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O que está em jogo no julgamento de Assange

Nova audiência definirá o futuro do fundador do WikiLeaks. Preso e à beira de um colapso mental, ele pode ser deportado aos EUA, país que tramou seu assassinato. Cerco revela: em democracias esvaziadas, jornalismo poderia ser o inimigo nº 1

Por: John Pilger em entrevista a Chris Hedges|Imagem: Miltos Manetas |Tradução: Vitor Costa

Chris Hedges: Em 26 de setembro, o Yahoo publicou a seguinte notícia: “Sequestro, assassinato e tiroteio em Londres: Por dentro dos planos de guerra secretos da CIA contra o WikiLeaks”. Esse artigo detalhou as discussões dentro da CIA para sequestrar ou assassinar Julian Assange. As revelações ocorreram um mês antes da audiência em um Tribunal Superior [Britain’s High Court] da Grã-Bretanha, onde o governo dos EUA pretende apelar da decisão judicial que garante ao fundador do WikiLeaks, Julian Assange, não ser extraditado aos EUA para enfrentar, lá, acusações de espionagem. Essas revelações também coincidiram com a prisão de um islandês que desempenhou um papel importante no caso do FBI contra Assange e que, agora, admite ter mentido em seu depoimento.

As revelações mais recentes, assim como as de numerosas anomalias jurídicas do caso Assange (incluindo vazamentos que mostram que a firma de segurança espanhola da embaixada do Equador em Londres, onde Assange se refugiou por sete anos, entregou gravações de seus encontros com advogados à CIA) mostram claramente que a pantomima judicial realizada contra Julian Assange é uma perseguição política liderada pelo governo dos EUA e pela CIA por causa de revelações embaraçosas sobre o funcionamento interno da comunidade de inteligência militar dos EUA e de sua classe política, que foram repetidamente expostas por Julian Assange e pelo WikiLeaks. O objetivo do governo dos EUA é derrubar o WikiLeaks e organizações similares, fazendo de Julian Assange um exemplo, uma vez que, se for extraditado para os Estados Unidos, ele pode pegar 175 anos de prisão. Sem dúvida isso poderá dissuadir outros jornalistas que considerem replicar a corajosa empreitada. Para discutir o caso Assange, e a próxima audiência em Londres, nos dias 27 e 28 de outubro, estou com o documentarista e jornalista investigativo John Pilger.

John, você tem sido, desde que toda essa situação começou, um dos mais francos e eloquentes defensores de Julian. Você poderia recapitular brevemente os fatores que nos trouxeram a essa situação e em que contexto se realizará esta audiência?

John Pilger: Este é um julgamento-espetáculo. Já participei de outros assim e este é, claramente, um julgamento de fachada. Todas as provas mais relevantes que você mencionou em seu preâmbulo são problemáticas, particularmente a do adolescente islandês que foi a testemunha crucial, mas admitiu ter fabricado todas as provas. Portanto, qualquer caso em qualquer tribunal de qualquer país com direito consuetudinário seria descartado imediatamente. Mas nada vai acontecer. Nada. Porque isso é um julgamento político e um espetáculo desde o seu início.

Algumas pessoas poderão dizer estou soando como um agitador, um “agit prop”. Não mesmo. Eu me sentei em tribunais assistindo Julian, acho que desde 2010, e esse processo está se tornando cada vez mais bizarro. A última audiência do Tribunal Superior que nos permitiu estender os termos de seu recurso contra um juiz de primeira instância, em fevereiro, se baseou no fato de que se Julian for extraditado, ele provavelmente se suicidará. A extensão dos termos do recurso dos EUA era absolutamente absurda. Nenhuma das evidências são relevantes, especialmente as que você mencionou e, esta última revelação sobre a testemunha islandesa, tenho a dizer o seguinte: embora tenha havido muitas revelações ao longo dos anos, há uma série de coisas erradas como essa revelação em particular, mas seu sentido geral está correto. E isso é, na verdade, realmente uma confirmação do que eles já fizeram. Sequestraram Julian Assange quando a polícia entrou, em abril de 2019, na embaixada equatoriana. Sequestraram! Eles o levaram para a prisão de Belmar [em Londres]. E tudo o que o podemos esperar agora é um julgamento-espetáculo – ou um possível assassinato.

Mas acredito que um assassinato seja improvável. Se fosse acontecer, já teria acontecido. Mas, deixe-me explicar: na Grã-Bretanha, uma juíza de primeira instância, surpreendentemente, disse – e ela disse isso mesmo em fevereiro apenas porque as evidências eram muito flagrantes – que é muito óbvio que Julian sofre de Síndrome de Asperger [transtorno de desenvolvimento que afeta a capacidade de se socializar e de se comunicar com eficiência] e que já havia atentado contra a própria vida. Sentimos um terror no Tribunal quando nós sentamos e ouvimos como Julian havia ligado para os Samaritanos [linha telefônica inglesa de prevenção ao suicídio] e que haviam encontrado lâminas em sua cela. Foram muitas evidências que fizeram com que nós, seus amigos, estremecêssemos. Seu pai estava sentado ao meu lado com a cabeça entre as mãos. Essas informações são algo que a juíza não poderia ignorar. Então ela teve que ir contra a narrativa orquestrada. Não há dúvida de que há uma narrativa pré-elaborada. Nós a observamos depois de uma discussão entre os dois lados que durou uma hora, quando ela abriu seu laptop e leu uma decisão que já estava pronta. Portanto, esse é um julgamento-espetáculo. A juíza disse que não ele não pode ser extraditado com base no pedido americano – e os EUA, desde fevereiro, têm tentado mudar os termos da apelação, ou seja, de que a saúde mental de Julian será afetada a tal ponto que ele atentará contra sua própria vida. Ninguém nunca foi, que eu saiba, extraditado da Grã-Bretanha quando um juiz de primeira instância decide dessa forma. Então, estender os termos do recurso é parte dessa manobra agora. Quando for realizada a audiência de 27 e 28 de outubro no Tribunal Superior, os juízes considerarão o que resta dos termos desse recurso. Mas se eles forem contra aquela juíza de primeira instância, estarão abrindo um precedente na lei inglesa que eu e tampouco outros advogados se lembram. Assim, podemos deduzir que existe uma possibilidade real de que Julian seja libertado – não já no dia 27 ou 28, mas numa decisão que deverá ser publicada em janeiro. Existe essa possibilidade. Mas como se trata de um julgamento de fachada, posso apostar que já está em andamento algum tipo de manobra no processo judicial para deportar Julian para os EUA.

Chris Hedges: John Shipton, o pai de Assange, Stella Morris, advogada e mãe de seus dois filhos, você e muitos outros falam que, apesar de não o terem assassinado, esse encarceramento, nessas condições draconianas, é uma forma lenta de assassinato…

John Pilger: Você está absolutamente certo. É por isso que digo que o sequestro, a rendição e o assassinato fazem parte desse processo de faroeste sem lei que aconteceu e que foi supostamente interrompido pela decisão da primeira instância. Vemos tudo em câmera lenta. Você vai a um tribunal britânico onde os juízes usam perucas, com toda aquela pompa e cerimônia, numa terra da Carta Magna, mas o que aconteceu foi que basicamente um sequestro deu origem a esse julgamento de fachada. Eu gostaria fosse exagero meu, mas não é. No entanto, entre o Judiciário deste país, especialmente entre os juízes mais conservadores, há aqueles que acreditam na lei de forma quase obsessiva – e eles podem ir contra o Estado. Até a juíza que analisou o caso em fevereiro, Vanessa Baraitser, abertamente hostil à Assange, teve que ir contra o recurso porque as evidências eram muito claras. Existe uma possibilidade real de que um juiz olhe para a lei – e não para a política.

Chris Hedges: Pelo o que eu entendi, o cerne do apelo dos EUA é atacar a credibilidade dos especialistas que alegara proteger a saúde mental de Assange e argumentar que ele não cometeria suicídio, defendendo que há condições asseguradas para ele ser encarcerado nos Estados Unidos. É isso mesmo?

John Pilger: Sim, e eles não tiveram sucesso no tribunal com esta estratégia. Um dos mais renomados neuropsicanalistas, um professor que, infelizmente, não me lembro o nome neste momento, foi atacado por um conselho que agia em favor dos EUA até que se voltou para eles, e disse: “Por que vocês estão me atacando? Outro dia vocês me pediram para comparecer em um caso para vocês?” Esse é o teatro do absurdo, mas a questão é que havia ele e outros dois ou três de igual distinção que haviam examinado Julian por um período de dois anos, diagnosticando-o com Asperger e, assim, teria propensão ao desespero e a tirar a própria vida. É muito difícil aceitar isso porque, de muitas maneiras, Julian é um homem extraordinariamente resistente. Eu não sei como ele sobreviveu por tanto tempo, mas nesses últimos dois anos ele claramente considerou tirar a própria vida e fez ao menos uma tentativa. Ele escreveu bilhetes de suicídio muito comoventes. Tudo isso foi colocado no tribunal e é por isso que a juíza disse que ele não poderia ser extraditado para as péssimas prisões americanas que foram descritas no julgamento.

Mas desacreditar esses ilustres especialistas têm sido o objetivo dos EUA. Como eles fazem isso? A única coisa que eles podem encontrar, que eles acham que vale a pena apontar como possível descrédito, é que aquele especialista em particular não disse à juíza Baraitser que Julian teve um relacionamento com Stella Morris, durante um certo período de tempo. Mas ele tinha informado ela disso! Ele disse a ela. Ele havia escrito isso. Ele colocou em seu relatório e as coisas ficam mais surreais aqui. O especialista pode não ter informado à juíza claramente, mas ela estava totalmente informada não apenas que Assange tem um relacionamento com Stella Morris, mas também que ele tem dois filhos pequenos, concebidos na embaixada do Equador. A juíza não disse exatamente, mas ela poderia muito bem ter dito naquele momento que é o caso estava comprometido e seria discutido novamente em novembro.

Meu ponto é o seguinte: todo esse caso é uma farsa. Passa longe de qualquer forma de justiça e teria sido anulado pelo tribunal anos atrás! A evidência de um homem inocente que foi incriminado, primeiro por meio de um processo na Suécia, depois processado na Grã-Bretanha pela promotoria da Coroa que tentou mantê-lo na prisão. E tudo isso foi conduzido pelo atual líder do Partido Trabalhista Sir Stammer. A corrupção disso é extraordinária! Tudo foi armado e manipulado e a crise veio quando o WikiLeaks lançasse todos os sete arquivos da CIA sobre espionagem através de aparelhos de televisão, iphones e assim por diante. Depois de fazer isso, havia claramente um compromisso na administração Trump, ao contrário da administração Obama, que disse: “não, eu não vou em frente com isso porque posso ter problema com o The New York Times, o Washington Post e todos os outros”. Mas Trump concordou em fazê-lo.

E é bom lembrar que esta é uma operação da CIA. Quem conhece bem os Estados Unidos sabe bem o poder extrajudicial da CIA. Um poder também extragovernamental. O que podemos dizer é que Mike Pompeo pode ter sido uma espécie de Hermann Goring em suas palhaçadas, mas ele era um chefe sério da CIA, aquela mesma CIA que está ligada ao Ministério da Justiça, liderado por várias das pessoas mais radicais do DOJ. Assange mexeu em temas sensíveis, algo que foi visto já em 2008, num dos primeiros vazamentos do WikiLeaks, sobre a contraespionagem do Exército dos EUA e o Departamento de Defesa. O que eles pretendem conseguir difamando o Assange, desacreditando-o, destruindo a credibilidade do WikiLeaks é que, daqui em diante, o jornalismo investigativo passe a ser o inimigo. Na verdade, o documento do Ministério da Defesa que Julian Assange me mostrou e, depois, vazou, dizia que para os EUA havia três principais inimigos que batiam nas “portas da civilização”: os russos, os terroristas, mas, sobretudo, como inimigo número um, estavam os jornalistas investigativos.

Chris Hedges: Voltando a declaração de Pompeo. É importante notar que, quando ele acusa o WikiLeaks de ser um serviço de inteligência hostil, ele o chama de “um serviço de inteligência hostil não-estatal”, acusando-o de ser estimulado pelos russos. Mas, ao redefinir o que é um meio de comunicação jornalístico (e sabemos que eles foram atrás de Laura Potress e Glenn Greenwald da mesma forma) eles podem desencadear perseguições sem qualquer tipo de permissão ou aprovação do Congresso. Esse processo se precipitou especialmente após 2017, com a espionagem e todas as conversas sobre assassinato. Mas eles foram bastante públicos sobre como eles redefiniram o jornalismo investigativo como inimigo, o que é profundamente assustador.

John Pilger: Ele inventou essas palavras. O que é esse “não-estatal”? Como chamam os prisioneiros de Guantánamo? Não-combatentes. Para eles, qualquer um é soldado. Mas é ridículo como a coisa toda é ilegal. Não vejo como isso tem o respaldo da lei. Tenho certeza que ele não inventou isso, mas quem quer que seja a pessoa por trás da CIA está simplesmente inventando leis. Antes não existia uma coisa dessas. Julian Assange provou ser um jornalista assim como você e eu somos jornalistas. Ele é respeitado em tantos aspectos, recebeu tantos prêmios e foi reconhecido por seus inúmeros furos jornalísticos; ele é bom demais, esse é o problema. O papel dos jornalistas foi, na minha opinião, particularmente vergonhoso porque eles não o apoiaram, mesmo por seus próprios interesse. E assim, não apoiando-o, eles entendem agora que se Julian Assange cair, qualquer um pode cair também.

Veja em: https://outraspalavras.net/movimentoserebeldias/o-que-esta-em-jogo-nonovo-julgamento-de-assange/

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