda nacional de greves que ameaçava o governo de Charles de Gaulle, embora, como Marcuse previu, o líder francês estivesse prestes a reafirmar sua autoridade. Jeremy Popkin, então um estudante de graduação em um dos cursos de Marcuse e agora professor de história na Universidade de Kentucky, transcreveu a palestra e preparou uma versão resumida que foi publicada pela primeira vez no jornal dos estudantes da UCSD e, finalmente, nos ensaios publicados de Marcuse.


Omovimento começou de uma forma inocente, como um movimento pela reforma da universidade. A coisa toda foi aparentemente provocada por uma manifestação em Nanterre, um novo campus da Universidade de Paris, e medidas disciplinares subsequentes contra estudantes que haviam participado de uma manifestação contra a guerra no Vietnã. O que se seguiu foram manifestações em Paris, na Sorbonne, e as reivindicações tinham um objetivo claro: a reforma radical da estrutura antiquada e totalmente medieval da universidade.

As demandas eram principalmente para a contratação de mil novos professores, a construção de novas salas de aula e instalações para o estudo na biblioteca e uma reforma completa do sistema de provas rígido e maluco. Para dar mais peso a essas demandas, os alunos se manifestaram no pátio da Sorbonne. Por uma razão que ninguém entende – a manifestação foi perfeitamente pacífica – o reitor da universidade, aparentemente por sugestão do ministro do Interior, pediu que a polícia esvaziasse o pátio. A polícia apareceu e invadiu a Sorbonne, pela primeira vez na história da universidade.

Esta foi realmente uma novidade histórica. As universidade europeias estão imunes à polícia. A polícia não pode entrar nas universidades, e essa é uma das tradições mais antigas que é realmente seguida na França e em outros países. Foi a primeira vez na história que a polícia interveio e liberou o pátio à força, com várias centenas de estudantes feridos.

O que se seguiu foram manifestações cada vez maiores, começando em partes muito remotas de Paris, convergindo para o Quartier Latin. Nesse ínterim, a Sorbonne foi fechada e toda a região ao redor da universidade foi bloqueada e ocupada pela polícia. Os estudantes agora exigiam que sua universidade fosse aberta novamente para eles, e que o Quartier Latin, que eles consideravam seu próprio bairro, não tivesse mais polícia e se tornasse novamente público.

Construindo as barricadas

Eles seguiram para a Sorbonne e, como havia surgido a notícia de que a polícia voltaria a liberar a região à força, barricadas foram construídas. Este foi um evento realmente espontâneo. O que aconteceu é que os alunos simplesmente pegaram os vários automóveis que estavam estacionados, não só nas ruas, mas também nas calçadas, e sem a menor consideração pela propriedade privada, viraram os carros e os colocaram direto nas ruas. Não nas largas avenidas, o que teria sido impossível, mas nas velhas ruas estreitas ao redor da universidade.

Em cima dos carros, eles colocaram todos os tipos de coisas de madeira, lixo, caixas, latas de lixo – tudo o que puderam encontrar. Em seguida, eles arrancaram as placas de rua ­– “Mão única”, “Pare” ou que quer que fosse – e com as placas de rua eles soltaram o pavimento da rua. Não preciso comentar aqui como se faz uma revolução – seria impossível de qualquer maneira aqui, porque as ruas são muito apertadas. Assim eles soltaram os bons e velhos paralelepípedos de Paris, que já haviam servido na revolução de 1848 e 1870, e os usavam como armas contra a polícia.

Também se armaram com as tampas das latas de lixo, e com correntes de aço, e colocaram tudo o que encontraram em cima das barricadas e dos automóveis, principalmente esses anéis de ferro que ficavam em volta das árvores nas ruas. Eles construíram até uma altura de de três metros e meio a quatro metros, e a palavra de ordem era não atacar a polícia, mas confrontá-las nas barricadas.

Tudo correu bem até cerca de 2h30 da manhã, quando a polícia finalmente obteve a ordem para liberar as ruas e destruir as barricadas. O que aconteceu é que a polícia usou bombas de gás, gás lacrimogêneo – supostamente também gás à base de cloro. Eles negam, mas as evidências parecem corroborar essa versão. Eu mesmo vi os alunos com os rostos todos vermelhos, rugas inflamadas, os olhos todos inflamados. Eles usaram esse gás e o resultado é que as barricadas tiveram que ser evacuadas.

Ninguém pode, sem uma máscara, suportar esses gases. Se eles tivessem máscaras de gás, provavelmente teriam sido capazes de derrotar a polícia, porque a polícia de Paris não atira. Eles não têm pistolas e revólveres. Eles têm apenas seus cassetetes.

As empresas de segurança também têm rifles e carabinas, o que é uma proteção para os alunos, porque eles não podem atirar de forma simples e rápida com um rifle no corpo a corpo como você pode atirar com uma pistola e uma arma pequena. O gás forçou os estudantes a deixar as barricadas e fugir, depois, a polícia aparentemente atirou granadas incendiárias e incendiou as barricadas.

Gostaria de reforçar que durante todo esse tempo – e esta é a maior diferença entre os acontecimentos em Paris e aqui – a população do bairro [Quartier Latin] foi definitiva e decisivamente simpática com os alunos, e eles jogaram todo o tipo de coisas das janelas dos apartamentos para atingir a polícia. Ainda se usam penicos em Paris, e eles jogaram os dejetos com todo o tipo de lixo. Em resposta, a polícia atirou granadas de gás dentro dos apartamentos.

Agora eles tinham que deixar as barricadas. Eles tentaram fugir e descobriram que suas próprias barricadas se tornaram um obstáculo, porque haviam fechado a rua nas duas extremidades, e simplesmente não conseguiam encontrar a saída. Eles foram literalmente espancados com os professores – aliás, gostaria de acrescentar que os professores que estiveram presentes ficaram do início ao fim junto aos alunos com muita energia. Eles saíram para as ruas; estavam com eles nas barricadas e ajudavam onde podiam.

A barricada do outro lado da rua bloqueou a fuga dos estudantes e a polícia teve um jogo fácil. Havia no total cerca de 800 feridos naquela noite, e desses 800, cerca de 350 eram policiais, o que não é uma proporção ruim.

Saiba mais em: https://jacobin.com.br/2021/06/marcuse-e-as-revoltas-estudantis-de-1968-uma-conferencia-nao-publicada/

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