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Rentismo: a lógica oculta das privatizações

Saúde, Água, Educação, Transportes. Tudo o que poderia garantir vida digna às maiorias e negócios a milhares de empreendedores é vendido a preço de ouro por megacorporações. Como esta regressão ocorreu. Quais os caminhos para revertê-la

Por Michael Roberts

Um fator poderosíssimo para a desindustrialização das sociedades ocidentais contemporâneas é o aumento do custo de vida resultante da conversão de infraestruturas públicas em monopólios privatizados. Quando os Estados Unidos e a Alemanha ultrapassaram o capitalismo industrial britânico, foi reconhecido que uma das principais chaves para a vantagem industrial era o investimento público em ferrovias, estradas, e outros meios de transportes; educação, saúde pública, comunicações e outras infraestruturas básicas. Simon Patten, o primeiro professor de teoria econômica na primeira business school dos EUA, a Wharton School da Universidade da Pensilvânia, definiu a infraestrutura pública como um “quarto fator de produção”, para além do trabalho, do capital e da terra. Mas ao contrário do capital, explicava Patten, o seu objetivo não era o de obter lucro. O seu objetivo era minimizar o custo de vida e de fazer negócios, proporcionando serviços básicos a baixo preço para tornar o setor privado mais competitivo.

Ao contrário das taxas militares que sobrecarregavam os contribuintes nas economias pré-modernas, “numa sociedade industrial, o objetivo da tributação é aumentar a prosperidade industrial” através da criação de infraestruturas sob a forma de canais e ferrovias, um serviço postal e educação pública. Esta infraestrutura era um “quarto” fator de produção. Os impostos seriam “não encargos”, explicava Patten, na medida em que fossem investidos em melhoramentos internos públicos, encabeçados por transportes tais como o Canal Erie [2].

A vantagem deste investimento público é reduzir custos ao invés de deixar privatizadores imporem rendas de monopólio na forma de encargos de acesso à infraestrutura básica. Governos podem estabelecer os preços dos serviços destes monopólios naturais (incluindo criação de crédito, como estamos a ver hoje) ao preço de custo ou oferecê-los gratuitamente, ajudando o trabalho e seus empregadores industriais a venderem por menos a países aos quais faltam tais empreendimentos públicos.

Nas cidades, explicava Patten, o transporte público elevava os preços das propriedades (e portanto da renda econômica) na periferia afastada, assim como o Canal Erie havia beneficiado agricultores do Oeste que competiam com agricultores do norte do estado de Nova York. Esse princípio é evidente nos bairros suburbanos de hoje em relação aos centros de cidades. A extensão do metrô de Londres ao longo da Jubilee Line, e do metrô da Segunda Avenida da Cidade de Nova York, mostraram que o transporte subterrâneo e o ônibus podem ser financiados publicamente pela tributação do valor rentístico mais alto criado para determinados espaços ao longo destas rotas. Pagar o investimento de capital a partir de tais taxas pode providenciar transportes a preços subsidiados, minimizando consequentemente o custo de estrutura da economia. O que Joseph Stiglitz popularizou como a “Lei de Henry George” deveria assim, mais corretamente, ser conhecida como “Lei de Patten” da tributação não sobrecarregada por dívidas (burdenless). [3]

Sob um regime de “tributação não exagerada” o retorno sobre o investimento público não toma a forma de lucro mas destina-se a reduzir o preço geral de estrutura da economia para “promover prosperidade geral”. Isto significa que governos deveriam operar diretamente os monopólios naturais ou, pelo menos, regulá-los. “Parques, serviços de saneamento e escolas melhoram a saúde e a inteligência de todas as classes de produtores, o que lhes permite produzir de modo mais barato e competir com mais êxito em outros mercados”. Patten concluía: “Se os tribunais, correios, parques, obras gasistas, hidráulicas, de arruamentos, fluviais e melhorias de portos e outras obras públicas não aumentarem a prosperidade da sociedade elas não deveriam ser efetuadas pelo Estado”. Mas esta prosperidade para a economia geral não pode ser obtida ao tratar empresas públicas como centros de lucro, como se diz hoje em dia. [4]

Em certo sentido, isto pode ser chamado “privatizar os lucros e socializar os prejuízos”. Advogar uma economia mista de acordo com estas linhas é parte da lógica do capitalismo industrial que procura minimizar a produção do setor privado e dos custos de emprego a fim de maximizar lucros. A infraestrutura social básica é um subsídio a ser fornecido pelo estado.
O primeiro-ministro conservador britânico Benjamin Disraeli (1874-80) refletiu este princípio: “A saúde do povo é realmente o fundamento sobre o qual depende toda a sua felicidade e todos os seus poderes enquanto Estado”. [5] Ele patrocinou a Lei da Saúde Pública de 1875, seguida da Lei da Venda de Alimentos e Drogas e, no ano seguinte, a Lei da Educação. O governo prestaria estes serviços, e não empregadores privados em busca de monopólio.

Durante um século, o investimento público ajudou os Estados Unidos a seguir uma política de economia de altos salários, providenciando padrões de educação, alimentação e saúde para tornar o trabalho mais produtivo e assim ser capaz de livrar-se do trabalho “miserável” de baixo salário. O objetivo era criar uma retroalimentação positiva entre salários em ascensão e aumento da produtividade do trabalho.

Isto está em contraste absoluto com o business plan do capitalismo financeiro de hoje – cortar salários e, também, reduzir o investimento de capital a longo prazo, a investigação e o desenvolvimento enquanto privatiza infraestrutura pública. A carnificina neoliberal de Ronald Reagan nos Estados Unidos e de Margaret Thatcher na Grã-Bretanha na década de 1980 foi apoiada pelas exigências do FMI de que economias devedoras equilibrassem seus orçamentos pela liquidação de empresas públicas e recortes nos gastos sociais. Serviços de infraestrutura foram privatizados como monopólios naturais, aumentando drasticamente os custos de estrutura de tais economias, mas criando enormes comissões de subscrição financeira e ganhos no mercado bolsista da Wall Street e de Londres.
Até agora privatizar monopólios públicos tornou-se um dos modos mais lucrativos de ganhar riqueza financeiramente. Mas cuidados de saúde privatizados e seguros médicos são pagos pelo trabalho e seus empregadores, não pelo governo como no capitalismo industrial. E face à ascensão de custos do sistema educacional privatizado, o acesso da classe média ao emprego tem sido financiado pela dívida estudantil. Estas privatizações não ajudaram as economias a tornarem-se mais ricas ou competitivas. Ao nível vasto da economia, este plano de negócios é uma corrida para o fundo, mas uma corrida que beneficia a riqueza financeira no topo.

O capitalismo financeiro empobrece economias enquanto aumenta seu custo de estrutura

A renda econômica clássica é definida como o excesso de preço sobre o valor de custo intrínseco. Capitalizar esta renda – quer seja a renda da terra ou a renda monopólica da privatização acima descrita – em obrigações, ações e empréstimos bancários cria “riqueza virtual”. A criação exponencial de crédito do capitalismo financeiro aumenta a riqueza “virtual” – títulos financeiros e direitos de propriedade – ao administrar estes títulos e créditos de uma forma que os fez valer mais do que a riqueza real tangível.

A principal forma de ganhar fortunas é obter ganhos nos preços de ativos (“ganhos de capital”) em ações, obrigações e bens imobiliários. Contudo, esta sobrecarga financeira exponencialmente crescente, com alavancagem da dívida, polariza a economia de forma a concentrar a propriedade da riqueza nas mãos dos credores, e dos proprietários de imóveis de aluguel, ações e títulos – drenando a economia “real” a fim de pagar o setor FIRE.
A teoria econômica pós-classica descreve a infraestrutura privatizada, o desenvolvimento de recursos naturais e a banca como fazendo parte da economia industrial, não sobreposta a ela por uma classe em busca de rendas. Mas a dinâmica de economias capitalistas-financeiras não consiste em ganhar riqueza principalmente pelo investimento em meios de produção industrial e poupando lucros ou salários, mas sim em ganhos de capital obtidos principalmente através da procura da busca de rendas. Estes ganhos não são “capital” como se entendia classicamente. São “ganhos financeiros-capitalistas”, porque resultam de uma inflação de preços de ativos alimentada pela alavancagem da dívida.

Ao inflacionar os seus preços de habitação e uma bolha no mercado de ações a crédito, a alavancagem da dívida dos EUA, bem como a sua financeirização e privatização de infraestruturas básicas, colocou os seus preços afastados dos mercados mundiais. A China e outros países não financiarizados evitaram custos elevados de seguros de saúde, custos de educação e outros serviços, estabelecendo-os em baixo custo ou gratuitos, encarando-os como um serviço público. A saúde pública e os cuidados médicos custam muito menos no estrangeiro, mas são atacados nos Estados Unidos pelos neoliberais como “medicina socializada”, como se financiarizar a prestação de cuidados de saúde tornasse a economia dos EUA mais eficiente e competitiva. Os transportes também foram financiarizados e gerido com fins lucrativos, não para baixar o custo de vida e de fazer negócio.

Deve-se concluir que a América optou por não mais industrializar, mas financiar a sua economia através da renda econômica – renda monopolista, desde as tecnologias de informação, à banca e à especulação, deixando a indústria, investigação e desenvolvimento para outros países. Mesmo que a China e outros países asiáticos não existissem, não há maneira de a América recuperar os seus mercados de exportação ou mesmo o seu mercado interno com as suas atuais despesas gerais sobrecarregadas pelo endividamento e a sua educação privatizada e financiarizada, assim como os cuidados de saúde, transportes e outros setores de infraestrutura básica.
O problema subjacente não é a competição da China, mas a financiarização neoliberal. Capitalismo-financeiro não é capitalismo industrial. É uma decadência de volta à servidão da dívida e ao neo-feudalismo rentista. Os banqueiros desempenham hoje o papel que os senhores da terra desempenharam ao longo do século XIX, fazendo fortunas sem o valor correspondente, através de ganhos de capital com o imobiliário, ações e títulos a crédito, pelo alavancamento de dívida cujos encargos aumentam o custo de viver e de fazer negócio da economia.

Saiba mais em: https://outraspalavras.net/mercadovsdemocracia/rentismo-a-logica-oculta-das-privatizacoes/

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