Esse ano marca o 33º aniversário da batalha de Cuito Cuanavale, quando guerrilheiro cubanos se juntaram aos angolanos para derrotar o regime do apartheid na África do Sul.
Por Jorge Tamames | Tradução Coletivo Leia Marxistas
Março de 2021 marcou o décimo oitavo aniversário da invasão do Iraque, uma guerra ilegal cujos autores têm ainda de responder à justiça. A fracassada tentativa de mudança de regime pelo governo Bush e os efeitos destrutivos do conflito por todo o Oriente Médio transformaram a Operação Liberdade do Iraque (Operation Iraqi Freedom) em um símbolo dos limites do poder estadunidense e da estupidez do intervencionismo militar – uma lição que o establishment da política externa de Washington insiste em ignorar.
Menos lembrado, mas tão importante quanto, é o trigésimo aniversário da batalha de Cuito Cuanavale, que entre março de 1987 e junho de 1988 testemunhou soldados cubanos e angolanos lutarem contra a Força de Defesa da África do Sul (SADF) no maior confronto militar da África desde o fim da II Guerra Mundial. O confronto subjugou o governo sul-africano, que foi eventualmente forçado a abrir mão de seu controle sobre o sul de Angola e aceitar a independência da Namíbia. Essas concessões, com o tempo, ajudaram a acabar com o regime do apartheid.
Além de uma batalha decisiva, Cuito Cuanavale também representa um final culminante para a política externa de Fidel Castro na África, que entre 1963 e 1991 testemunhou uma sucessão ambiciosa de intervenções em dezessete países, envolvendo centenas de milhares de soldados cubanos, médicos e assistentes sociais. Embora esses empreendimentos tenham sido imperfeitos, a sobreposição de ambos os aniversários oferece a oportunidade de contrastar a brutalidade estéril das intervenções ocidentais com uma tradição notável de internacionalismo.
Independência e Internacionalismo
Orelato mais detalhado das intervenções cubanas na África é encontrado nos estudos de referência de Piero Gleijeses, Conflicting Missions and Visions of Freedom (Missões Conflitantes e Visões de Liberdade). Gleijeses aponta que o apoio de Castro aos movimentos de independência africana surgiu de uma combinação de realpolitik e idealismo. A disposição da União Soviética de contornar Havana e fechar um acordo com os EUA durante a crise dos mísseis de 1962 tornou os líderes cubanos dolorosamente cientes de que seu país poderia se tornar uma moeda de troca entre superpotências. Assim, buscaram impulsionar os movimentos revolucionários no exterior na esperança de que ganhassem poder e proporcionassem fontes alternativas de apoio a Cuba. Como explicou o líder revolucionário Víctor Dreke, “Cuba se defende atacando o agressor”.
Os vizinhos latino-americanos da ilha pareciam a escolha óbvia para exportar o foquismo, a teoria guevarista da revolução de guerrilha, mas esse plano logo encontrou dificuldades. Uma série de empreitadas decepcionantes, juntamente com a reticência da União Soviética em alienar os governos da região e o lançamento da Aliança para o Progresso de Kennedy, representaram obstáculos formidáveis. Com a captura e o assassinato de Ernesto Che Guevara em 1967 na Bolívia, o foco em uma revolução latino-americana chegou ao fim.
Ao mesmo tempo, Cuba estava se envolvendo mais na África. Interveio pela primeira vez na região entre 1961 e 1965, enviando suprimentos, instrutores médicos e militares para apoiar a Frente de Libertação Nacional da Argélia em sua luta pela independência e subsequente guerra de fronteira com o Marrocos. A experiência exemplificou a veia idealista da política externa cubana, atraindo a hostilidade de Charles de Gaulle em um momento em que os recursos da ilha eram escassos. “Foi como um mendigo oferecendo sua ajuda”, observou José Ramón Machado Ventura, que dirigiu a missão médica de Cuba, “mas sabíamos que o povo argelino precisava disso ainda mais do que nós e eles mereciam”.
A viagem de Che à África em 1964 demonstrou um compromisso cada vez maior com o continente, com cubanos apoiando movimentos anticoloniais na Guiné-Bissau, Cabo Verde e Congo, onde Guevara tentou organizar guerrilhas pessoalmente após o golpe contra Patrice Lumumba. Outras intervenções, como a assistência ao ditador da Guiné Ocidental, Francisco Macías Nguema, e o envio de 12 mil soldados para ajudar a Etiópia durante a guerra de Ogaden em 1978, pareciam ditadas pela dinâmica da Guerra Fria ao invés de um compromisso com a política emancipatória. De fato, as relações com Moscou – que fornecia apoio militar e logístico essenciais, bem como subsídios econômicos generosos – tornaram-se um fator determinante na política externa de Cuba. A União Soviética muitas vezes ditava as posições da política externa da ilha, como em 1968 e 1980, quando pressionou Havana a apoiar as invasões da Tchecoslováquia e do Afeganistão – este último um Estado não alinhado, numa época em que Cuba presidia esse movimento.
A impressão dos EUA de que Castro era um fantoche soviético, no entanto, estava longe de ser exata. Como assinala Gleijeses, “os líderes cubanos estavam convencidos de que seu país tinha uma empatia especial pelo Terceiro Mundo e um papel especial a desempenhar em seu nome. Os soviéticos e seus aliados do Leste Europeu eram brancos e, pelos padrões do Terceiro Mundo, ricos; os chineses sofriam da arrogância das grandes potências [. . .] Em contraste, Cuba não era branca, era pobre, ameaçada por um inimigo poderoso e, culturalmente, da América Latina e da África”. Castro também explorou sua fama pessoal e o histórico de Cuba como vitrine latino-americana do socialismo para alavancar a independência.
O melhor exemplo dessa autonomia veio em 1975, quando Havana se pôs a defender o Movimento de Libertação do Povo Angolano (MPLA) da ofensiva combinada de grupos armados rivais. A Operação Carlota – batizada em homenagem a uma escrava cubana que liderou um levante em 1843 – deu início a uma luta contra na África do Sul que durou até 1991, com a retirada das últimas tropas cubanas.
Angola conquistou a independência após a revolução de Portugal em 1974, mas o país foi dividido entre três grupos armados rivais. O MPLA, de tendência marxista, controlava a capital, Luanda, e era reconhecido por diplomatas e oficiais de inteligência dos EUA como a força mais competente. Mas enfrentou ataques da Frente Nacional para a Libertação de Angola de Holden Roberto (FNLA) e da União Nacional para a Independência Total de Angola (UNITA) de Joseph Savimbi. Apoiados pelo Congo de Mobutu, China, França e Estados Unidos, esses dois grupos estavam prestes a expulsar o MPLA de Luanda antes de 11 de novembro, o primeiro dia da independência. A SADF, que interveio militarmente para apoiar o avanço de Savimbi, esperava que sua marcha triunfal para a capital estabelecesse um regime amigável que salvaguardasse a ocupação da Namíbia pela África do Sul.
Contra esse cenário, Castro aprovou uma implantação emergencial de unidades de elite para defender áreas controladas pelo MPLA. Quando questionados pelas autoridades soviéticas sobre o momento da operação, os cubanos revelaram que seus navios e aviões – auxiliados pelos governos da Guiana, Barbados e Jamaica – já estavam a caminho. Eles haviam tomado a decisão sem consultar Moscou. “A intervenção das forças de combate cubanas foi uma surpresa total”, escreveu o frustrado Henry Kissinger, cujas ofertas anteriores de trégua foram substituídas por planos de contingência para “espancar” e “esmagar” a ilha, estabelecendo um bloqueio, minando seus portos e lançando ataques aéreos .
Como mostram documentos confidenciais tornados públicos, Kissinger temia um efeito dominó por todo o sul da África, com vitórias da esquerda em Angola e Moçambique pavimentando o caminho para o fim do domínio branco na Rodésia, Namíbia e África do Sul. Sua preocupação era bem fundamentada. A vitória do MPLA sobre a FNLA e a UNITA na batalha de Quifangondo – na qual as forças cubanas desempenharam um papel de liderança – galvanizou ativistas anti-apartheid na Namíbia e na África do Sul. “Na Rodésia, eles estão conversando e depois de dez anos não têm nada”, disse um homem negro de Soweto ao New York Times após a retirada da SADF em março. “Em Angola e Moçambique eles lutaram e venceram.” O levante de Soweto eclodiu apenas três meses depois.
Saiba mais em: https://jacobin.com.br/2021/04/uma-guerra-de-solidariedade/
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