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Por que as ideias de Paulo Freire continuam tão poderosas

Um camarada de longa data do educador socialista Paulo Freire, o importante pedagogo marxista da Chapman University, Peter McLaren, explica como sua vida e obra impactaram o mundo e permanecem profundamente relevantes para a transformação do mundo hoje.

Por: Peter Mclaren | Créditos Foto: (UNICEN Argentina) | Tradução: Anouch Kurkdjian

Neste ano comemora-se o centésimo aniversário de nascimento do filósofo brasileiro Paulo Freire. Mais amplamente conhecido por seu magistral Pedagogia do oprimido, Freire continua a ser uma estrela-guia para professores que trabalham em comunidades assoladas pela pobreza ao redor do globo e para todos aqueles que procuram um senso de justiça em um mundo injusto.

Todo educador de mentalidade crítica usou Freire em algum momento de seu ensino – seja para entender o mundo confuso dos oprimidos ou como a inspiração que os levou a ver a docência como uma maneira de derrubar as assimetrias de poder e de privilégios da sociedade. Os programas de alfabetização de Freire para o empoderamento de camponeses são hoje usados em diversos países ao redor do globo e Pedagogia do oprimido é atualmente o terceiro trabalho mais citado nas ciências sociais e o primeiro na área da educação.

A celebridade de Freire fez dele tanto um alvo quanto um profeta em seu país natal, o Brasil. Atualmente ele está sendo alvo de grupos de extrema-direita como o Movimento Brasil Livre e o Revoltados Online, e o presidente Jair Bolsonaro afirma que é ele quem está por trás de uma conspiração de doutrinamento marxista no sistema escolar brasileiro.

Na verdade, as tentativas de Bolsonaro de extinguir a memória de Freire lembram os ataques dos Republicanos nos Estados Unidos aos teóricos críticos da raça e aos educadores marxistas. Bolsonaro e o movimento de extrema-direita Escola Sem Partido encorajaram estudantes a filmar professores durante as aulas, especialmente se suspeitassem que eles são defensores de ideias à esquerda ou, ainda pior, que propõem visões políticas ou sociais de inspiração freireana. Um deputado federal do partido de Bolsonaro chegou a introduzir uma lei para retirar de Freire seu título cerimonial como “patrono da educação brasileira”.

Mesmo os conservadores dos Estados Unidos entraram na onda de ataques a Freire. A edição recente da The Economist, “A ameaça da esquerda iliberal”, inclui um artigo dedicado à “cultura woke” que descreve equivocadamente a pedagogia de Freire como algo escrito no espírito da Revolução Cultural de Mao. Isso pra não dizer que o artigo pesca suas evidências de uma única nota de rodapé de Pedagogia do oprimido, ou, o que é mais importante, que a obra de Freire tinha como premissa a solidariedade com as massas e tomava uma posição contrária ao tipo de violência que se tornou parte da Revolução Cultural.

Então por que Bolsonaro e a revista The Economist deveriam mirar em Freire? O que é que eles acham tão ameaçador em suas ideias?

A vida de um educador revolucionário

Paulo Freire nasceu no Nordeste brasileiro, no estado do Recife, durante a Grande Depressão dos anos 1930. Ele aprendeu a ler desenhando as letras do alfabeto com os galhos da mangueira em cuja sombra ele se sentava quando jovem. A experiência da fome e da pobreza, que Freire teve desde muito pequeno, acabou fazendo com que ele ficasse quatro anos atrás de seus colegas da mesma idade na escola e a morte de seu pai em 1933 só fez as coisas piorarem.

Apesar disso, Freire foi, por fim, capaz de terminar seus estudos, se formar na universidade, fazer um doutorado na Universidade do Recife em 1959 e ser admitido no exame da ordem dos advogados (embora ele nunca tenha praticado o direito). Ele começou sua carreira profissional aos vinte e seis anos de idade, trabalhando como professor de português na Escola Secundária Oswaldo Cruz. Em 1946, ele foi nomeado diretor do Departamento de Educação e Cultura do Serviço Social do SESI, uma instituição de empregadores criada para oferecer aos trabalhadores do estado de Pernambuco e suas famílias serviços de saúde, habitação, educação e lazer. Em 1961, ele se tornou diretor do Departamento de Extensão Cultural da Universidade do Recife e esteve envolvido em um célebre projeto voltado para lidar com o analfabetismo de massa em 1962.

Esse projeto de alfabetização de Freire no Recife trouxe a ele reconhecimento internacional, particularmente por seu uso de tradições populares e pela importância que ele atribuía à construção coletiva de conhecimento. Foi nele que Freire começou a criar o que ele chamava de “círculos culturais” – termo que ele preferia a “aulas de alfabetização”, já que alfabetização e analfabetismo assumiam que ler e escrever já eram parte integrante do mundo social dos trabalhadores.

Em um desses círculos culturais, trezentos colhedores de cana aprenderam a ler e a escrever em um tempo recorde de quarenta e cinco dias. Estimulado, compreensivelmente, pelo sucesso de Freire, o governo brasileiro, liderado por João Goulart, fez planos de estabelecer dois mil círculos culturais freireanos, que iriam idealmente alcançar cinco milhões de aprendizes adultos e ensiná-los a ler em um período de dois anos. Era para ser um grande feito em um país no qual apenas metade da população adulta era capaz de ler e escrever.

O que não aconteceu. Em vez disso, em 1964, um golpe militar de direita destituiu o governo democraticamente eleito de Goulart. Freire, acusado de pregar o comunismo, foi interrogado e detido. Ele ficou preso pelo governo militar por setenta dias e foi para o autoexílio por medo de que sua posição proeminente na campanha de alfabetização nacional pudesse levar a seu assassinato. De fato, os militares brasileiros consideravam Freire um “subversivo internacional” e “um traidor de Cristo e do povo brasileiro”, acusado de tentar fazer do Brasil um “país bolchevique”.

Os dezesseis anos de Freire no exílio foram tumultuados, mas produtivos: depois de uma breve estadia na Bolívia, ele passou cinco anos no Chile, onde se envolveu no Movimento Cristão-democrata pela Reforma Agrária e trabalhou como um consultor da UNESCO junto ao Instituto de Pesquisa e Treinamento para a Reforma Agrária. Em 1969, ele foi pesquisador visitante no Centro de Estudos em Desenvolvimento e Mudança Social da Universidade de Harvard, mas mudou-se já no ano seguinte para Genebra na Suíça. Lá ele atuou como consultor do Escritório de Educação do Conselho Mundial das Igrejas, onde desenvolveu programas de alfabetização para a Tanzânia e para a Guiné-Bissau orientados para a re-africanização desses países. Ele também fez parte do desenvolvimento de programas de alfabetização em antigas colônias portuguesas em situação pós-revolucionária, como Guiné-Bissau e Moçambique, e auxiliou os governos de Peru e Nicarágua com suas próprias campanhas de alfabetização.

Freire finalmente retornou ao Brasil em 1980 para dar aulas na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e na Universidade de Campinas. De 1980 a 1986, ele foi supervisor do projeto de alfabetização de adultos do Partido dos Trabalhadores em São Paulo. Freire trabalhou brevemente como secretário da educação de São Paulo, de 1989 a 1992, continuando sua agenda radical de reforma do processo de alfabetização para a população desta cidade.

Campanhas globais de alfabetização

Durante todo seu tempo no exílio, Freire estava escrevendo o que logo se tornariam livros clássicos: Pedagogia do oprimidoAção cultural pela liberdade e Pedagogia em processo: cartas a Guiné-Bissau. A obra de Freire seria absorvida mais tarde por educadores, filósofos e ativistas políticos na América do Norte e na Europa, mas foi cunhada fundamentalmente no Sul Global: em comunidades de base, barrios urbanos, subúrbios e favelas, onde influenciou – e foi influenciada por – incontáveis movimentos sociais, dos esforços anti-apartheid na África do Sul ao Movimento dos Trabalhadores Sem-Terra no Brasil.

Freire sempre encorajou educadores a reinventar seu trabalho, em vez de simplesmente “transplantá-lo” através de fronteiras nacionais variadas, uma vez que ele via seu ensino como algo surgido em um contexto especificamente brasileiro. Ele chegou a essa percepção bem cedo, tendo ele mesmo estudado com educadores de visão parecida, cujas experiências em campanhas de alfabetização de massa em outros países ele teve de adaptar para o Brasil. Freire conheceu o arquiteto da Campanha Cubana de Alfabetização, Raúl Ferrer, em 1965 na Conferência Mundial Contra o Analfabetismo em Teerã. Ferrer e Freire se encontraram novamente em 1979 para discutir o papel da alfabetização na Revolução Sandinista na Nicarágua.

Freire considerava a campanha cubana de alfabetização, responsável por alfabetizar mais de novecentas mil pessoas em menos de um ano, uma das maiores conquistas educacionais do século XX. Ele disse coisas similares sobre a campanha sandinista de alfabetização na Nicarágua. Freire reconhecia abertamente o líder da independência cubana José Martí como um dos pensadores revolucionários mais importantes do século XX e era um admirador firme de Fidel Castro e Ernesto Che Guevara. O presidente Hugo Chavez, por sua vez, era um grande admirador de Freire e expressou a mim o desejo de trazer o trabalho de Freire para a Revolução Bolivariana – missão na qual eu pude desempenhar um papel breve e modesto.

Na semana seguinte a sua morte inesperada, Freire iria participar de uma cerimônia em Cuba, na qual Fidel Castro daria a ele um prêmio importante por sua contribuição à educação. De acordo com seus amigos, este seria o prêmio mais importante de vida de Freire.

Saiba mais em:https://jacobin.com.br/2021/12/por-que-as-ideias-de-paulo-freire-continuam-tao-poderosas/

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