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No Brasil, o mais próximo possível dos últimos povos ”isolados”

Reportagem. “Na floresta amazônica” (1/2). Correspondente do “Le Monde” na América do Sul, Bruno Meyerfeld foi a uma região vizinha ao Peru, encravada na selva, onde sobrevivem tribos indígenas, às vezes sem contato com o mundo exterior, ameaçadas pelo avanço de fazendeiros e caçadores ilegais.

Nós os vimos. Ou melhor, ouvimos. Percebemos. Sentimos. Em algum lugar, lá no final daquele caminho de terra úmido, nas profundezas da floresta. Sinais que não enganam: lenha quebrada, ferramentas rudimentares, cinzas, restos de um fogo que acaba de se extinguir. E, longe, muito longe, como um sussurro do vento deslizando entre as árvores, os caçadores ouviram gritos, reconheceram vozes. Compreenderam que não estavam sós, que havia outros seres humanos no interior da selva.

“O que eles procuram, tão alto no rio? “, indagaram-se os caciques e os guerreiros do povo Kanamari. “Eles” nunca chegaram tão perto, a apenas algumas horas de caminhada de São Luís, sua aldeia povoada de 200 – 300 indígenas, perdida nos confins da Amazônia brasileira. É a fome? Curiosidade? Acaso? Ou, talvez, a vontade dos espíritos dos xamãs kohana que desceram do alto do céu? Ninguém realmente sabe. Uma coisa é certa: “eles” estão aí, muito perto.

Um grupo de homens do povo Kanamari, às margens do rio Javari, retornando de uma patrulha dentro de seu território, Brasil, 12 de agosto de 2021. TOMMASO PROTTI PARA “LE MONDE”

” Eles.” Entre os Kanamari do Vale do Javari, uma reserva gigantesca do tamanho da Áustria, [“eles”] são chamados, com respeito e fascínio, de ‘pais’, ‘flecheiros’ (‘arqueiros’) ou ‘os que vêm de trás’. As autoridades brasileiras referem-se a eles com um nome muito menos poético; falam de “povos indígenas isolados” e “não contatados”. Os últimos seres humano do planeta sem contato com o mundo exterior.

O Vale do Javari teria, assim, dezesseis grupos – 300 a 500 pessoas no total, ou seja a maior concentração do planeta – que, diferentemente dos Kanamari, não mantêm nenhum vínculo com a sociedade brasileira. Isso justifica a existência dessa reserva inteiramente coberta pela floresta tropical, a 3.500 quilômetros de São Paulo e do Rio. Um continente em si, talvez o que mais se aproxime do “fim do mundo”, acessível apenas por barco ou avião.

Membro da tribo Kanamari próximo à aldeia indígena de São Luís, no território do Vale do Javari, Brasil, 11 de agosto de 2021. TOMMASO PROTTI PARA “LE MONDE”

Tais lugares são merecidos. Para chegar a São Luís, são dez horas de barco rápido na estação seca saindo da cidade de Tabatinga, quase 300 quilômetros no Amazonas e depois no rio Javari. A navegação faz-se passo a passo e à vista: este rio é conhecido por seus bancos de areia e suas pedras pontiagudas. Os assentamentos humanos mais distantes, no nascimento dos afluentes Curuça, Itui ou Itacoai, só são acessíveis depois de vários dias, até algumas semanas de canoa. Para as áreas que abrigam, vamos dizer, os “pais” não contatados, seria necessário acrescentar dias e dias de caminhada …

Um mundo à parte

O Javari: uma serpente lamacenta que ondula sem parar no meio de uma parede de floresta tropical. Aqui e ali, um boto cor de rosa retira o bico da água para respirar. Tartarugas tracajá em pânico e preocupadas caem de um galho morto nas ondas. Às vezes, nas margens, vemos canoas atracadas, seus donos sumidos na vegetação exuberante. O céu está baixo, pesado, sempre velado. Rabetinhas, aquelas canoas motorizadas esguias, famílias indígenas inteiras amontoadas a bordo passam em câmera lenta. Mais raramente, cruzam grandes barcos de madeira, carregados de homens de aparência suspeita. O Rio Javari marca a fronteira com o Peru e serve de rodovia para armas e drogas. Amigo ou inimigo? Pescador ou traficante? Aqui, você nunca sabe exatamente com quem está lidando …

As margens peruanas do rio Javari, 14 de agosto de 2021. TOMMASO PROTTI PARA “LE MONDE”

Uma família do povo Kanamari na aldeia de São Luís, no território do Vale do Javari, no Brasil, em 12 de agosto de 2021. TOMMASO PROTTI PARA “LE MONDE”

De repente, ao final de uma cansativa navegação, surge São Luís: um punhado de casas de madeira sobre palafitas, distribuídas em torno da grande cabana comunitária coberta de palha, toda rodeada de roças de mandioca e abacaxi e, claro, da floresta infinita. Sem eletricidade, muito menos camas neste canto remoto. A noite é passada em uma rede, a iluminação é feita com faróis. Cuidado com os encontros prejudiciais: à noite, cobras e onças estão à espreita.

Equipado com posto de saúde e escola, o local funciona como sede dos Kanamari. Aqui, a natureza impõe seu ritmo. Assolada pelo calor úmido, a vila dorme durante o dia e não acorda até o anoitecer. Então os homens saem e jogam futebol no campo central. Sentadas nas varandas das casas, as mulheres conversam, cortam mandioca, depenam as galinhas para o jantar. As crianças praticam tiro com arco ou lança. Alguns se divertem treinando macaquinhos de pelo escuro.

Estamos no limite da reserva, mas o Brasil já parece bem longe. Na era da Internet e do 5G, o Vale do Javari é um mundo à parte, lento e distante, onde a informação circula boca a boca, à velocidade de uma canoa. São Luís tem apenas uma ligação com o resto do país: um orelhão, uma cabine telefônica em formato de ovo, típica do Brasil. Mas sua bateria desistiu há dois meses. Desde então, a vila está mais do que nunca isolada do resto do planeta.

“Proteger minha terra”

À frente deste “QG” há, portanto, um “general”. Seu nome é Kora, o líder dos Kanamari. Aos 37 anos, o homem que nos convidou para sua aldeia é muito carismático. Robusto, até imponente, de humor mordaz e tom marcial, gosta de ficar sem camisa, o rosto pintado de vermelho com o pigmento do urucum (arbusto com frutos espinhosos), lança ou revólver na mão. Depois de trabalhar como enfermeiro e vereador na cidade, tornou-se um dos líderes da União dos Povos Indígenas do Vale do Javari (Univaja), que conduz a luta pela defesa da reserva.

Kora, o líder dos Kanamari em seu território, no Vale do Javari, Brasil, 11 de agosto de 2021. TOMMASO PROTTI PARA “LE MONDE”

Kora estabeleceu para si mesmo um objetivo, que ele resume: “Proteger minha terra“. Há muito a fazer: “Hoje estamos mais ameaçados do que nuncaAs invasões se multiplicam ”, lamenta o“ general ”, acessando em seu smartphone um “plano de batalha” do Vale. “Olhe, aqui ao norte, são os pescadores e caçadores ilegais. A oeste, os ladrões de madeira. E lá, a sudeste, no Rio Jutai, os garimpeiros. E, finalmente, ao sul, os fazendeiros que se instalam.” Kora faz uma pausa: “Estamos cercados.”

Para provar o que diz, Kora quer que a gente vá em campo. Ele forma rapidamente uma patrulha encarregada de observar os lagos ao redor. “Lá, há invasões o tempo todo”, avisa. Cerca de vinte guerreiros se armam e depois embarcam em frágeis canoas. Algumas centenas de metros no Javari e o grupo encosta em uma praia arenosa antes de entrar na floresta com os pés descalços. Os grupos de patrulheiros se comunicam à distância gritando ou batendo com o facão, como sobre um tambor, nos troncos das sumaúmas, essas árvores gigantescas e sagradas da Amazônia.

A pesca, assim como a caça, ocupa um lugar central na cultura Kanamari. É ao mesmo tempo um recurso alimentar essencial e um momento de transmissão entre gerações. Os pais levam os filhos desde pequenos para caçar peixes locais, pirarucu, tambaqui ou piranha. Trata-se de ser paciente, preciso e robusto: a captura é feita com uma lança, submerso até o umbigo em riachos ou instalado a bordo de frágeis canoas.

Saiba mais em: https://www.cartamaior.com.br/?/Editoria/Mae-Terra/No-Brasil-o-mais-proximo-possivel-dos-ultimos-povos-isolados-/3/51874

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