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México: o combate às cegas de Lopez Obrador

Eleito em crítica ao neoliberalismo, presidente elevou salários, lançou programas sociais e segue popular. Mas, egocêntrico e arcaico, ataca o feminismo, despreza o ambiente, amplia a “guerra às drogas” e, diante da covid, produziu tragédia

Por Humberto Beck, Carlos Bravo Regidor e Patrick Iber | Tradução: Simone Paz

Quando Andrés Manuel López Obrador (AMLO) foi eleito presidente do México, em 2018, ele prometeu um governo “para o bem de todos, mas para os pobres primeiro”. Comprometeu-se a romper com o neoliberalismo e suas desigualdades, sua violência e corrupção. Depois de mais de dois anos no poder, López Obrador permanece retoricamente comprometido com uma visão de igualdade. Mas ele procura essa visão com um conjunto de ideias bem inflexíveis. À medida que novos objetivos surgem, ele não se adapta. Sua inflexibilidade ameaça boicotar a própria promessa que sua eleição representou.

A forma como seu governo enfrentou o coronavírus ilustra de forma emblemática esse problema. Quando os casos de COVID-19 começaram a surgir no México na primavera [nórdica] passada, a resposta de AMLO beirou a negação. Um bloqueio total teria sido difícil de realizar em um país onde a maioria da população ganha a vida com o trabalho informal. “Não consigo parar de trabalhar”, disse um vendedor de hambúrguer aos repórteres. “Se eu não vendo, não como. Simples assim.” Mas as próprias atividades de AMLO demonstravam falta de preocupação com a disseminação do vírus. Inicialmente, ele não mudou sua prática de viajar pelo país, o que o colocou em contato próximo com milhares de seus apoiadores. Também promoveu desinformação mortal. No final de março, durante uma de suas conferências matinais diárias, AMLO mostrou um par de “amuletos” e disse que estes iriam proteger da pandemia a si mesmo e ao país. Mesmo depois de ter contraído o vírus — e de ter se recuperado — no início de 2021, AMLO opta por não usar máscara em público.

Com o aumento do número de casos, o governo suspendeu grandes aglomerações e as aulas presenciais, mas evitou impor um bloqueio obrigatório. Mensagens públicas inconsistentes encorajavam restrições voluntárias, pedindo aos mexicanos que mantivessem uma distância social segura. Apesar de muitas pessoas não terem escolha além de continuar trabalhando fora de casa para sobreviver, o México apresentou uma redução de 8,5% no produto interno bruto em 2020, sua pior contração econômica em quase noventa anos.

López Obrador, para manter seu compromisso com a “austeridade republicana”, deu um apoio financeiro direto mínimo. Ele anunciou que grandes empresas não mereciam apoio, pois haviam sonegado impostos: “Chega de resgates como os dados aos bancos na era do neoliberalismo”. Mas o governo de AMLO também ofereceu pouca ajuda às pessoas comuns. Alguns benefícios foram distribuídos no início, mas não houve nenhum esforço em grande escala para fornecer seguro ou renda básica para os milhões que se viram sem trabalho. Os gastos mexicanos com o auxílio ao coronavírus continuam entre os mais mesquinhos do mundo: menos de 1% do PIB. Esse número contrasta com as políticas de socorro de outros países latino-americanos; por exemplo, os pacotes de ajuda do Chile e do Brasil, totalizaram cerca de 8% do PIB.

O coronavírus devastou o México. Em setembro de 2020, AMLO sustentava que o pior já havia passado. Mas no final de 2020 os casos dispararam, com o pior pico no final de janeiro deste ano. Surgiu um mercado paralelo dos tanques de oxigênio, à medida que as pessoas passavam a tentar cuidar de familiares doentes que não poderiam ou não queriam ter acesso a hospitais públicos. De acordo com dados da Universidade Nacional Autônoma do México, algo entre 18 e 55 milhões de mexicanos (em um país de cerca de 130 milhões) contraíram o vírus. O México tem a menor taxa de testes nas Américas e a maior taxa de positividade. No final de fevereiro, o governo relatou aproximadamente 185 mil mortes por covid-19. O México, com a décima maior população do mundo, ficou em terceiro lugar no mundo em mortes, atrás apenas dos Estados Unidos e do Brasil. Mas olhar para o “excesso de mortes” em comparação com os anos anteriores, revela que os números oficiais mascararam grosseiramente o custo da covid para o México: em meados de dezembro, já havia 380 mil mortes “excedentes”.

Ao retornar, depois de ter se recuperado da covid, no início de fevereiro, AMLO falou com otimismo sobre o lançamento de um programa de vacinação, mesmo tendo uma oferta muito mais limitada do que países mais ricos como os Estados Unidos. Mas as informações públicas têm sido escassas e contraditórias, e as prioridades parecem mudar com a chegada de cada nova remessa. O plano de vacinação inclui a organização de “brigadas” compostas não só por pessoal médico, mas também por militares e operadores políticos da Secretaria de Serviço Social, decisão que levanta suspeitas e preocupações quanto ao potencial de manipulação ou de favoritismos dentro do programa de imunização. Além disso, em sentido oposto às recomendações epidemiológicas, o governo anunciou que priorizaria áreas rurais distantes em vez de áreas urbanas altamente populosas, onde o contágio é mais provável. As autoridades tentaram justificar essa decisão com base na justiça social, mas uma implementação ineficiente só aprofundará e prolongará a emergência, que atinge mais duramente os pobres.

Embora essas falhas do governo em resposta ao coronavírus sejam particularmente agudas, padrões semelhantes aparecem também em outras áreas da sua política. Obrador continua a criticar as distorções do neoliberalismo, mas seu governo está, em grande medida, fracassando em construir uma alternativa eficaz a ele. No entanto, mesmo com o afastamento gradual de ex-apoiadores do governo e com as críticas aumentando, o nível de apoio popular a López Obrador permanece alto. Em janeiro de 2021, seu índice de aprovação era de cerca de 62%. Sua longeva popularidade depende parcialmente do que ele já entregou; e, principalmente, do que ele continua a representar.

Os primeiros dois anos de AMLO no cargo não foram, de todo, um absurdo. Embora os críticos tenham se dedicado a bater em sua falta de transparência e nas ameaças que ele representa para a autonomia das instituições democráticas, o governo de AMLO promoveu com sucesso políticas para reduzir a desigualdade. O governo federal deu três aumentos de salário mínimo: de 16% em 2019, de 20% em 2020, e 15% em 2021. Esses aumentos são passos importantes para começar a reverter um período de décadas de estagnação de renda, durante o qual o poder de compra dos trabalhadores diminuiu significativamente. Um aumento na inflação — o resultado que os detratores dessa política sempre temem — não ocorreu. Além disso, o governo federal tem se esforçado em combater a precariedade do mercado de trabalho, especialmente no setor informal. Em 2020, ratificou a Convenção 189 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) sobre os direitos dos trabalhadores domésticos — uma medida que as organizações da sociedade civil vinham exigindo há quase uma década.

A coalizão de AMLO, que tem maioria em ambas as câmaras legislativas lideradas por seu partido, o MORENA, também aprovou um projeto de lei em 2019 que pode renovar o movimento sindical do país, facilitando a formação de sindicatos verdadeiramente independentes e democráticos. Sob o antigo e corporativista sistema de governo, os sindicatos eram acessórios de poder do Partido Revolucionário Institucional (PRI), estendendo privilégios em troca de votos e da supressão de demandas trabalhistas mais radicais. Muitas organizações de trabalhadores nunca cumpriram os padrões democráticos — e, assim, práticas injustas e autoritárias sobreviveram ao fim do regime do PRI. As reformas trabalhistas do MORENA incluem novas regras para assegurar liberdade sindical e democracia, para estabelecer a independência dos juízes trabalhistas e para melhorar a posição de negociação dos trabalhadores.

A implementação das reformas trabalhistas vai levar anos e há razões para se preocupar com a possibilidade de o governo enfraquecer alguns dos aspectos mais importantes desse projeto de lei. Há muito tempo que o debilitado sistema de justiça do México impõe leis e regulamentos de forma intermitente e desigual. O governo de AMLO, longe de fortalecer as capacidades institucionais do estado mexicano, reduziu-as sistematicamente. E embora o MORENA tenha conseguido aprovar esta reforma, ela foi construída sob pressões externas — da OIT, da Parceria Transpacífica e da renegociação do Acordo de Livre Comércio da América do Norte (NAFTA) –, todas as quais exigiram que o México adotasse padrões internacionais de independência sindical. Obrador mantém uma relação muito boa com os gigantes trabalhistas da velha ordem política, como os sindicatos de professores e petroleiros. Ele também é próximo à Confederación Autónoma de Trabajadores y Empleados de México (CATEM), uma nova federação de trabalhadores que pode acabar se tornando a base de um arranjo sindical pró-AMLO. E, embora o MORENA tenha promovido os direitos trabalhistas no setor privado, a implementação de medidas de austeridade severas na maioria dos órgãos do governo federal resultou em reduções de salários e benefícios no setor público.

Para além da força de trabalho, a principal política de bem-estar de AMLO tem sido um ambicioso conjunto de transferências monetárias incondicionais para idosos, mães solteiras e pessoas com deficiência, bem como estágios remunerados para jovens adultos. Esses programas destinam-se a fornecer assistência àqueles que precisam urgentemente, e a trazer pessoas marginalizadas para a economia nacional. De acordo com os números do governo, as transferências atingem 65% mais beneficiários do que os programas sociais anteriores. Analistas independentes duvidam da precisão desses números, no entanto, porque eles se baseiam em um “Censo do Bem-Estar” ambíguo, que não oferece uma maneira confiável de verificar se as transferências monetárias estão de fato chegando em seus destinatários.

Tem havido debates acirrados sobre se essas transferências de dinheiro são uma oportunidade para aumentar a corrupção ou se podem, na verdade, reduzi-la. Os defensores do programa argumentam que sua principal característica é o estabelecimento de um vínculo direto entre o Estado e os beneficiários do programa — o dinheiro vai diretamente para as pessoas, deixando de fora quaisquer intermediários. Mas, como alguns críticos de esquerda, como Milena Ang e Tania Islas, argumentaram, as transferências de dinheiro diretas podem “replicar perversamente a lógica neoliberal” ao desgastar as instituições de bem-estar e “jogar sobre os indivíduos a responsabilidade por seu próprio bem, em um ambiente competitivo, de economia de mercado”. Não é nenhum alívio saber que funcionários do governo têm descartado rapidamente casos em que a corrupção e usos indevidos foram identificados — por exemplo, na administração de bolsas supostamente destinadas a ajudar jovens desempregados a aprenderem habilidades profissionais. Além disso, devido aos cortes orçamentários em outras áreas, os gastos sociais sob AMLO permanecem abaixo dos níveis vistos no período entre 2009 e 2016. Ainda assim, quando os mexicanos são interrogados sobre o que AMLO fez de melhor no cargo, os programas sociais ainda são, de longe, os mais populares nas respostas.

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