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Resgatar o Brasil: o que não faltará é dinheiro

Ladislau Dowbor e Daniel Conceição demonstram: o neoliberalismo fiscal está em crise. Um novo governo terá meios para ampliar direitos sociais, renovar infraestrutura e gerar milhões de ocupações. O essencial é recriar horizonte político

Daniel Conceição e Ladislau Dowbor – Entrevista a Antonio Martins

Reconstruir o Brasil em novas bases exigirá muitos atributos: inteligência, horizontes, planejamento, trabalho, recursos, estratégia política. Mas na noite de 8 de julho, quando abriram a série de diálogos do projeto Resgate, Ladislau Dowbor e Daniel Conceição, dois economistas de origens e trajetórias muito distintas, ajudaram a desfazer um bloqueio. Eles concordaram que, a uma sociedade e um novo governo empenhados na transformação do país, não faltará dinheiro. A consonância em torno desta possibilidade não representa pouco. Ao longo das últimas quatro décadas, o pensamento econômico neoliberal sustentou que tal projeto era impossível. A obrigação essencial dos governantes, dizia-se, era cumprir uma “disciplina fiscal” que impedia qualquer passo mais ousado – e restringiu, mesmo no período dos presidentes de esquerda, ações decididas rumo às reformas estruturais.

Agora, este consenso está sendo desmentido, mostraram Dowbor e Conceição. Os sinais mais claros vêm, por enquanto do plano internacional. Os Estados Unidos desencadearam, após a eleição de Joe Biden, um programa de socorro às famílias, de geração de ocupações e de investimentos em infraestrutura e tecnologia que é, sozinho, 2,5 vezes maior que a economia brasileira. A China alcançou, muito antes, êxitos notáveis nos campos econômico, social e – mais recentemente – ambiental precisamente por ignorar o princípio segundo o qual os Estados “estão limitados a gastar apenas o que arrecadam”. E, além destes casos emblemáticos, há a experiência da pandemia. Em emergência, para evitar um naufrágio ainda maior, praticamente todos os governos multiplicaram seus gastos – inclusive o do Brasil, onde o Palácio do Planalto sabotou o combate à pandemia mas foi obrigado a pagar, por nove meses, um auxílio emergencial de R$ 600.

Qual o segredo deste início de virada? E até onde ele pode nos levar? Dowbor e Conceição argumentaram que no âmago da mudança está uma nova compreensão, desmistificadora, sobre o papel do dinheiro. Para os Estados, a moeda nacional não é nem um ente místico, que só pode ser criado por uma classe especial de financistas, nem um bem escasso, que precisa ser obtido da sociedade por meio de impostos. Os Estados produzem a moeda – esta, portanto, jamais lhes faltará. E ao fazê-lo podem modificar o balanço entre as riquezas dos diversos atores sociais. Emitir trilhões de dólares em favor dos credores da dívida pública, como se fez em todo o mundo, nas crises financeiras de 2008 e 2020, enriquece os super-ricos, o 0,1%. Não foi à toa, lembrou Ladislau, que nos quatro primeiros meses de pandemia os 42 bilionários brasileiros ampliaram suas fortunas em R$ 180 bilhões – o equivalente a seis anos de bolsa-família, que beneficia 30 milhões de pessoas.

Mas emitir moeda em favor do Comum tem o efeito oposto, frisou Conceição. Se o Estado assegurar que a Educação e a Saúde pública serão as de excelência, uma vasta parcela da população se verá desobrigada de pagar planos e mensalidades privadas. Se a sociedade estiver disposta a respaldar um programa de transformação da infraestrutura que assegure saneamento para todos, despolua os rios urbanos, transforme as periferias e construa redes de metrô nas metróples, dezenas de milhões de empregos dignos podem ser gerados. Os mesmos mecanismos monetários e financeiros que hoje aprofundam a desigualdade podem ser revertidos e agir em sentido contrário. Não falta dinheiro – e sim, vontade política. Mas para reacender esta vontade é essencial superar a impotência gerada pelo medo de desobedecer a “disciplina fiscal” que favorece o 0,1%.

A emissão de moeda não produzirá hiperinflação? Ladislau e Daniel contrapuseram a esta verdade de almanaque um pensamento muito mais sofisticado. Uma inflação “de demanda” pode ser provocada, argumentaram, quando se busca tirar da economia aquilo – recursos ou força de trabalho – que ela não tem condições de oferecer. Uma Renda Básica exorbitante produziria o desejo adquirir o que não se pode, nas condições atuais, produzir.

Mas o cenário da economia brasileira é oposto a este. O problema é que os recursos existentes são desaproveitados, porque o neoliberalismo fiscal e as estruturas seculares de injustiça impedem utilizá-los. A produção está abaixo do nível de 2011, lembra Ladislau. Há uma multidão de desocupados ou subocupados: gente que não encontra trabalho, ou é obrigada a exercer atividades muito aquém de sua qualificação. A indústria opera com quase 50% de capacidade ociosa. Há um gigantesco desperdício da terra: uma superfície equivalente à de cinco Itálias está destinada à especulação fundiária ou reservada a atividades pouquíssimo intensas, como a pecuária extensiva. A “inflação de demanda” está, portanto, a anos-luz de distância. Há enorme espaço para mobilizar a potência desaproveitada do país, se houver horizonte político para tanto.

Isso significa, então, que não necessitamos de uma Reforma Tributária? Errado, argumenta Daniel Conceição. O Estado não precisa desta reforma para emitir dinheiro. Mas ela é um instrumento indispensável de justiça social e de regulação econômica. Por meio dela é possível reduzir a concentração de riquezas, que a atividade produtiva acaba muitas vezes ensejando. E se dissuade o consumo de bens e serviços que podem produzir danos aos indivíduos (tabaco e álcool, por exemplo), ou à sociedade (como automóveis, transações financeiras especulativas ou imóveis de luxo).

E qual o sentido político mais amplo desta nova concepção sobre o dinheiro? Ladislau enxerga a possibilidade de enfrentar a grande chaga social dos últimos 40 anos: a desigualdade. O mundo já gera bens e serviços suficientes para oferecer, a cada família de quatro pessoas, o equivalente a R$ 20 mil mensais. Mas os abismos na apropriação da renda e da riqueza estão devastando a coesão das sociedades e ameaçando as bases da própria democracia. Daniel pensa em Karl Marx. Uma das marcas do processo de alienação, descrito pelo filósofo, é o fato de os seres humanos não produzirem o que lhes é necessário – mas apenas o que pode ter valor monetário. Se a moeda for produzida e pensada coletivamente, e converter-se em instrumento para mobilizar as energias necessárias para autotransformação social, estaremos de algum modo superando os limites do capitalismo

Veja em: https://outraspalavras.net/resgate/2021/07/20/resgatar-o-brasil-o-que-nao-faltara-e-dinheiro/

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