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Sete pontos para entender o golpe no Haiti

O conflito entre oligarquias que levou ao autogolpe de Moïse. Por que velha mídia tenta acobertá-lo. O que diz o Judiciário. O papel dos EUA, França e Canadá na crise haitiana. Uma análise em profundidade, para além da cobertura eurocêntrica

Por Lautaro Rivara, com tradução do Brasil de Fato

Em 7 de fevereiro, o presidente Jovenel Moïse, agora interino, consumou no Haiti um autogolpe após o período de cinco anos de governo estipulado na Constituição do país ter expirado. Assim, Moïse coroa uma longa deriva autoritária que o confrontou e o confronta com a permanente mobilização das classes populares, da oposição política e de todos os poderes e instituições do Estado. Em recente entrevista concedida por Moïse ao jornal espanhol El País, em algumas intervenções públicas de membros de seu governo e na voz de alguns comentaristas sobre a situação do Haiti, circularam uma série de teses que distorcem a situação atual e a crise em curso no país caribenho ao ponto de torná-la incompreensível. Algumas delas são risíveis, outras são criativas mas não rigorosas, e a maioria delas são apenas a reciclagem de velhos preconceitos racistas, eurocêntricos e coloniais. Nas linhas a seguir, tentaremos acertar contas com algumas dessas ideias.

1) A crise política no Haiti é eterna, generalizada e incompreensível

A crise no Haiti não é abstrata, nem metafísica, nem eterna. Ela tem datas, causas e responsabilidades específicas. Em primeiro lugar, a longa história de ocupações, interferências e golpes de Estado com apoio internacional, que fizeram do país uma neocolônia francesa apenas alguns anos após a Revolução de 1804, e depois uma neocolônia norte-americana após a ocupação dos fuzileiros navais ianques entre 1915 e 1934. Em termos gerais, os grandes protagonistas desta política de recolonização e tutela têm sido a tríade composta pelos Estados Unidos, França – que nunca abandonou realmente a ilha – e Canadá – talvez o país que pratica uma política imperialista mais invisível e desleal em nosso continente, sempre por trás de suas corporações mineradoras. Mas nos últimos 50 anos, organizações multilaterais como a Organização dos Estados Americanos (OEA), a ONU e grupos interessados, como o Grupo Central – formado por países autodenominados “amigos do Haiti”, em sua maioria europeus, com interesses mineradores, migratórios, financeiros ou geopolíticos no país, também desempenharam um papel importante na mediação e no desempenho de um papel de liderança. O surgimento do chamado “intervencionismo humanitário” no período pós Guerra Fria, ou ideologias similares como a “responsabilidade de proteger” (R2P na sigla em inglês) ou o “princípio da não indiferença”, foram inseridas no laboratório haitiano, nas inúmeras missões civis, policiais e militares que desembarcaram na costa oeste da ilha, desde a pioneira MICIVIH em 1993, até a tristemente famosa MINUSTAH durante o período 2004-2017. Os louváveis objetivos declarados por essas missões e agências têm sido a paz, a estabilidade, a governança, a justiça, a reconstrução e o desenvolvimento. Entretanto, o Haiti, impedido de seguir uma política fundamentalmente soberana, regrediu em todas essas áreas e indicadores nos últimos 30 anos.

Aqueles que no Norte global que gostam de apontar e medir os deficits democráticos dos países periféricos com a régua de suas robustas democracias liberais – sem importar o fato de que nelas ainda parasitam monarcas ou correspondentes de tempos não republicanos – geralmente param para apontar o número de governos e presidentes que o Haiti teve nos últimos anos como um sintoma inequívoco de instabilidade política. Entretanto, eles tendem a não mencionar que, desde 1957, todos os governos do Haiti – com exceção do primeiro governo do padre progressista Jean-Bertrand Aristide e mais tarde de seu deputado René Préval – chegaram ao Palácio Nacional com a mediação, intervenção, golpe ou ocupação promovidas por sucessivas administrações americanas, sejam elas democratas ou republicanas. A longa lista de figuras executivas preparadas pelos países ocidentais inclui um ditador vitalício, seu filho adolescente, efêmeros tiranos, um general aposentado, um ex-ministro, um pastor evangélico, um contador, um cantor de konpa, um empresário bananeiro, etc.

O Haiti não é um “estado falido”, nem um “estado frágil”, nem uma “entidade caótica ingovernável”, nem sua população tem uma propensão natural e genética para o caos, a instabilidade e o desgoverno. Pelo contrário, um entusiasmo democrático incomum e uma verdadeira enxurrada de votos levaram ao poder o primeiro presidente progressista da região, mesmo antes do início da chamada “primavera latino-americana”. Nesta eleição fundamental de 1990, 75% do eleitorado – em eleições não obrigatórias – deram a Aristide uma vitória retumbante com 67,39% dos votos. Mesmo após o golpe que o tirou do poder – com a participação direta dos Estados Unidos – em uma nova eleição realizada em 2000, o povo haitiano demonstrou novamente seu compromisso democrático com uma participação de cerca de 50%, elegendo novamente Aristide por 91,7% dos votos válidos. Em 2004, Aristide foi novamente derrubado, desta vez pela ação de uma Força Provisória Multinacional composta por tropas dos Estados Unidos, França e Canadá.

2) São esperadas mudanças substanciais na política da administração Biden

Tanto a administração republicana quanto a democrata têm seguido as seguintes estratégias no país, sem distinção: destruir sua economia agrícola e agroindustrial, assim como privatizar poucas empresas nacionais no Haiti; liberalizar o comércio e as finanças; aplicar as prescrições neoliberais, como a eliminação dos subsídios promovida pelo Fundo Monetário Internacional; tornar o país um nó periférico nas cadeias globais de valor, particularmente nos setores têxtil e eletrônico; promover, apoiar e financiar golpes; organizar e assessorar missões internacionais de ocupação; infiltrar mercenários e paramilitares, etc.  Provavelmente e paradoxalmente, talvez nenhum presidente estadunidense tenha causado tantos danos ao país quanto o carismático e progressista Bill Clinton, copresidente da Comissão Interina para a Reconstrução do Haiti (IHRC) que desviou para o setor privado grande parte do dinheiro enviado ao país pela cooperação internacional após o devastador terremoto de 12 de janeiro de 2010. Como afirma Clinton em sua própria autocrítica, foi o principal responsável pela destruição da economia do arroz do país, o que levou à ruína agrícola e induziu o êxodo de centenas de milhares de camponeses que mais tarde se transformaram em balseros [pessoas que emigram ilegalmente em embarcações precárias e improvisadas].

Como em tantos outros aspectos e em relação a tantos outros países, o que podemos ver sob a nova e reluzente administração democrática é uma mudança de métodos, mas não de estratégias, na tentativa de mitigar os custos de algumas alianças que são tão sensíveis quanto indefensáveis. A interrupção da venda de armas à Arábia Saudita para desacelerar sua ofensiva no Iêmen, a caracterização de Honduras de Juan Orlando Hernández como um “narcoestado” pelos próprios funcionários do establishment e alguns limites e condições “democráticas” impostas ao governo de Jovenel Moïse devem ser lidos na mesma linha. No Haiti, em particular, o governo PHTK foi cominado a retomar uma certa ordem constitucional. Para este fim, foi solicitada uma maratona eleitoral, embora por um Conselho Eleitoral Provisório – permanentemente provisório, na realidade – nomeado unilateralmente pelo Executivo; certo desconforto foi manifestado sobre o fechamento do Parlamento em janeiro de 2020; houve apelos para a libertação de alguns juízes do Tribunal de Cassação acusados de sedição; e a criação de uma opaca Agência Nacional de Inteligência, bem como decretos sobre segurança e “antiterrorismo” foram apontados como contrários às liberdades civis e aos direitos humanos. E mesmo sob a Lei Magnistky, dois funcionários do governo e um chefe de quadrilha aliado ao governo foram punidos no início deste ano por seu envolvimento no Massacre de La Saline cometido em 2018. Julie Chung, vice-secretária adjunta da Secretaria de Assuntos do Hemisfério Ocidental do Departamento de Estado dos EUA, elevou o tom das declarações, contestando o apoio sem reservas de outros funcionários estadunidenses a Moïse: “Estou alarmada com as recentes ações autoritárias e antidemocráticas, desde a destituição unilateral e nomeações de juízes do Tribunal de Cassação até ataques contra jornalistas”. Ela acrescentou que seu país “não ficará em silêncio quando as instituições democráticas e a sociedade civil forem atacadas” e que condenam “todas as tentativas de minar a democracia através da violência, da supressão das liberdades civis e da intimidação”.

Por enquanto, o esboço destas coordenadas é uma chamada explícita para “cuidar dos formatos”, o que estabelece uma série de condições para o cartão de imunidade que Donald Trump havia concedido a Moïse quando ele consumou sua virada contra a República Bolivariana da Venezuela em janeiro de 2019. A etapa insurrecional desatada em julho de 2018, prolongada e superdivulgada apesar do cerco da mídia, o apelo do Departamento de Estado dos EUA diz respeito a uma normalização rápida e forçada, mesmo que seja através de eleições condicionadas e fraudulentas. Políticas de baixo custo e alto impacto: essa parece ser a fórmula globalista e multicultural para recuperar a confiança e margem na geopolítica da América Latina, do Caribe e do mundo.

3) Existe um conflito de interpretações constitucionais

Se tal discrepância existiu efetivamente, já foi esclarecida pelo Poder Judiciário, o poder encarregado de interpretar as leis em qualquer República que se preze. No Haiti, como em qualquer outro país soberano – ou quando não seja uma colônia formal – existem tribunais competentes encarregados de resolver as discrepâncias constitucionais. No dia 7 de fevereiro, o Conselho Superior do Poder Judiciário (CSPJ) emitiu uma sentença sobre a data final do governo de Jovenel Moïse, assentando uma firme posição entre a interpretação do próprio governo e seus aliados ocidentais, e a interpretação que fizeram, entre outros atores, o Parlamento, os sindicatos e centrais sindicais do país, as câmaras empresariais, a Conferência Episcopal e os setores evangélicos, a Ordem dos Advogados, diversas agrupações da diáspora, organizações feministas, movimento de mulheres, sociais, rurais e urbanos, e um longo etc. O CSPJ fez uma interpretação limitante do Artigo 134, inciso 2, da Constituição de 1987, estabelecendo que a presidência de Moïse terminou no último 7 de fevereiro, após 5 anos da realização das eleições que em 2016 o levaram ao poder, sendo improcedente a extensão de seu mandato por adiamento de uma posse formal. É paradoxal que esta mesma interpretação restritiva da Carta Magna tenha sido utilizada pelo próprio Moïse para fechar o Parlamento em janeiro de 2020, quando dois terços dos deputados e o conjunto dos senadores encerraram o prazo de seus mandatos, sem a possibilidade de renová-los perante a incapacidade do governo para organizar eleições legislativas previstas para 2019.

Portanto, o que define a crise política do Haiti não é um enfrentamento entre poderes – como coloca Moïse- ou uma crise institucional. O que se observa é a extensão ilegal de um mandato presidente que expirou. Isto, somado aos atentados contra os poderes do Estado por parte do Executivo, confirma a consolidação de um regime interino, supralegal e anticonstitucional por completo, que governa por decreto, carece de orçamento público, aprsiona e nomeia juízes de forma improcedente, persegue seus opositores politicamente e agora propõe uma Reforma Constitucional expedita para ratificar não o Estado de Direito, mas sim o estado de forças existente no país.

Manifestante com cartaz “EUA tirem as mãos do Haiti” / CHANDAN KHANNA / AFP

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