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O papel da OEA no golpe de 2019 na Bolívia é indiscutível

Diante das evidências destacadas em novo relatório, o secretário-geral, Luís Almagro, deve assumir responsabilidade política

Por Guillaume Long / Créditos da foto: (Alamy Stock Photo)

Em 17 de agosto, um grupo interdisciplinar de especialistas independentes em direitos humanos, conhecido como GIEI, divulgou um relatório sobre violações de direitos humanos cometidas no contexto da crise em torno das eleições de 2019 na Bolívia.

Entre suas muitas conclusões, o documento de 468 páginas estabelece que as forças de segurança do Estado boliviano cometeram “massacres” após o golpe que levou Jeanine Áñez ao poder em 2019. O relatório inclui uma série de recomendações sobre o tratamento das vítimas, responsabilização dos envolvidos nas violações dos direitos humanos e denuncia a prevalência do racismo generalizado, tanto no Estado como na sociedade boliviana.

O Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos destacou a conclusão do relatório do GIEI de que “graves violações dos direitos humanos ocorreram no Estado Plurinacional da Bolívia, incluindo tortura sistemática, execuções sumárias e violência sexual e de gênero, durante o após a crise eleitoral de 2019”.

A Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), que é formalmente um apêndice da OEA, mas goza de autonomia em relação ao gabinete do secretário-geral da OEA, também apoiou as conclusões e as recomendações do GIEI. Foi a CIDH, sob a liderança do ex-secretário executivo, Paulo Abrão, que pressionou o governo de Áñez a aceitar a criação de um grupo independente de especialistas para investigar violações de direitos humanos.

O apoio da CIDH ao relatório GIEI foi inequívoco. Seu presidente e dois vice-presidentes falaram na cerimônia de 17 de agosto em La Paz, na qual o relatório foi apresentado formalmente ao presidente boliviano, Luis Arce. Para Abrão, que também esteve presente através de uma chamada virtual, a publicação do relatório deve ter sido uma espécie de reivindicação.

Em agosto de 2020, Abrão foi afastado do cargo de secretário executivo da CIDH pelo secretário-geral da OEA, Luis Almagro, que se recusou a renovar o mandato de Abrão por alegações de assédio laboral, acusações que nunca foram investigadas. Os membros da CIDH se opuseram à decisão de destituir Abrão e denunciaram que a não renovação de seu contrato foi feita “sem consulta prévia” à CIDH, o que consideram ser um sério ataque à sua independência e autonomia. A alta comissária das Nações Unidas para os Direitos Humanos, Michelle Bachelet, juntamente com várias organizações de direitos humanos, também denunciou a intromissão sem precedentes de Almagro na autonomia histórica da CIDH.

Na época, o então presidente da CIDH, Joel Hernández, alertou que a demissão de Abrão poderia ter motivação política. Hernández referiu-se especificamente à forte pressão de vários governos de direita que Abrão havia acusado de cometer graves violações de direitos humanos: Chile, Argentina, Colômbia, Paraguai e, não menos importante, o país de Abrão, o Brasil.

Também é possível que a denúncia de Abrão sobre o histórico de direitos humanos do governo Áñez na Bolívia em 2019 e suas críticas à repressão violenta dos protestos no Equador naquele mesmo ano fizeram dele um alvo desses governos. Todos esses governos, assim como o governo Trump nos Estados Unidos – que apoiou o governo Áñez – eram fortes aliados de Almagro. Com exceção da Argentina, onde um novo governo tomou posse em dezembro de 2019, todos votaram pela reeleição de Almagro como secretário-geral da OEA em 2020.

Em contraste com a denúncia de Abrão dos abusos do governo Áñez, Almagro desempenhou um papel fundamental no apoio a seu governo em 2019 e 2020. Ele ignorou as acusações de violações flagrantes dos direitos humanos e recusou-se a qualificar como golpe de Estado a chegada de Áñez ao poder. Mas seguindo seu oportunismo característico, Almagro reagiu de forma política ao lançamento do relatório do GIEI. “Tomamos nota da publicação do relatório do #GIEI Bolívia. Apesar de que deve ser analisado nos próximos dias, consideramos que contém elementos importantes a serem apresentados ao Tribunal Penal Internacional (ICC) e ao Tribunal Internacional de Justiça (ICJ),” escreveu em sua página do Twitter.

Almagro deu uma guinada de 180 graus em seu apoio a Áñez e seus colaboradores, mas persiste na narrativa de fraude nas eleições bolivianas de 2019. Numerosos estudos acadêmicos realizados pelo Center for Economic and Policy Research e por acadêmicos do Massachusetts Institute of Technology (MIT), da University of Pennsylvania e da Tulane University – finalmente publicados no The Washington Post e The New York Times, respectivamente – demonstram que as principais declarações da OEA sobre as eleições bolivianas de 2019 são infundadas.

Almagro se recusou a aceitar essas conclusões ou permitir uma investigação independente das alegações contra a OEA, como solicitaram países como o México. A OEA também se recusou a responder perguntas sobre suas conclusões errôneas de membros do Congresso dos Estados Unidos. Em julho, a Câmara dos Deputados dos Estados Unidos intensificou sua pressão, votando a favor de uma medida que determina que o Departamento de Estado deve investigar o papel da OEA no golpe. Mas Almagro está tentando desesperadamente manter o assunto em segredo. Qualquer admissão de que a OEA errou, ou mesmo mentiu, muito provavelmente levaria à sua demissão e ao fim vergonhoso de sua carreira política.

Na reunião extraordinária do Conselho Permanente da OEA em 25 de agosto, convocada pela Bolívia, o ministro das Relações Exteriores e o ministro da Justiça do país se uniram a representantes da Argentina e do México para denunciar o papel da OEA na crise política boliviana de 2019 e responsabilizar a Almagro.

Em resposta, Almagro recorreu a seu suplente, o secretário da OEA para o “fortalecimento da democracia”, Francisco Guerrero, que proferiu algumas frases pseudo-técnicas bizarras. Entre outras coisas, Guerrero sugeriu que o desaparecimento do material eleitoral após o dia das eleições na Bolívia prova que houve fraude, quando está bem documentado que esse material foi destruído por opositores de Morales que, em parte encorajados pelas alegações de irregularidades da OEA, incendiaram diversos tribunais eleitorais.

Almagro ainda pode encontrar consolo no fato de que grande parte da mídia ainda não reconheceu que as alegações de fraude da OEA foram desacreditadas por vários estudos independentes.

Muitos meios de comunicação endossaram a narrativa de fraude da OEA em 2019, o que significa que poucos jornalistas agora estão dispostos a admitir seu erro. Almagro também está protegido pelo atual equilíbrio de poder – e de votos – no Conselho Permanente de Estados membros da OEA. Mesmo no contexto de erosão do apoio à direita e dos recentes triunfos eleitorais da esquerda na região, as forças conservadoras ainda têm maioria na organização.

No entanto, mesmo levando em conta esse apoio a Almagro, a questão boliviana tornou-se uma fonte de inquietação no Conselho Permanente da OEA. Na sessão especial de 25 de agosto, alguns governos de extrema-direita deram apoio entusiástico a Almagro, mas a maior parte do apoio foi morno, com vários membros destacando o papel histórico que a OEA desempenha nas eleições da região, em vez de dizer algo sobre os relatórios da OEA de 2019 sobre a Bolívia.

Notadamente, o defensor mais agressivo de Almagro na reunião foi o representante do autoproclamado presidente da Venezuela, Juan Guaidó. O emissário de Guaidó continua servindo no Conselho Permanente da OEA, embora a posição de Guaidó tenha sido seriamente erodida nos últimos meses. Guaidó não é mais um representante eleito na Assembleia Nacional, não tem o apoio da maior parte da oposição venezuelana a Nicolás Maduro e a cada dia menos governos o reconhecem como presidente.

Enquanto a maioria dos representantes conservadores se apegou às banalidades habituais em apoio ao papel genérico da OEA como observador eleitoral, o representante de Guaidó – possivelmente o membro do Conselho Permanente que tem mais a perder com uma possível queda de Almagro – denunciou uma “campanha de difamação” contra o secretário geral. Ele também denunciou que “o que aconteceu em 20 de outubro de 2019 na Bolívia foi uma tentativa evidente de fraude eleitoral”.

Durante a reunião da OEA, o único outro oficial que defendeu explicitamente as posições assumidas por Almagro na Bolívia em 2019 foi o “representante interino dos Estados Unidos na OEA” – ou seja, um resquício do governo Trump –, que veio exaltou o “notável trabalho da missão de observação eleitoral da OEA na Bolívia” e o “compromisso excepcional da OEA em apoiar os processos eleitorais bolivianos … em meio a esforços concertados e politizados para minar falsamente seu trabalho e reputação”. Ele continuou a lamentar a “repetição de uma falsa narrativa eleitoral – no caso, o golpe de Estado na Bolívia em 2019”.

O governo Biden permanecerá nesta posição de negar os fatos e apoiar cegamente Almagro, como o governo Trump fez durante quatro anos? Ainda é uma questão em aberto, cuja resposta depende do que farão os indicados de Biden quando finalmente tomarem posse.

Dado seu nível de apoio cada vez menor, inclusive de alguns governos de direita da América Latina, o futuro de Almagro depende em grande parte de se Biden escolherá apoiá-lo e sua agenda de extrema-direita ou adotar uma abordagem mais construtiva em relação à região.

Veja em: https://www.cartamaior.com.br/?/Editoria/Pelo-Mundo/O-papel-da-OEA-no-golpe-de-2019-na-Bolivia-e-indiscutivel/6/51644

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