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Os passos cruciais a um novo Estado pós-neoliberal

Apostar na juventude para sonhar um novo Brasil. Desmontar entulhos autoritários do rentismo. Instituir Renda Básica e Novo Serviço Público. Em diálogo com Conceição Tavares, tarefas inadiáveis para reconstruir um país devastado

Por Rafael dos Santos Pereira

Escrevo este texto motivado e inspirado, dentre outras coisas, por duas leituras recentes: o artigo “A democracia Agoniza: Porque não mudar de estratégia?” de Tatiana Roque e Josué Medeiros, publicado no Le Monde Diplomatique em 01/03/2021 e “Restaurar o Estado é preciso”, de Maria da Conceição Tavares, publicado no site A terra é Redonda em 14/01/2021. Ao resumir brevemente os textos, sirvo-me das suas ideias-força para apresentar algumas reflexões, em torno daquilo que eu considero desafios para uma esquerda brasileira que pretenda tirar o país da areia movediça que estamos e avançar.

Maria da Conceição Tavares, reconhecendo a difícil situação do país como a mais grave crise de sua história, considera que as saídas ocorrerão a partir das novas gerações. Em sua visão, a juventude deve ser estimulada a ter suas “ilusões”, ou seja “(…) a profissão de fé que é possível, sim, interferir no status quo vigente (…)”. Por isso, a economista e intelectual conclama a necessidade de convocação da juventude para agir.

Ao mesmo tempo, Tavares assevera que, por não sermos uma democracia espontânea, as grandes mudanças somente ocorrem com apoio do Estado. Para ela “(…) qualquer projeto de costura dos tecidos do país passa obrigatoriamente pela restauração do Estado”, tal como ocorreu, por exemplo, no final da década de 30, quando da criação do Departamento Administrativo do Serviço Público. Com o DASP, houve mudanças significativas e de grande impacto na sociedade, inclusive antagonizando com o forte clientelismo e o patrimonialismo da época.

Tavares defende que o Estado no Brasil tem alta capacidade técnica de produzir políticas públicas transformadoras. Para ela, diante da situação que vivemos, cujos sintomas são de barbárie, “precisamos de uma ação restauradora”, pois o último período foi de destruição do Estado. Para promover o desenvolvimento do país, somente com um Estado forte. A economista defende ainda que a esquerda no país empunhe a bandeira da renda mínima, mas para efetivar essa política, a partir da restauração do Estado, somente se derrotar o neoliberalismo, “eutanasiando” o rentismo.

Josué Medeiros e Tatiana Roque apresentam uma discussão em que centralizam a democracia como eixo das reflexões e das estratégias da esquerda. Nessa esteira, defendem a imediata construção de uma frente ampla, para mobilizações sociais prementes, e uma frente de esquerda eleitoral para 2022. Tais iniciativas teriam a função de alavancar a superação da crise da democracia pela qual passamos. A frente ampla para impedir a regressão democrática em curso, e a Frente de esquerda, para viabilizar a vitória eleitoral contra o bolsonarismo e avançar.

De um modo geral, os argumentos apresentados por Medeiros e Roque encontraram em mim estreita concordância. Porém, a democracia como eixo principal das reflexões e estratégias da esquerda me parece insuficiente para cumprir o papel que muito bem descreveram, ou seja, defender as instituições democráticas que temos, derrotar o bolsonarismo eleitoralmente e criar condições para “voltar a imaginar e produzir uma democracia que seja, de fato, mais radical do que as experiências liberais do último século”.

Em seguida argumento, de forma incremental às ideias dos textos mencionados, que uma estratégia que coloque a democracia, o Estado e a relação Estado-sociedade no centro tem maior potencial para derrotar o bolsonarismo, recompor uma normalidade democrática e avançar sobre terrenos menos pantanosos, decantando uma base social ainda dispensa.

Definindo pontos de partida

O texto de Maria da Conceição Tavares apresenta três ideias-força muito relevantes e que devemos considerar no processo de debate sobre os rumos da esquerda. A primeira delas é a renovação a partir da juventude, uma juventude que tenha sua capacidade de sonhar e transformar rediviva. Está aqui, a meu ver, um princípio desse processo de retomada que precisamos empreender: qualquer mudança deve ocorrer a partir da renovação, motivada por utopias transformadoras.

Atualmente o desânimo e a descrença abatem muitos de nós e nosso discurso e sonhos tem sido colocado como antigos. Novo agora é ficar rico investindo da bolsa, buscar o primeiro milhão do zero, por esforço próprio, “trabalhando enquanto outros dormem”, tal como diversos canais de vídeo de altíssima audiência e bem remunerados por propagandas, apregoam. É possível que a direita esteja oferecendo à juventude as “ilusões” que Tavares apresenta como necessárias, enquanto a esquerda é posta como algo a se superar e isso esteja colando? A busca da felicidade sempre moveu a sociedade e está, grosso modo, no centro do debate filosófico, religioso e político, isso me faz perguntar, que relações os indivíduos e as massas fazem da sua felicidade com os projetos de país e sociedade em disputa de forma polarizada atualmente no Brasil?

A segunda ideia-força é a necessidade de se restaurar o Estado, que está pautada na avaliação de que o neoliberalismo está nos levando à barbárie. Aqui é preciso que tenhamos cuidado para que não voltemos a propostas realmente anacrônicas, que desconsideram a complexidade da sociedade neste início do século XXI. Muitas transformações ocorreram e uma discussão que envolva o Estado precisa considerá-las, sob pena de circunscrever a discussão a um tempo que não existe mais.

Não se pode negar, porém, outro princípio a partir do que a professora Maria da Conceição Tavares chama a atenção: de que no Brasil não há saltos de desenvolvimento sem um Estado como apoio. Para reforçar a ideia, acrescento a consideração de que, após a ditadura militar, todas as vezes que o povo brasileiro foi chamado a se posicionar para fazer escolhas políticas e foi submetido a um debate efetivo e a uma participação política maior, escolheu “mais Estado” e não o “menos Estado”. A Constituição da República de 1988, a eleição de Lula em 2002 e a eleição de Dilma em 2014 são exemplos que reforçam a minha afirmação de que a população brasileira não quer, e nunca quis o neoliberalismo. Tais fatos reforçam a importância do Estado como eixo de qualquer debate e estratégia para a esquerda.

A Constituição de 1988, conhecida como Constituição Cidadã, não só tem diversos dispositivos que sustentam um modelo de Estado preocupado e ativo com o desenvolvimento e com a previdência social e as políticas de mitigação da desigualdade como também estabelece diversas formas de participação e controle social. A eleição de Lula em 2002, sua reeleição em 2006 e a eleição de Dilma em 2010, na esteira da aprovação de Lula, sempre contra os candidatos que buscaram implementar o neoliberalismo nos anos 90, foram uma resposta do povo ao modelo em que o Estado era cada vez mais retirado das suas funções políticas, sociais e econômicas em favor da maioria da população e colocado cada vez mais a favor de setores econômicos monopolistas, sobretudo do ramo latifundiário e financeiro. Nas eleições de 2014, uma candidatura de Dilma já muito desgastada foi novamente vitoriosa, justamente porque encarnava o símbolo de um modelo de desenvolvimento diferente daquele que o povo viveu nos anos 1990. Mais uma vez o povo escolheu “mais Estado” e rechaçou o “Estado Mínimo”.

É importante destacar que em todo esse período, desde a redemocratização, e até antes, a mídia e outros aparelhos ideológicos e de hegemonia das elites no Brasil, nunca deixaram de atacar o Estado e propagandear o mercado. Além da disputa política franca, no parlamento, há forte campanha de mídia travestida de jornalismo em favor do “Estado mínimo”. Também forjou-se, com apoio e validação de pesquisas científicas realizadas nas universidades, a Administração Pública Gerencial. Essa teoria da administração pública sustenta, a partir de uma racionalidade tecnocrata, a deterioração do Estado por dentro, empresariando desde a mais simples repartição, até as grandes secretarias governamentais e empresas públicas.

Saiba mais em:https://outraspalavras.net/descolonizacoes/os-passos-cruciais-a-um-novo-estado-pos-neoliberal/

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