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Por um programa nacional de combate à fome

Por: Jean Marc von der Weid |Créditos da foto: (Danilo Verpa/Folhapress)

Há seis meses escrevi um artigo com o título “Os cavaleiros do apocalipse”, descrevendo as ameaças de Bolsonaro ao povo brasileiro. O primeiro cavaleiro, a peste, vestido com a roupagem da Covid19, galopava do Oiapoque ao Chuí, animado pela ação e falta de ação do presidente. O segundo cavaleiro, a fome, assolava metade da população, apesar do auxílio emergencial votado pelo Congresso. O terceiro cavaleiro, a guerra, era uma ameaça presente nas provocações do presidente contra as instituições da república, buscando uma ruptura pela mobilização das forças armadas, das polícias e das milícias. O quarto cavaleiro, a morte, seguia os outros com a foice em riste, matando mais de 600 mil por doença, fragilizando dezenas de milhões pela subnutrição e ameaçando pelo menos os “trinta mil, que a ditadura não matou e devia ter matado”, nas palavras de Bolsonaro.

De lá para cá o quadro mudou.

Em primeiro lugar, o primeiro cavaleiro está agora trotando desconsolado com a queda nos óbitos e sequelados pela Covid19. Ainda mata quase 400 por dia, mas o ritmo cai de semana a semana, muito embora possa recrudescer se não tomarmos cuidado.

Podemos dizer que o povo brasileiro derrotou o cavaleiro e seu agente mais importante, o próprio presidente. Apesar de tudo o que Bolsonaro fez para impedir o combate à pandemia, a ação de governadores e prefeitos (frágil e inconsistente, é verdade) na adoção de medidas restritivas à circulação (longe dos lockdowns empregados em outros países) e no uso de máscaras (não adotadas por defensores do presidente) limitou a expansão da contaminação. Mas o golpe decisivo contra a posição do presidente foi a pressão provocada pelo governo de São Paulo através do apoio ao Instituto Butantã na produção de vacinas. O avanço na produção da Coronavac e a promessa do governador João Dória de iniciar a vacinação por conta própria obrigou Bolsonaro a recuar e entrar (atrasado, desordenadamente e com suspeitas de corrupção) na compra e na distribuição de vacinas. Pouco a pouco os efeitos foram se fazendo sentir e a população foi aderindo à vacinação. Hoje menos de 10% dos brasileiros se dizem decididos a não se vacinar. Uma boa parte do eleitorado de Bolsonaro está entre os que pretendem fazê-lo. Nas pesquisas de opinião a pergunta sobre o comportamento do presidente no combate à pandemia é a que produz o mais importante índice de condenação ao energúmeno. Sem reconhecer seus erros (ou crimes) Bolsonaro continua defendendo a cloroquina, atacando as medidas de controle da pandemia e tentando desmoralizar as vacinas.

O terceiro cavaleiro, a “guerra”, também recolheu seu corcel à estrebaria. Bolsonaro ficou pendurado na brocha quando a provocação para a invasão do STF não encontrou apoio suficiente, quer no tamanho da mobilização de apoiadores nas manifestações de 7 de setembro, quer entre a generalada da ativa. O momento criado para emparedar o STF e o congresso deu chabú e o presidente foi obrigado a um recuo desmoralizante deixando no sal a sua base de apoiadores fanáticos nas redes sociais e nos bloqueios das estradas. Apesar das ameaças as polícias não aderiram às manifestações e não hostilizaram aquelas que denunciavam o presidente.

Não se pode descartar novas tentativas de golpe mais ou menos explícito por parte do energúmeno (este é o seu sonho desde a posse), mas agora a agenda de Bolsonaro parece ter se voltado para a tentativa de ser competitivo nas eleições do ano que vem. Bolsonaro está apostando tudo na distribuição de dois tipos de benesses: a “bolsa Bolsonaro” que vai substituir o Bolsa Família, distribuindo 400,00 reais a 17 milhões de pessoas e o “bolsa Centrão”, dirigida aos deputados e senadores através das emendas parlamentares visando pagar obras de última hora nas bases de suas excelências. Para pagar estas benesses Bolsonaro rasgou de vez a fantasia de neoliberal propondo o furo no teto de gastos, último baluarte desta corrente de pensamento, da Faria Lima e do “mercado”. O preço já está sendo cobrado com a alta rápida de um dólar que já estava disparando e com a queda ainda mais pronunciada da Bolsa de Valores. Dá vontade de dizer: quem pariu Mateus que o embale.

Estamos diante de um presidente (e de um congresso que é seu cúmplice) vivendo para a reeleição e dando uma banana para a economia e para o povo em geral. Os urubus estão comendo a ainda farta carniça da República enquanto dezenas de milhões de desempregados e subempregados estão em crescente insegurança alimentar e fome, endividados e sem perspectiva frente a uma economia que já andava de lado e agora tende à estagnação ou à depressão enquanto a inflação dispara.

O único cavaleiro ainda galopando alegremente pelo país afora é a fome. Embora a fome não mate com a mesma eficiência da peste (covid19), ela atinge muito mais gente e seus efeitos são de curto, médio e longo prazo. Desnutrição e subnutrição não levam as pessoas diretamente para o SUS ou para o cemitério, mas são a porta de entrada para inúmeras doenças ou para o agravamento das existentes. Pessoas desnutridas são mais vulneráveis a todo tipo de enfermidades pela queda da imunidade, entre outros efeitos. Para as crianças o risco é ainda mais grave por gerar problemas de desenvolvimento físico e mental para toda a vida adulta.

No artigo mencionado acima apontei para as pesquisas que mostram quase 120 milhões de pessoas que (1) passam fome todos os dias, (2) comem menos do que deviam ou (3) que ingerem alimentos de baixa qualidade nutricional (os que “enchem barriga”). Apesar dos gastos com o auxílio emergencial terem minimizado o impacto da pandemia na renda e no consumo das famílias eles não impediram que este quadro dantesco se instalasse. Todos os indicadores, que já vinham se deteriorando desde o golpe de 2016, só fizeram piorar com a pandemia. Poderia ser ainda mais grave, é claro, sem o auxílio emergencial.

O fato mais dramático do impasse em que o povo brasileiro foi colocado pelo energúmeno, mas também por erros herdados do passado, é que colocar recursos na mão dos desvalidos não é suficiente para garantir a alimentação necessária para uma vida saudável. O efeito visível do aumento da demanda de alimentos, propiciada pelo auxílio emergencial, foi o aumento do preço dos alimentos. Isto se deve a um problema estrutural. O Brasil, apesar da propalada pujança da sua agricultura (“agro é tec, agro é pop, agro é tudo”) produz cada vez menos os alimentos que consome. Estamos aumentando a parte importada do que comemos enquanto exportamos cada vez mais para alimentar porcos, galinhas e gado em outros países. A economia liberal considera que isto não é um problema pois com as exportações de soja e milho (50% da área cultivada no país) ganhamos dólares para comprar os alimentos que precisamos. O buraco é mais embaixo. Os preços dos alimentos vêm subindo no mercado internacional por duas razões: com a pandemia muitos exportadores de arroz (para dar um exemplo) passaram a reter o produto para garantir seus mercados internos, pressionando os preços, enquanto os custos dos insumos (adubos químicos, agrotóxicos e combustíveis) sobem sem parar. Além disso, a alta do dólar tem efeito fatal sobre as importações. O resultado é que importar alimentos não significa baratear a comida; o arroz importado chega mais caro do que o produto nacional, apesar de escasso.

Como chegamos a esta situação? Lembro-me de o presidente Lula dizer, na Conferência Nacional de Segurança Alimentar de 2003, que o Brasil era muito grande e comportava uma ampla diversidade de produtores rurais. Haveria espaço (supostamente sem contradições) para o agronegócio e para a agricultura familiar (que supunha-se produzir 70% dos alimentos consumidos no Brasil). Mais tarde ele ampliou este conceito dizendo que havia espaço para todo tipo de produção: orgânica, transgênica e convencional. Foi um erro (iniciado no governo FHC) que nos trouxe à situação atual, muito piorada pela ação dos governos Temer e Bolsonaro.

Os programas de apoio à agricultura familiar se basearam na ampliação da oferta de crédito facilitado para a compra de insumos químicos e uso de mecanização. Os agricultores familiares se endividaram no uso desse crédito de custeio e passaram a acompanhar as demandas do agronegócio pelo perdão e/ou renegociação amplamente subsidiada das dívidas bancárias. Os produtores da região sul, os mais integrados nos mercados, descobriram rapidamente que a melhor alternativa para fechar as contas era mudar aquilo que plantavam, abandonando a produção de feijão, arroz e outros produtos alimentares pela soja. Este produto tinha e tem mercado seguro, preços internacionais em crescimento constante e ainda o ganho com a valorização do dólar. O resultado é que a maior parte do crédito para a agricultura familiar foi dirigido ao cultivo de soja e milho (não para fubá, cuscuz e broa, mas para a ração animal) e a produção de alimentos para o mercado interno caiu.

O resultado das políticas de apoio à agricultura familiar levou à adesão de parte desta categoria ao sistema de produção agroquímico e motomecanizado, criando ou ampliando o chamado “agronegocinho”. Isto começou com o governo FHC, mas foi muito expandido (10 vezes) nos governos de Lula e de Dilma. Entretanto, o efeito de se colocar a agricultura familiar em concorrência com o agronegócio sojeiro foi desastroso. Os números do censo agropecuário de 2017 indicam que o número de agricultores familiares caiu, desde 2006, de 4,3 milhões para 3,9 milhões de produtores, uma diminuição de 400 mil agricultores, para usar números redondos. Isto se deu apesar do programa de reforma agrária ter distribuído terras para aproximadamente 400 mil famílias no período em questão. Em outras palavras, deixaram o campo um total de perto de 800 mil famílias, justamente no único período da nossa história onde um conjunto coerente de políticas foi dirigido para a categoria dos agricultores familiares. Por outro lado, a participação dos agricultores familiares no valor da produção agropecuária caiu para 25% do total, sendo que uma parte muito significativa ficou concentrada na fração do agronegocinho. É verdade que uma considerável parcela da produção da agricultura familiar não se destina para o mercado formal, mas para o autoconsumo e para o circuito de vizinhança e não é detectada pelo censo.

Isto poderia levar à conclusão de que o erro foi tentar salvar a agricultura familiar e não faltam economistas liberais para afirmar esta percepção. No entanto, é preciso levar em conta a infinidade de apoios recebidos pelo agronegócio tanto em isenções de impostos como em subsídios variados, e a ausência da incorporação dos custos ambientais e sociais nesta equação. Por outro lado, existem inúmeros exemplos que mostram a viabilidade econômica, social e ambiental de outros modelos produtivos, chamados de agroecológicos. Nos últimos 40 anos as experiencias práticas no modelo agroecológico se expandiram significativamente, chegando hoje a envolver perto de 200 mil produtores familiares no Brasil.

No Brasil e no mundo já foram feitos estudos comparativos entre os modelos produtivos e o agroecológico é o único que garante a sustentabilidade da produção agropecuária no longo prazo e sem efeitos deletérios no meio ambiente e no clima. O que temos que discutir agora é como enfrentar a crise alimentar levando em conta os desafios imediatos que temos que enfrentar.

A questão da fome tem que ser encarada como tão importante quanto a questão da pandemia, até porque esta última é derivada, em boa parte, pelo modelo produtivo do agronegócio que devasta o meio ambiente e prolifera os vírus. Não pode ser considerado normal que mais da metade dos brasileiros e brasileiras de todas as idades sofram diariamente com a falta de alimentação ou com a alimentação inadequada em quantidade e qualidade. E não podemos esperar que Bolsonaro seja afastado para buscar enfrentar o problema. A luta por uma solução para a crise alimentar deve ser o elemento mobilizador de todos os esforços atualmente. É mais do que provável que Bolsonaro seja um obstáculo a qualquer solução, mas o movimento pela sua retirada deve ser no bojo da luta contra a fome e não o contrário.

No momento presente estamos assistindo ao início da campanha eleitoral com desfecho apenas em outubro do ano que vem, e quem tem fome, como dizia meu saudoso amigo Betinho, tem pressa. Bolsonaro está usando a questão da fome e da pobreza como uma parte do seu jogo eleitoral, mas as suas propostas, como se era de esperar, não resolvem nada. O debate sobre o plano de ajuda social deve ir além do valor a ser distribuído aos pobres e quantos serão os beneficiários. A resposta ao projeto do governo não pode ser apenas defender 600,00 reais por mês contra os 400,00 reais propostos pelo energúmeno. Nem tampouco cair na esparrela de centrar fogo no rompimento do teto de gastos.

Temos dois problemas, um imediato e o outro de médio prazo. O imediato é importar alimentos em quantidade e diversidade necessárias para uma alimentação minimamente saudável para todos. Cair nas soluções do “encher barriga” não resolve nada, só alivia os sintomas. Passaríamos da fome aberta para o que especialistas chamam de “fome oculta” e os efeitos na saúde continuariam presentes via subnutrição. Falo em importar alimentos porque está claro que a produção nacional, seja ela da agricultura familiar ou do agronegócio não é suficiente, no momento, para alimentar pelo menos os 70 milhões com insegurança alimentar aguda ou moderada. Dar 400,00 reais para 17 milhões, projeto do energúmeno, sem aumentar a oferta de alimentos, redundará apenas em uma inflação ainda maior destes produtos e corroerá rapidamente a merreca oferecida. Mas se aumentarmos os recursos para 600,00 reais o problema vai persistir. É a lei da oferta e da procura, talvez a única em vigor neste país.

Se quisermos garantir que os 600,00 reais do auxílio cheguem para garantir o consumo adequado de alimentos em uma família não basta importar os alimentos e colocá-los no mercado pois, como já dito, seus preços serão ainda maiores que os dos equivalentes nacionais. O governo vai ter que controlar a distribuição a preços subsidiados, com valores calculados em função do auxílio pago aos beneficiários. Ou aumentar o auxílio para cobrir os preços do produto importado. Nesta segunda opção o ajuste deve ser fino, levando em conta a inflação de alimentos e outros custos.

Os liberais tendem a deixar que o mercado se encarregue de resolver o problema das importações, sem intervenção do governo. Balela. O mercado agroalimentar não vai se mexer quando puder ganhar sem esforço com o aumento dos preços.

Saiba mais em: https://www.cartamaior.com.br/?/Editoria/Politica/Por-um-programa-nacional-de-combate-a-fome/4/51957

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