Clipping

Não podemos construir um caminho para fora da crise ambiental

Novos projetos de infraestrutura estão a vapor no pós-pandemia. Mas quem se beneficia com uma maré crescente de concreto?

Por George Monbiot |Créditos da foto: (Maureen McLean/REX/Shutterstock) |Tradução: Isabela Palhares

Escave para a vitória: esse, ressignificado da 2ª Guerra Mundial, poderia ser o slogan dos nossos tempos. Ao redor do mundo, governos estão usando a pandemia e a crise ambiental para justificar novos gastos excessivos em infraestrutura. Nos EUA, o conceito bipartidário de infraestrutura de Joe Biden “tornará a nossa economia mais sustentável, resiliente e justa”. No Reino Unido, o programa que fala sobre “construir novamente de uma forma melhor” de Boris Johnson “unirá e elevará o nível do país”, sob o banner do “crescimento verde”. O projeto de cinturão e estrada da China unirá o mundo em uma harmonia e prosperidade hiper-conectadas.

É claro, precisamos de novas infraestruturas. Se as pessoas vão dirigir menos, precisamos de novas conexões públicas de transporte e rotas seguras para ciclistas. Precisamos de melhores usinas de tratamento hídrico e centros de reciclagem, novas usinas solares e eólicas, e as linhas de energia necessárias para conectá-las à rede. Mas não podemos mais ir construindo nosso caminho para fora da crise ambiental, tampouco ir consumindo até sair dela. Por quê? Porque novas construções são sujeitas às oito regras de ouro da contratação de infraestrutura.

A regra número 1 é que o principal propósito de uma nova infraestrutura é enriquecer as pessoas que a contratam ou a constroem. Mesmo quando uma autoridade pública planeja um novo esquema de razões sensatas, primeiro deve passar por um filtro: isso fará mais dinheiro para negócios já existentes? É assim que, por exemplo, os planos de construir uma infraestrutura de hidrogênio no Reino Unido parecem ter sido desviados. Em agosto, o chefe da Associação de Hidrogênio e Combustível Celular do Reino Unido, Chris Jackson, se demitiu em protesto aos planos do governo de promover hidrogênio feito a partir de metano fóssil, ao invés de produzi-lo somente a partir de eletricidade renovável. Ele explicou que a estratégia do governo prende a nação ao uso do combustível fóssil. Parece estar repleto das pegadas da indústria de gasolina.

Pelo mesmo motivo, muitos dos projetos benéficos do conceito de infraestrutura de Biden e do Plano de Empregos Americanos foram cortados ou estripados pelo Congresso, deixando um catálogo de promessas vãs e despropositadas.

Em boa parte do tempo, esquemas são criados e conduzidos não por uma autoridade pública bem-intencionada, mas sim pelas demandas da indústria. Seu principal propósito – fazer dinheiro – é cumprido antes que qualquer pessoa possa usá-los. Somente alguns projetos possuem propósitos secundários de fornecer o serviço público.

Em todo o mundo, a indústria da construção é uma das mais corruptas, frequentemente dominada por máfias locais e conduzida por enormes propinas para políticos. Se a infraestrutura serve para criar qualquer benefício público, ela precisa ser regulamentada de maneira rígida e transparente. Os planos de Boris Johnson de desregular o sistema de planejamento e de construir uma série de portos livres, onde negócios poderão desviar dos direitos laborais, ambientais e dos consumidores, garantirão que a conexão entre novas construções e a necessidade pública se torne ainda mais tênue.

A regra número dois é que existe um viés inerente na seleção de projetos com o pior valor possível para o dinheiro. Como aponta o geógrafo econômico, Bent Flyvbjerg, “os projetos que são feitos para parecer melhor no papel são os projetos que reúnem os maiores excedentes de custo e déficits de benefícios na realidade”. As decisões são rotineiramente baseadas na falta de informação e no “otimismo ilusório”. A HS2, cujos custos nominais subiram de 37.5 bilhões de libras em 2009 para algo entre 72 e 110 bilhões de libras hoje, enquanto seus supostos benefícios financeiros caíram, não é exceção: é a regra global. Em contraste, por 3 bilhões de libras ao ano, todas as passagens de ônibus no Reino Unidos poderiam ser emitidas sem custo, uma política que tiraria mais carros da rua e reduziria emissões muito mais rápido do que esse gigante elefante branco.

A regra número três é que os benefícios ambientais de novos esquemas são rotineiramente superestimados enquanto os custos são subestimados. A HS2 é novamente emblemática: embora tenha sido promovida como um jeito mais verde de se viajar, as estimativas do governo sugerem que pode, no geral, liberar mais carbono do que poupar. Desvios que serviriam para aliviar trânsitos meramente movem o congestionamento para o próximo ponto. Grandes represas hidrelétricas rotineiramente produzem menos eletricidade do que o prometido enquanto destroem ecossistemas inteiros.

Uma razão para os custos ambientais de novas infraestruturas é a massiva pegada de concreto, cujas emissões de carbono podem ser tão altas que nós podemos nunca conseguir nos recuperar. Outra é o modo como novas construções criam demanda. Esse é um objetivo explícito da estratégia nacional de infraestrutura do governo e do seu “plano de 10 pontos para uma revolução industrial verde”. Mas você não resolve um problema tornando-o maior.

A regra número quatro é que em países com alta biodiversidade, a infraestrutura é a maior força de destruição de habitats.  Como mostra um artigo no jornal “Tendências na Ecologia e na Evolução”, novas infraestruturas e o desmatamento que causam são altamente “espacialmente contagiosas”. Em outras palavras, um esquema leva a outro que leva a outro, expandindo a fronteira inexoravelmente em habitats cruciais. Há uma relação quase perfeita entre a proximidade a uma estrada e o número de incêndios florestais. Estradas, acima de todos os fatores, estão destruindo as florestas da Amazônia, a bacia do Congo e o sudeste asiático.

A regra número cinco é que grandes esquemas de infraestrutura afetam territórios que pertencem aos povos indígenas: por séculos seu território é tratado como fronteiras de outras pessoas. Grupos indígenas lutaram por muito tempo para estabelecer o princípio de “consentimento livre, informado e prévio”, que é reconhecido pela ONU e na lei internacional, mas ignorado quase em todo lugar. Essa regra se aplica a todos os tipos de infraestrutura, mesmo as vistas como benignas. Um relatório do Centro de Recursos de Negócios e Direitos Humanos mostra como esquemas de energia renovável frequentemente passam com a boiada por cima dos direitos dos povos indígenas.

A regra número seis é que uma infraestrutura mais verde produzirá um resultado mais verde somente se for acompanhada por um afastamento deliberado da infraestrutura existente. Ao abordar as emergências climáticas e ecológicas, a questão principal não são as coisas novas que fazemos, mas sim as coisas velhas que paramos de fazer. Mas enquanto o governo do Reino Unido tem planos de financiar novas linhas férreas, serviços de ônibus e ciclovias, não possui planos de aposentar estradas ou rodovias. Ao contrário, se gaba do seu “investimento recorde em estradas estratégicas” (27 bilhões de libras). Cada grande aeroporto no Reino Unido tem planos de expansão. Na semana passada, por exemplo, o aeroporto de Gatwick anunciou uma consulta para aumentar seu fluxo de passageiros de 46 milhões para 75 milhões por ano.

A regra número sete é que as nações ricas tendem a receber uma oferta exagerada de alguns tipos de infraestrutura. Uma das políticas verdes mais simples, baratas e eficazes é descartar vias de auto-estrada para ônibus, para criar um serviço interurbano rápido e eficiente. Mas onde está o dinheiro das empresas de construção nesses casos?

A regra número oito é que a mudança ambiental não pode ser entregue somente por meio de infraestruturas. Para ser eficaz, precisa ser acompanhada por uma mudança social: viajar menos, assim como viajar melhor. Precisamos desenvolver não somente novas ferrovias, fazendas e linhas de energia eólicas, mas sim um novo estilo de vida.

Mas enquanto governos e empresas de construção estão felizes em nos dar mais de tudo, a única coisa que não podemos ter é menos. A regra dominante é essa: se você quer um mundo mais verde, resista à maré crescente de concreto.

Veja em: https://www.cartamaior.com.br/?/Editoria/Mae-Terra/Nao-podemos-construir-um-caminho-para-fora-da-crise-ambiental/3/51606

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