Fome alastra-se pelo mundo; preços da comida disparam. Quais os nexos entre a crise e o modelo agroalimentar hegemônico. Como o sistema pode desabar sobre si mesmo. O que é preciso para que a a Agroecologia consolide-se como alternativa
Por Jan Douwe van der Ploeg
Uma em cada duas famílias brasileiras sofre de insegurança alimentar – ou seja, seus membros não sabem, ao despertar, se poderão alimentar-se adequadamente ao longo do dia. Em apenas doze meses, o preço do óleo de soja subiu 83,79%; o do feijão, 48,19%; e o do músculo, um dos cortes bovinos menos caros, 46,06%. A cena urbana brasileira agora é marcada pelas famílias que imploram por comida diante dos supermercados, ou pelas pequenas multidões que se aglomeram em bairros como a Glória (zona Sul do Rio), para esperar que motoristas de caminhão lhes doem ossos e pelanca bovinos – antes destinados aos cães. Mas seriam a fome e os preços descontrolados da comida uma nova jabuticaba brasileira?
O primarismo arrogante do governo Bolsonaro tem o poder de agravar qualquer drama, mas uma série de dados demonstra que estamos diante de um problema mais profundo e estrutural. O pesquisador holandês Jan Douwe van der Ploeg, professor nas Universidade de Wageningen, na Holanda, e de Pequim, na China e parceiro intelectual de diversos movimentos camponeses pelo mundo afora, está empenhado em compreendê-lo. Num vasto estudo, que acaba de ser traduzido e publicado no Brasil – e que começamos a publicar a seguir – ele aponta a existência de uma crise alimentar e agrícola global associada à pandemia da Covid-19, mas com origens anteriores a ela. Entre outros fenômenos, Van der Ploeg destaca “a configuração a pleno vapor de uma onda de fome” e a elevação em cerca de 50%, nos últimos dois anos, dos preços das commodities agrícolas.
A pandemia, pensa o professor, serviu como gatilho. Ela atingiu múltiplos setores da cadeia agroalimentar – de frigoríficos fechados pelo isolamento social a rotas marítimas interrompidas e restaurantes vazios. Ao fazê-lo, destroçou ou impôs perdas severas a pequenos produtores de bens e serviços e permitiu que os gigantes ocupassem espaço ainda maior. Mas se isso se deu, é porque o modelo dominante já era regido por uma espécie de lei das selvas.
Van der Ploeg desvenda o mundo dos impérios alimentares que hoje dirige a produção do alimento do mundo. Um punhado de corporações gigantescas, mostra ele, controla das sementes aos fertilizantes, agrotóxicos, estocagem dos produtos, vias de transporte, industrialização e varejo. Tais impérios são cada vez mais financeirizados. Por visar, essencialmente, o lucro máximo e a acumulação, a produção passou a depender dos serviços financeiros – empréstimos, seguros, garantias, fundos de todos os tipos, mercados gigantescos de derivativos – que cresceram a seu redor. Um punhado de banqueiros pode, por exemplo, deixar de oferecer crédito a determinado setor agrícola (por julgar que oferecer riscos superiores à média) e inviabilizá-lo.
Os impérios alimentares e as finanças articuladas com eles, prossegue Van der Ploeg, adquiriram, na configuração hegemônica, poder sobre o mundo agroalimentar muito superior ao dos Estados e sociedades. Por isso, os preços e as políticas variam movidos por interesses muito poderosos – não por objetivos humanistas, como reduzir a fome ou oferecer alimentação saudável. Porém, alerta o autor, o sistema tem pés de barro. A produção real apoia-se na estrutura financeira. O que acontecerá se esta revelar-se, como na crise de 2008, um castelo de cartas?
Felizmente, sustenta por fim van der Ploeg, a Agroecologia avançou muito nas últimas décadas – e pode consolidar-se como alternativa. O último capítulo do estudo descreve os progressos, tanto entre os que produzem alimentos (e constróem aos poucos um modelo contra-hegemônico) quanto entre os consumidores (que rejeitam crescentemente os ultraprocessados, os venenos agrícolas, a homogeneização que destrói antigas culturas alimentares). Mas o trabalho não difunde um otimismo vazio. O autor aponta, também, os limites a um avanço agroecológico mais vasto. E chega a apontar, ao final, caminhos concretos para superar estes entraves.
O trabalho de van der Ploeg foi traduzido e editado no Brasil pela AS-PTA, uma associação de pesquisadores e ativistas empenhados na construção da Articulação Nacional da Agroecologia e na assessoria direta a organizações e movimentos camponeses. Será publicado em três partes neste site, entre hoje e 6/10. Nos próximos meses, a AS-PTA e Outras Palavras trabalharão em conjunto para produzir uma sequência de textos e diálogos sobre um novo modelo agrícola para o Brasil. A cada mês, haverá um novo ensaio e um diálogo, via internet, sobre ele. Este esforço resultará também na construção, em parceria, de um dos capítulos do projeto Resgate, por meio do qual queremos refletir sobre um Brasil pós-neoliberal.
O primeiro diálogo da série ocorrerá em 7/10, quinta-feira próxima. Teremos o prazer de ouvir Jan Douwe van der Ploeg. Ele conversará, com Roselita Vitor, liderança proeminente de um dos movimentos territoriais de agroecologia mais avançados no Brasil – o da região da Borborema, na Paraíba. O encontro, virtual, poderá ser acompanhado nas redes de Outras Palavras e da AS-PTA. Fique, a seguir, com a primeira parte do ensaio de Van der Ploeg. (Antonio Martins)
Apresentação
A pandemia da Covid-19 evidenciou três faces perversas e interdependentes do capitalismo neoliberal: a globalização da insegurança econômica, da vulnerabilidade social e dos agravos à saúde coletiva. Em outras palavras, explicitou a baixa resiliência de um sistema global de governança econômica fundamentado no livre fluxo planetário de finanças em benefício de um pequeno e cada vez mais reduzido número de corporações transnacionais. A partir de março de 2020, com a oficialização da pandemia pela Organização Mundial de Saúde, a crise sanitária desencadeou crises sucessivas de natureza econômica e social mundo afora.
As expressões desse efeito dominó foram particularmente visíveis nos sistemas alimentares. É disso que trata esta publicação. Elaborado no calor dos acontecimentos, o texto de Jan Douwe van der Ploeg revela com dados conjunturais a incapacidade estrutural de um sistema governado por interesses corporativos de se autorregular a fim de proteger os interesses coletivos mais elementares, como o de assegurar o direito humano à alimentação e, por consequência, à saúde.
A relação direta entre o sistema alimentar globalizado e a deterioração da saúde coletiva havia sido analisada pouco antes do início da pandemia, em 2019, por uma comissão científica organizada pela prestigiosa revista médica The Lancet. Segundo o relatório apresentado pela comissão, ao uniformizar os padrões de produção e consumo alimentar, a globalização é responsável por três fenômenos cuja interação sinérgica intensifica seus impactos sobre a saúde em todo o mundo: a obesidade, a desnutrição e as mudanças climáticas. Tal círculo vicioso regressivo foi identificado como uma sindemia global. Segundo a comissão, a raiz dessa interação mutuamente agravante entre a saúde humana e a saúde planetária é inequívoca: de um lado, a produção agropecuária realizada em grandes escalas, baseada no uso intensivo de fatores artificiais, como agroquímicos, hormônios e antibióticos; de outro, o consumo de alimentos ultraprocessados; para sustentar energeticamente essa cadeia de irracionalidade ecológica e sanitária, o uso intensivo de combustíveis fósseis.
Como bem identificou Boaventura Sousa Santos, há uma cruel pedagogia do vírus a alertar que a normalidade imobilizante do status quo neoliberal nos conduzirá irremediavelmente à anomia social. Nesse sentido, a pandemia do coronavírus deve ser assimilada como um exame surpresa para testar a capacidade de nossa geração de construir respostas efetivas à crise estrutural gerada pelo regime agroalimentar neoliberal. Aprender com essa dolorosa vivência coletiva em escala global, bem como com as respostas adaptativas ativamente construídas em escalas locais pela sociedade civil, com ou sem apoio dos Estados, é condição para que sejam aglutinadas forças sociais capazes de superar a necropolítica imposta pelos impérios alimentares através de governos neoliberais.
Os caminhos para essa superação não estão sinalizados. Para serem trilhados, além de mobilização social, exigirão criatividade política. Após diagnosticar as raízes da crise, o texto de Ploeg apresenta pistas a serem seguidas. Como peças de um quebra-cabeças, essas pistas precisam ser combinadas coerentemente com o princípio político da soberania alimentar, o que necessariamente implica o estabelecimento de novas relações entre os Estados, movimentos sociais e organizações da sociedade civil.
Paulo Petersen
Coordenador-Executivo da AS-PTA
Saiba mais em: https://outraspalavras.net/crise-civilizatoria/um-modelo-agroalimentar-contra-o-planeta/
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