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Os colombianos não querem apenas um novo governo – eles querem o fim do neoliberalismo

Durante semanas, os colombianos permaneceram nas ruas desafiando o violento modelo social e econômico de seu país. A última rodada de protestos contra o governo de direita teve uma repressão brutal, levando a pelo menos 43 mortes. Mas o movimento de massa está cada vez mais forte – deixando a classe dominante cada dia mais desesperada.

Uma entrevista com Forrest Hylton | Tradução Mauro Costa Assis

Enquanto a Colômbia entra em sua terceira semana de greve geral, os manifestantes não dão sinais que querem sair das ruas. Desde 28 de abril, um dia de protesto contra uma reforma tributária regressiva, a onda de greves cresceu e se alastrou por todo o país, à medida que os grevistas formavam uma frente comum contra o governo do presidente de direita Iván Duque e a máquina política do ex-presidente Álvaro Uribe.

As manchetes internacionais têm se concentrado na repressão sangrenta dos manifestantes pela polícia e pelas forças armadas da Colômbia. O New York Times, por exemplo, relata que a polícia antes engajada na guerra contra “guerrilheiros de esquerda e paramilitares” agora está voltando seu poder de fogo contra os civis.

A mídia internacional, no entanto, tem esquecido que o Estado colombiano está em guerra contra a esquerda, organizações de trabalhadores, camponeses e movimentos sociais há décadas. Desde o início dos anos 2000, quando a guerra contra-insurgente se tornou uma peça central do governo de Uribe, o terrorismo liderado pelo Estado tem sido o método escolhido para gerenciar a crescente desigualdade da Colômbia e a desintegração social provocada pelo neoliberalismo.

Nesse mesmo sentido, os manifestantes não estão apenas pedindo uma reforma policial, eles estão pedindo o fim de um sistema desigual que só pode ser mantido sob a mira de uma arma.

Forrest Hylton, professor da Universidad de Medellín e colunista da London Review of Books, escreve e faz reportagens sobre a política colombiana há mais de 25 anos. Ele conversou com o editor contribuinte da Jacobin, Nicolas Allen, sobre as demandas dos grevistas, a erosão da legitimidade do uribismo e sobre as implicações mais amplas que os protestos podem ter para a política colombiana e para o retorno da esquerda colombiana.


NA

Estamos agora na terceira semana de greve na Colômbia. Você pode começar nos dando uma ideia do que desencadeou a primeira ação nacional em 28 de abril e o que manteve os manifestantes nas ruas desde então?

FH

Tudo começou com a introdução de um pacote tributário regressivo pelo ex-ministro da Fazenda Alberto Carrasquilla, que teria acrescentado um imposto de 19% sobre toda uma gama de bens e serviços básicos para as necessidades cotidianas e de subsistência das pessoas como água, eletricidade, gás natural, gasolina e alimentos básicos como farinha, grãos, macarrão, sal, leite e café. Esse pacote tributário regressivo veio na esteira de uma proposta semelhante em 2019, que também desencadeou uma greve geral em todo o país. Em 2019, a reforma proporcionou às empresas e ao setor bancário uma série de incentivos e isenções fiscais, o que é um dos motivos do atual déficit fiscal.

A principal diferença entre as duas greves gerais é a pandemia. Estatísticas da agência nacional de estatística da Colômbia sugerem que a pobreza aumentou 7% no último ano, e é seguro dizer que é consideravelmente maior do que isso. As estatísticas oficiais dizem que 42,5% da população da Colômbia vive na pobreza – novamente, o número é considerado o mais alto. E algo entre 50-60% dos colombianos estão trabalhando no setor informal.

A Colômbia teve um dos lockdowns mais longos e rígidos do mundo, sem nenhuma renda básica universal implementada. Portanto, foi realmente uma espécie de queda livre para a metade inferior da população. Mas é importante também enfatizar o quão precária é a situação para a classe média colombiana, que foi duramente atingida pela pandemia. Para muitos, o emprego assalariado secou. Em termos de casos e mortes per capita de COVID-19, a Colômbia ocupa o décimo lugar no mundo, respectivamente. O sistema de saúde colombiano está atualmente em colapso em Bogotá e não tem havido nada além de corrupção e má gestão da pandemia em todo o país.

Nesse contexto, o pacote tributário regressivo tornaria literalmente impossível para mais da metade da população continuar a sobreviver como está agora. Quase impossível por mais um trimestre. Então foi isso que desencadeou essa revolta massiva a partir de 28 de abril, e por que houve uma mobilização nacional com marchas em todas as principais cidades e áreas rurais da Colômbia.

A nova geração da classe trabalhadora, mais adversamente afetada pela pandemia e pelo neoliberalismo militarizado, é o jovem proletariado informal das periferias urbanas e a vanguarda, a espinha dorsal, desses protestos e tem sofrido o impacto da repressão e da militarização. Os jovens estão na linha de frente e as mães e avós cuidam deles, os alimentam e protegem.

Esta é a maior geração da classe trabalhado no país e, até o momento, não tem representação política formal. Isso nos leva de volta à grande greve cívica de 1977, mas em uma escala muito maior. E em vez de os guerrilheiros estarem em ascensão, eles estão quase totalmente ausentes ou eclipsados. Daí o potencial surgimento de uma esquerda urbana, pela primeira vez na história colombiana.

NA

O presidente Iván Duque, desde então, atenuou alguns dos aspectos mais obviamente regressivos da reforma tributária. No entanto, os protestos continuam e, à medida que continuam, estamos começando a ver uma variedade de demandas surgindo, além da retirada da reforma tributária. Quais são essas demandas e quem são os grupos envolvidos nos protestos?

FH

A reforma tributária foi revogada quase imediatamente após o início dos protestos porque eram muito maiores do que o governo esperava ou para o qual estava preparado. Mas, apesar da renúncia do ministro das Finanças e da revogação do pacote tributário, os protestos, na verdade, aumentaram em vez de diminuir. E isso em parte porque o governo também quer introduzir reformas na saúde e previdência – que atingiriam ainda mais a classe média e o proletariado informal.

Vale a pena mencionar que apenas 4,5% dos trabalhadores colombianos pertencem a sindicatos. Portanto, mesmo que tenham sido as principais centrais sindicais e o sindicato dos professores que convocaram a greve, a esta altura, o Comitê Nacional de Greve – que atualmente está negociando com o governo – tem alcance limitado em termos do que realmente está acontecendo nas ruas.

Nas ruas você tem uma grande variedade de setores mobilizados, tanto no sentido social quanto geográfico, e há uma grande diversidade de demandas, além de uma descentralização generalizada. Quase todo mundo que pertence a qualquer tipo de organização está mobilizado, e muitos jovens que não pertencem a nenhuma organização também estão nas ruas. A greve dos caminhoneiros foi muito importante para bloquear o fluxo de mercadorias para dentro e para fora das cidades. O movimento estudantil provavelmente tem o maior número do que qualquer movimento organizado. E isso em parte porque as medidas de reforma neoliberal mercantilizaram o ensino superior, endividando um grande número de alunos no processo e multiplicando o número daqueles que vão para a universidade.

A outra coisa que a maioria dos manifestantes exige é o que poderia ser chamado de orçamento de paz: um movimento para frear o investimento nas Forças Armadas e na polícia e o tipo de estado de contra-insurgência hipermilitarizado que a Colômbia há muito mantém com o apoio dos EUA.

Além dos setores que mencionei, há, é claro, o movimento indígena, principalmente de Cauca e do sudoeste, que tem sido extremamente importante, pois eles se mobilizaram desde suas terras natais para a cidade de Cali. Pelo menos nos últimos 15 anos ou mais, o movimento em Cauca, embora relativamente pequeno, muitas vezes foi uma espécie de detonador para os movimentos populares nacionais. E isso incluiria também o movimento afro-colombiano, que está amplamente concentrado na costa do Pacífico e cujas demandas dizem respeito à pesca, direitos à terra, mineração, ecologia, paz e devolução de terras roubadas.

Os movimentos feministas – que estiveram profundamente envolvidos no amplo movimento pela paz no governo anterior – foram essenciais para o surgimento de uma política urbana progressista de massa na Colômbia nos últimos tempos. Agora, os movimentos feministas, LGBTQ e a maioria dos setores progressistas (como as minorias indígena e afro-colombiana) votaram em Gustavo Petro em 2018, onde ele obteve 42% dos votos – muito mais do que qualquer candidato de esquerda na Colômbia já conseguiu.

Isso levou seus críticos a alegar que Petro está de alguma forma liderando esses protestos ou que os manifestantes estão seguindo sua liderança – embora ele tenha se afastado o máximo que pode e convocado os manifestantes para suspender os bloqueios.

Em outras palavras, os protestos não vêm da esquerda política organizada. As associações de aposentados têm sido muito ativas, assim como estudantes do ensino médio, profissionais de saúde, associações de bairros urbanos e muito mais. As organizações de bairro estão ajudando especialmente a tornar essa resistência altamente descentralizada, realizando reuniões noturnas, assembléias e protestos nos próprios bairros.

Finalmente, o setor cultural – artistas, músicos, atores, comediantes, acadêmicos – está fortemente envolvido. A pura criatividade juvenil dos protestos foi uma de suas características mais marcantes. Desde a assinatura dos acordos de paz no final de 2016, mais de mil líderes de movimentos sociais colombianos foram assassinados.

O Comitê Nacional de Greve tem 18 demandas. Seria difícil dizer o quão representativos elas são dos movimentos como um todo, ou quantos ativistas locais – as bases, se preferir – aceitam o papel negociador do Comitê como legítimo. E dentro de cada movimento, também existem tensões entre a liderança e as bases.

De qualquer forma, os manifestantes veem os acordos de paz assinados em 2016 entre o governo colombiano e os rebeldes das FARC implementados. Eles querem o fim da corrupção sistêmica; que a tropa de choque militarizada seja completamente dissolvida; que o governo cumpra os acordos que assinou com os alunos em 2019; um novo tipo de reforma tributária que seria progressista em vez de regressiva; investimento público em saúde (o sistema de saúde da Colômbia é inteiramente privatizado como o modelo dos EUA); o fim do assassinato de lideranças de movimentos, que até agora acontecia quase que exclusivamente no campo.

Outra demanda é fazer valer a igualdade de gênero. A pobreza anual entre as mulheres aumentou 20% desde a pandemia e, claro, as mulheres são discriminadas em termos de salário e vencimentos, para não mencionar todo o trabalho não remunerado que acompanha o cuidado das famílias, bem como a violência contra as mulheres, que destacaram nos protestos, já que a tropa de choque molestou e estuprou manifestantes.

Outra demanda central é a proteção da fauna e do meio ambiente. A Colômbia é um dos países com maior biodiversidade do planeta, junto com o México e o Brasil. O Brasil leva todas as manchetes de destruição ambiental, mas a Colômbia não fica muito atrás. Em relação a esses pontos ambientais, os manifestantes exigem que as empresas de mineração e energia sejam regulamentadas, uma vez que operam essencialmente sem restrições e mantêm seu próprio conjunto de leis extraterritoriais nas zonas onde operam.

Os manifestantes estão pedindo uma reforma progressista da previdência, em vez de medidas de privatização regressivas. Eles querem um orçamento mais participativo e uma reforma progressista na legislação trabalhista, em oposição às medidas regressivas da legislação que o governo está tentando introduzir no Congresso. Outra demanda importante é a restituição de terras roubadas: algo como 5 ou 6 milhões de hectares foram roubados dos camponeses, principalmente por forças paramilitares em nome da derrota das guerrilhas comunistas.

Existem muitas outras demandas e, como os diferentes grupos mobilizados, são bastante heterogêneas. Mas apesar de toda a diversidade – talvez até da fragmentação – a demanda subjacente é que o Estado colombiano forneça um compromisso básico com o bem-estar social, conforme descrito na constituição de 1991. Assim, seria justo caracterizar isso como uma revolução democrática de cidadãos contra o Estado autoritário, oligárquico e neoliberal contra-insurgente e a sociedade construída ao longo dos últimos 30 ou 40 anos.

Saiba mais em: https://jacobin.com.br/2021/05/os-colombianos-nao-querem-apenas-um-novo-governo-eles-querem-o-fim-do-neoliberalismo/

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