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Washington provoca Pequim com vara curta

Giro de Biden pela Europa desnuda limites do progressismo americano. Inovador e ousado nos assuntos internos, presidente é refém dos interesses do império. China evita disputa militar: sabe que dá as cartas, por não ter cedido à ilusão neoliberal

Por Pablo Elorduy | Tradução: Antonio Martins

Houve um tempo em que, se Henry Kissinger falasse, o resto do mundo prendia a respiração. O ex-secretário de Estado dos Estados Unidos durante o governo de Richard Nixon, presidente que deu uma virada nas relações com a China, emitiu uma série de julgamentos no início do mês passado sobre as relações com o país governado por Xi Jinping, que revitalizou a ideia da “guerra fria” em curso entre as duas grandes potências mundiais.

“O confronto entre Estados Unidos e China é o principal problema de Washington; é o principal problema do mundo”, sustentou Kissinger, que não rejeitou a fórmula da “guerra fria” evitada por Pequim e o Pentágono, pelo menos por enquanto.

A resposta a Kissinger, responsável por episódios históricos como o Plano Condor na América Latina, veio de ninguém menos que o atual secretário de Estado dos EUA , Antony Blinken. Mas Blinken não foi expedito, simplesmente expressou que não gosta de “colocar rótulos” em uma relação complexa para depois repetir algumas das mensagens que aparecem como uma desculpa perfeita e recorrente dos Estados Unidos: as que se referem aos direitos humanos dos grupo étnico uigur em Xinjiang e o papel da China em Hong Kong durante a escalada da repressão na primavera passada.    

É verdade que a preocupação com os direitos humanos aumenta em relação ao período de Trump, mas também deve-se levar em conta que, como indicado pelos Estados Unidos, Biden tem sistematicamente ignorado a situação na Colômbia e o tratamento dos direitos humanos por parte do governo de Iván Duque.

O fato é que o comitê de relações exteriores do Congresso norte-americano aprovou em maio uma “Lei de Concorrência Estratégica de 2021”, que desde então tornou-se conhecida como “Lei Anti-China”, na qual estabelece que a “Nação do centro” é uma concorrente dos Estados Unidos em questões econômicas, tecnológicas e militares.

A lei não afeta apenas as fronteiras externas dos Estados Unidos. A União de Cientistas Responsáveis [Union of Concerned Scientists] alertou que, em primeiro lugar, este projeto de lei “provavelmente resultaria em discriminação racial e na perseguição aos norte-americanos de origem chinesa. bem como outros norte-americanos com laços pessoais, comerciais ou profissionais com a China. 

Esse mesmo grupo advertiu que as considerações sobre questões de direitos humanos no âmbito desta norma são usadas como “uma arma para vencer uma disputa econômica e geopolítica e dificilmente ajudarão as vítimas de direitos humanos”.

Assim, a viagem à Europa que Biden iniciou há uma semana começa com críticas à “autocracia” da China e tratará de questões tão delicadas como a nuclear. O roteiro é antigo: os Estados Unidos querem desafiar a China na arena militar, uma isca que o império asiático não engolirá, ciente de que a pandemia serviu para acelerar a primazia econômica de seu modelo.

Laboratórios e morcegos

Um mês após os comentários de Kissinger, as diretrizes para uma escalada de hostilidades entre os dois países foram atendidas. Na última sexta-feira, 4 de junho, o Financial Times publicou que Anthony Fauci, o diretor do Instituto Nacional de Alergia e Doenças Infecciosas dos EUA e face visível da luta contra o covid-19 no país, solicitou informações adicionais de seus colegas chineses. 

Fauci pediu os registros de nove pessoas que podem ter entrado em contato com o vírus – com base na hipótese de que seis membros de um grupo de mineiros contraíram a doença em uma incursão a uma caverna de morcegos em 2012 – e três em novembro de 2019, que se relacionam à hipótese de “vazamento em laboratório” da doença em Wuhan.

É algo sobre o que se especula desde o início da pandemia e que foi descartado por uma publicação da revista The Lancet em fevereiro de 2020, só recentemente questionada pela comunidade científica norte-americana. Um artigo no prestigioso Boletim de Cientistas Atômicos [Bulletin of Atomic Scientists] levantou dúvidas sobre as conclusões publicadas pelo The Lancet.   

“Gostaria de ver os prontuários das três pessoas que supostamente adoeceram em 2019. Elas realmente adoeceram e, em caso afirmativo, de que adoeceram?”, perguntou Fauci, em um movimento coordenado com a fala de Joseph Biden, que deu prazo de 90 dias as agências de inteligência dos EUA para determinar qual das duas teorias sobre o surgimento do vírus é a correta: se a aceita pela maioria da comunidade científica sobre o salto entre especies ou se é a de um acidente no laboratório de nível de biossegurança P4 de Wuhan.

Desta forma, Biden retomou um dos refrões favoritos de seu antecessor, Donald Trump, e contou com o pedido do secretário de Saúde dos Estados Unidos, Xavier Becerra, na OMS, para que esta organização retome as pesquisas sobre a origem do vírus – apesar de no início deste ano a entidade ter declarado que a hipótese de o vírus ter saído de um laboratório era altamente improvável. Os Estados Unidos contaram com o apoio do Reino Unido, Austrália e Japão nesse movimento.

A resposta da China foi retomar outra hipótese: a que o coronavírus teria “nascido”no laboratório militar de Fort Detrick, estado de Maryland (EUA), e se espalhado por meio de soldados norte-americanos contagiados, e presentes aos jogos militares internacionais de outubro de 2019, em Wuhan. “Se uma das direções da investigação for a teoria do ‘vazamento em laboratório’, o Instituto de Virologia de Wuhan não deve ser o único incluído ”, publicou como editorial o Global Times, importante órgão de expressão da República Popular da China.

“Desde 2019, o Laboratório Biológico de Fort Detrick tem emitido muitos sinais dignos de atenção e deve ser incluído entre ois primeiros objetivos da investigação. Além disso, os EUA também construíram um número surpreendente de biolaboratórios na Ásia, e investigá-los é um objetivo urgente, no rastreamento das origens do covid-19”, foi a resposta chinesa.

O mar ao fundo

O relacionamento entre Washington e Pequim sofreu, portanto, degradação visível nas últimas semanas. Se há um ano Fauci negava a “teoria da conspiração” do laboratório, hoje o cenário é diferente. A disputa chegou à mídia comercial e, por meio dela, à sociedade. Como Andre Damon lembrou no World Socialist Web Site, o autor da nota no The Washington Post que desencadeou a crescente preocupação do governo sobre a origem de Sars-Cov2 também escreveu que o Iraque possuía armas de destruição maciça em 2002.

Esta não é a única controvérsia em torno da pandemia. A corrida pelas vacinas é outra frente. A República Popular da China forneceu vacinas para 12 países latino-americanos, diante do olhar impotente dos Estados Unidos, desconfiados do “soft power” exercido pelo governo chinês, que já alcançou efeitos como o fim do veto sobre as redes 5G da Huawei no Brasil e na República Dominicana ou a reconsideração, por Honduras e Paraguai, do reconhecimento de Taiwan, controlada remotamente de Washington. 

“A China não tem vontade de desafiar os Estados Unidos em todo o mundo, mas não podemos permitir que os Estados Unidos ajam arbitrariamente no Pacífico Ocidental”, publicou o Global Times.

Os Estados Unidos mostraram “preocupação” com essas supostas contrapartidas, mas não foi possível, para Washington, impedir a China de colocar na mesa mais da metade das 143 milhões de doses de vacinas distribuídas nos dez maiores países da América Latina.

A vantagem na corrida vacinal da China, que teve recentemente sua segunda vacina (a Sinovac) aprovada pela OMS, teria sido um dos gatilhos para a mudança de posição de Biden sobre a liberação de patentes, depois de os Estados Unidos terem se recusado (sob Trump) a fazer parte da Covax, iniciativa da OMS para que as vacinas não demorassem a chegar aos países mais empobrecidos.

Novas armas

A mudança de foco militar dos EUA, do Oriente Médio para a Ásia,não é uma coincidência, mas uma tendência de época. Tica Font, pesquisadora do Centro Delàs de Estudos pela Paz, destaca o deslocamento da ação militar e diplomática ocidental, corroborado pelo avanço da saída de tropas norte-americanas – não de mercenários corporativos – do Afeganistão, após a guerra fracassada lançada há duas décadas. 

No pior ponto de um conflito que se agravou nos últimos tempos – só em 2018 houve 10 mil vítimas civis – a publicação de entrevistas confidenciais com os responsáveis ​​pela invasão do Afeganistão anulou o álibi de que os Estados Unidos estão progredindo em seus objetivos em uma guerra que já dura 18 anos.

Existem diferenças enormes, no entanto. A atual disputa entre Estados Unidos e China concentra-se em qual será o pólo da hegemonia mundial. Apesar de o país hoje liderado por Xi Jinping ter avançado ainda mais rápido do que se esperava – gerando grandes lucros para o capital norte-americano e europeu, “investindo bilhões em ativos denominados em dólares e garantindo a ‘grande contenção’ dos salários e preços em Estados Unidos”, como escreveu Nancy Fraser na New Left Review em 2019 –, a disputa tecnológica faz da China o grande competidor de um Ocidente em busca de caminhos para a recuperação econômica.

“Estamos testemunhando uma nova era tecnológica, não só a guerra 5G, desencadeada por Trump”, diz Tica Font. Ela acrescenta: “nessa corrida tecnológica, quem abrir novos mercados com novos produtos de uso tecnológico vai ganhar mais dinheiro e para ambos essa corrida é muito relevante nos planos industrial e a militar ”.

Saiba mais em: https://outraspalavras.net/geopoliticaeguerra/washington-provoca-pequim-vara-curta/

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