Slavoj Žižek escreve à Jacobin sobre a escolha que está sendo relegada a nós: ou retornamos ao “antigo normal” de exploração ou aceitamos um “grande reset” corporativo, que nos promete um mundo pós-COVID ainda pior. Precisamos de uma verdadeira alternativa, um “reset” que consiga trazer justiça para todos e que salve o planeta do apocalipse climático.
Por Slavoj Žižek / Tradução Felipe Kusnitzki
Em Abril de 2020, em reação à pandemia da COVID-19, Jürgen Habermas sinalizou que “agora, a incerteza existencial está se espalhando global e simultaneamente nas cabeças dos indivíduos conectados pela mídia”. E completou: “Nunca antes houve tanto conhecimento sobre nossa ‘falta de conhecimento’ e sobre a limitação de agir e viver na incerteza.”
Habermas está correto ao afirmar que esta “falta de conhecimento” não se relaciona apenas à pandemia em si – sobre ela, ao menos, temos especialistas – mas, sobretudo, às suas consequências econômicas, sociais e psíquicas. Notem sua formulação precisa: não se trata simplesmente em não sabermos o que se passa, nós sabemos que não sabemos, e esta “falta de conhecimento” em si é um fato social, refletida na ação de nossas instituições.
Agora sabemos que, digamos, nos tempos medievais ou no início da modernidade, eles sabiam muito menos – mas eles não sabiam disso porque se baseavam em alguma base ideológica estável que garantia nosso universo como uma totalidade significativa. O mesmo vale para algumas visões do comunismo, até mesmo para a idéia de Francis Fukuyama sobre “fim da história” – todos eles presumiram saber para onde a história estava se movendo. Além disso, Habermas está certo em localizar a incerteza nas “cabeças dos indivíduos conectados pela mídia”: nosso link com o universo conectado expande tremendamente nosso conhecimento, mas ao mesmo tempo nos joga em uma incerteza radical (somos hackeados? Quem controla nosso acesso? Seria fake news o que estamos lendo?). Os vírus atacam em ambos os significados do termo, biológico e digital.
Quando tentamos adivinhar como nossas sociedades ficarão após o fim da pandemia, a armadilha a evitar é a futurologia – a futurologia, por definição, ignora nossa “falta de entendimento”. Futurologia é definida como uma previsão sistemática do futuro a partir das tendências atuais da sociedade. E aí reside o problema – a futurologia extrapola principalmente o que virá das tendências atuais. No entanto, o que a futurologia não leva em consideração são “milagres” históricos, rupturas radicais que só podem ser explicadas retroativamente, uma vez que acontecem.
Talvez devêssemos mobilizar aqui a distinção que funciona em francês entre futur e avenir: “Futur” é o que quer que seja que virá depois do presente enquanto “avenir” aponta para uma mudança radical. Quando um presidente ganha a reeleição, ele é “o atual e o futuro presidente”, mas ele não é o presidente “que virá” – o presidente “que virá” é um presidente diferente. Então, o universo pós-coronavírus será apenas outro futuro ou algo novo “por vir”?
Isso dependerá não apenas da ciência, mas de nossas decisões políticas. Chegou a hora de dizer que não devemos ter ilusões sobre o resultado “feliz” das eleições nos Estados Unidos, que tanto aliviou os progressistas de todo o mundo. They Live [Eles Vivem] (1988) de John Carpenter, uma das obras-primas negligenciadas da esquerda de Hollywood, conta a história de John Nada, um trabalhador sem-teto que acidentalmente tropeça em uma pilha de caixas cheias de óculos de sol em uma igreja abandonada. Quando ele coloca um par desses óculos enquanto caminha na rua, ele percebe que um outdoor de publicidade colorida dizendo para desfrutarmos de barras de chocolate agora simplesmente exibe a palavra “OBEDEÇA”, enquanto outro outdoor com um glamouroso casal dando um abraço apertado, visto através dos óculos, ordena quem está vendo a “CASAR E REPRODUZIR”.
Ele também vê que as cédulas de dinheiro trazem as palavras “ESTE É SEU DEUS”. Além disso, ele logo descobre que muitas pessoas que parecem atraentes são, na verdade, alienígenas monstruosos com cabeças de metal. O que agora tem circulado na internet é uma imagem que remonta uma cena de They Live, agora trazendo Joe Biden e Kamala Harris: vista diretamente, a imagem mostra os dois sorrindo com a mensagem “HORA DE CURAR”; vistos através dos óculos, eles são dois monstros alienígenas e a mensagem é “HORA DE OBEDECER”.
Isso, claro, faz parte da propaganda de Trump para desacreditar Biden e Harris como fantoches de máquinas corporativas anônimas que controlam nossas vidas. No entanto, há (mais do que) um grão de verdade nisso. A vitória de Biden significa “futuro” como a continuação da “normalidade” pré-Trump – e é por isso que houve um suspiro de alívio após sua vitória. Mas essa “normalidade” significa o governo do capital anônimo global, que é o verdadeiro alienígena em nosso meio.
Eu lembro que, quando jovem, havia o desejo por um “socialismo com um rosto humano” em contraposição ao “burocrático” socialismo de estilo Soviético. Biden hoje promete um capitalismo global com um rosto humano, onde por trás deste rosto a mesma realidade continua. Na educação, este “rosto humano” assumiu a forma de nossa obsessão com “bem-estar”: pupilo e estudantes devem viver em bolhas que os preservarão de todos os horrores da realidade externa, protegidos pelas regras do “politicamente correto”. A educação não tem mais a intenção de ter um efeito moderador para nos permitir confrontar a realidade social – e quando nos dizem que essa segurança evitará colapsos mentais, devemos contra-atacar exatamente com a afirmação oposta: essa falsa segurança nos deixa vulneráveis a crises mentais quando temos que enfrentar nossa realidade social. O que a “atividade de bem-estar” faz é fornecer um falso “rosto humano” para nossa realidade, em vez de nos permitir mudar essa própria realidade. Biden é o último presidente do “bem-estar”.
Mas então, por que Biden ainda é melhor do que Trump? Os críticos apontam que Biden também mente e representa o grande capital, só que de forma mais educada – mas, infelizmente, essa forma importa. Com sua vulgarização do discurso público, Trump estava corroendo a substância ética de nossas vidas, o que Hegel chamou de Sitten (em oposição à moralidade individual).
Esta vulgarização é um processo mundial. Vejamos o caso europeu de Szilárd Demeter, um comissário ministerial e chefe do Museu Literário Petőfi em Budapeste. Demeter escreveu em um artigo de opinião em novembro de 2020: “A Europa é a câmara de gás de George Soros. O gás venenoso flui da cápsula de uma sociedade aberta e multicultural, que é mortal para o modo de vida europeu.” Ele passa então a caracterizar Soros como “o Führer progressista”, insistindo que seu “exército progressis-ariano o endeusa mais do que o próprio Hitler”.
Se questionado, Demeter provavelmente dissuadiria suas declarações como sendo exageros retóricos; isto, no entanto, de forma alguma desfaz suas terríveis implicações. Esta comparação entre Soros e Hitler é profundamente antisemita; coloca Soros no patamar de Hitler, dizendo que a sociedade aberta e multicultural promovida por Soros não apenas é tão perigosa quanto o Holocausto e o racismo ariano que o sustentava (“progresssis-ariano”) mas ainda pior, mais perigosa ao “modo de vida europeu”.
Haveria, então, alternativa para esta terrível visão para além do “rosto humano” de Biden? Recentemente, a ativista climática Greta Thunberg ofereceu três positivas lições sobre a pandemia: “É possível tratar uma crise como uma crise, é possível colocar a saúde das pessoas acima de interesses econômicos e é possível ouvir a ciência.”
Sim, mas estas são possibilidades – também é possível tratar uma crise de tal forma que alguém a use para ofuscar outras crises (como: por conta da pandemia nós devemos esquecer o aquecimento global); também é possível usar a crise para tornar os ricos mais ricos e os pobres mais pobres (o que efetivamente aconteceu em 2020 com uma velocidade sem precedentes); e também é possível ignorar ou compartimentar a ciência (basta lembrar aqueles que se recusam a tomar vacinas, o aumento explosivo de teorias da conspiração e etc.). Scott Galloway nos traz uma imagem mais ou menos precisa das coisas em nossos tempos de corona:
Estamos avançando em direção a uma nação com três milhões de senhores servidos por 350 milhões de servos. Não gostamos de dizer isso em voz alta, mas sinto como se essa pandemia tivesse sido amplamente inventada para levar os 10% mais proeminentes ao 1% mais alto, e rebaixar o resto dos 90% ainda mais para baixo. Decidimos proteger empresas, não pessoas. O capitalismo está literalmente entrando em colapso sobre si mesmo, a menos que reconstrua esse pilar de empatia. Decidimos que capitalismo significa ser amoroso e empático com as empresas e darwinista e severo com os indivíduos.
Qual seria, então, a saída para Galloway? Como podemos prevenir o colapso social? Sua resposta diz que “o capitalismo irá colapsar em si mesmo se não houver mais empatia e amor”. “Estamos entrando no ‘Grande Reset’ e está acontecendo rápido. Muitas empresas serão tragicamente extintas pela queda econômica da pandemia, e aquelas que sobreviverem existirão de uma forma diferente. Organizações serão, de longe, mais adaptáveis e resilientes. Equipes que trabalham distantes que seguiam prosperando com menos supervisão vão lutar por esta mesma autonomia daqui em diante. Funcionários vão esperar que executivos continuem liderando com transparência, autenticidade e humanidade.”
Mas, novamente, como isso será feito? Galloway propõe a destruição criativa que permite a falência de negócios e, ao mesmo tempo, protege as pessoas que perdem seus empregos: “Nós deixamos as pessoas serem demitidas para que a Apple pudesse surgir e colocar a Sun Microsystems fora do mercado, e então nós tiramos essa incrível prosperidade e temos mais empatia com as pessoas.”
O problema, claro, é: quem é o misterioso “nós” na última frase citada, ou seja, como, exatamente, a redistribuição é feita? Será que apenas tributamos mais os vencedores (neste caso, a Apple), enquanto lhes permitimos manter sua posição de monopólio? A ideia de Galloway tem um certo talento dialético: a única maneira de reduzir a desigualdade e a pobreza é permitir que a competição de mercado faça seu trabalho cruel (deixamos as pessoas serem demitidas), e então… o quê? Esperamos que os próprios mecanismos de mercado criem novos empregos? Ou o Estado? Como o “amor” e a “empatia” são operacionalizados? Ou contamos com a empatia dos vencedores e esperamos que todos se comportem como Bill Gates e Warren Buffett?
Saiba mais em: https://jacobin.com.br/2021/03/por-um-grande-reset-socialista-apos-a-pandemia/
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