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Zizek: em busca da do legado crítico desaparecido

Filósofo adverte: capitalismo global vive nova crise. Em seu âmago, está o descontentamento com o poder de bancos e corporações. Na disputa das maiorias, a ultradireita se antecipou. Olhar as rebeldias do passado, e seus vazios, é crucial

Por Slavoj Zizek / Tradução: A Terra é Redonda

O avanço do populismo de direita no Leste europeu formou o que chamo de um novo eixo do mal – e ele precisa ser confrontado e derrotado. O populismo nacionalista conservador está de volta, trinta e dois anos depois da queda dos regimes socialistas no Leste Europeu, e ele quer vingança. A recente mudança de rumo de países pós-socialistas como a Hungria, a Polônia e a Eslovênia em uma direção conservadora e iliberal nos preocupa. Como foi que as coisas deram tão errado? Talvez estejamos pagando o preço de algo que desapareceu quando o socialismo foi substituído pela democracia capitalista. E não se trata do próprio socialismo, mas daquilo que mediou essa passagem.

O “mediador evanescente” (vanishing mediator), termo introduzido por Frederic Jameson algumas décadas atrás, designa um elemento específico do processo de passagem de um ordenamento antigo a um novo. Coisas inesperadas acontecem enquanto a ordem antiga se desintegra. Além dos horrores mencionados por Gramsci, surgem projetos e práticas utópicas promissoras. Assim que a nova ordem se estabelece, uma nova narrativa se constitui e os mediadores desaparecem deste novo espaço ideológico.

Eis um exemplo. Em seu livro Immaterialism: Objects and Social Theory, Graham Harman menciona um comentário perspicaz acerca dos anos 1960: “É preciso lembrar que os anos 60 realmente aconteceram na década de 70”. Logo, comenta Harman, “de certa forma, um objeto existe ‘ainda mais’ no estágio seguinte ao seu apogeu inicial. Pode-se dizer que os dramáticos anos 1960 dos americanos, com a sua maconha, seu amor livre e a violência interna foram exemplificados de forma ainda melhor pelos artificiais e insossos anos 1970”.

No entanto, se prestarmos mais atenção à passagem dos anos 1960 para a década de 1970, veremos com clareza a principal diferença: no início, o espírito de permissividade, a libertação sexual, a contracultura e as drogas eram parte de um movimento político utópico; já nos anos 1970, esse espírito perdeu seu conteúdo político e foi completamente integrado à cultura e à ideologia dominantes. Ainda que seja importante levantar questões acerca dos limites do espírito dos anos 60 – que tanto facilitaram a sua integração –, a repressão da dimensão política continua sendo um elemento importante da cultura popular dos anos 1970. Essa dimensão foi o “mediador evanescente” que sumiu de vista.

Trago tais questões pois a passagem dos países socialistas do Leste europeu para o capitalismo também não foi uma transição direta. Entre a ordem socialista e a nova ordem (liberal/capitalista ou nacionalista/conservadora) houve uma série de mediadores evanescentes que o novo poder tentou apagar da memória. Eu acompanhei este processo quando a Iugoslávia entrou em colapso. Para que não fiquem mal-entendidos, não tenho nenhuma nostalgia pela Iugoslávia. A guerra que arrasou o país de 1991 a 1995 foi a sua verdade, o momento em que explodiram todos os antagonismos do projeto iugoslavo. A Iugoslávia morreu em 1985, quando Slobodan Milosevic assumiu o poder na Sérvia e acabou com o frágil equilíbrio que a mantinha em funcionamento.

Nos últimos anos do regime, os comunistas no poder sabiam que estavam perdidos. Eles então tentaram desesperadamente encontrar uma forma de sobreviver enquanto força política na passagem para a democracia. Alguns mobilizaram paixões nacionalistas, outros toleraram, e até mesmo apoiaram, os novos processos democráticos. Na Eslovênia, os dirigentes comunistas se mostraram condescendentes com a música punk, incluindo a banda Laibach, e com o movimento gay… (Incidentalmente, chegaram a financiar um periódico gay mas, depois das eleições livres, os recursos foram cortados. O recém-eleito conselho municipal de Liubliana julgou que ser gay não é uma cultura, mas uma forma de vida que não precisa ser patrocinada).

Em um nível mais geral, a maioria das pessoas que protestaram contra os regimes comunistas no Leste Europeu não visava o capitalismo. Elas queriam segurança social, solidariedade, uma justiça firme; buscavam a liberdade de viver fora do controle estatal, de se reunir e se expressar como quisessem; elas queriam uma vida simples, honesta e sincera, livre da doutrina ideológica primitiva e da hipocrisia cínica dominante. Ou seja, os ideais vagos que moviam os manifestantes foram, de forma geral, extraídos da própria ideologia socialista. E, conforme nos ensinou Sigmund Freud, o reprimido retorna de maneira distorcida. Na Europa, o socialismo reprimido no imaginário dissidente retornou na chave do populismo de direita.

Ainda que, no seu conteúdo positivo, os regimes comunistas tenham sido um fracasso, eles abriram um certo espaço, um espaço de expectativas utópicas que, dentre outras coisas, nos permitiu mensurar o fracasso do próprio socialismo realmente existente. Quando dissidentes como Vaclav Havel denunciaram o regime comunista em nome da solidariedade humana, eles (sem sabê-lo, na maior parte das vezes) se pronunciaram a partir de um lugar aberto pelo próprio comunismo. É por isso que eles tendem a ficar tão desapontados quando o “capitalismo realmente existente” não atinge as altas expectativas de sua luta anticomunista.

Na Polônia, em um evento recente, um nouveau riche capitalista homenageou Adam Michnik por seu duplo sucesso como capitalista (ele ajudou a destruir o socialismo e é o diretor de um império publicitário altamente lucrativo); profundamente envergonhado, Michnik respondeu: “Não sou um capitalista; sou um socialista incapaz de perdoar o socialismo que não deu certo”.

Por que mencionar tais “mediadores evanescentes”? Em sua interpretação da queda do comunismo do Leste europeu, Jürgen Habermas se mostrou um perfeito fukuyamista de esquerda, aceitando silenciosamente que a atual ordem liberal-democrática é a melhor possível e que, ainda que seja necessário lutar para torná-la mais justa, não devemos questionar suas premissas fundamentais.

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