Möise Kabagambe, o jovem trabalhador brutalmente assassinado, chegou ao Brasil fugindo da guerra civil que se arrastava por anos no Congo e já deixou meio milhão de congoleses refugiados ao redor do mundo. Essa trágica história, além de expor o racismo e xenofobia da nossa sociedade, revela a catástrofe social que o ocidente capitalista impôs ao Congo e aos países colonizados.
Por: Fernando Pureza | Imagem: (Wikimedia Commons)
No começo do mês, Möise Kabagambe foi assassinado em frente ao quiosque “Tropicália”, onde trabalhava, na Barra da Tijuca. Möise foi cobrar uma dívida de seu patrão, um valor de R$ 200,00 referentes a duas noites de trabalho. Foi amarrado, torturado, espancado e, enfim, assassinado. Seu assassinato brutal expôs o racismo brasileiro, e escancarou também a xenofobia em nosso país. Möise era um jovem imigrante congolês, de 24 anos, que vivia no Brasil como tantos outros, fugindo de uma das mais longas guerras civis que assolam o continente africano.
Segundo o Comitê Nacional para os Refugiados (CONARE), o Brasil hoje possui em seu território cerca de 1.050 refugiados congoleses – a esmagadora maioria fugindo de conflitos em seu próprio país que se estendem desde 1997, quando o país tornou-se a República Democrática do Congo, substituindo o antigo nome de República do Zaire. A história de Möise poderia servir como um marco das relações entre Brasil e Congo, mas o silêncio da imprensa sobre o caso e sobre a própria história dos congoleses é bastante revelador de como nossas elites apagam os traços históricos do imperialismo.
A brutal colonização belga
Ahistória do Congo cruza-se com a história do Reino do Kongo, uma monarquia que estabeleceu-se na região mais ocidental do país e que foi considerada parte fundamental do império ultramarino português já no século XVI. O rei do Kongo, Afonso Mvemba a Nzinga – também conhecido como Afonso I –, converteu-se ao cristianismo. Sua expectativa, estando tão próximo dos mercadores portugueses, é que seus próprios súditos fossem poupados da sanha lusitana por escravos africanos, mas essa esperança foi vã. Em 1526, Afonso enviou uma carta ao rei de Portugal pedindo para que os mercadores lusitanos parassem com o aprisionamento de seus súditos, mas sem resultados. Na época, 4 a 5.000 homens e mulheres eram escravizados por ano. Já no final do século XVI, Portugal instalara-se na região, servindo como base para suas incursões não apenas no reino do Kongo, mas em outros reinos da costa atlântica da África meridional. Nos séculos seguintes, mercadores portugueses, e as guerras de conquista na região, alterariam profundamente não apenas a demografia local, mas a própria paisagem da bacia do Congo.
Contudo, é no século XIX, na chamada “era dos Impérios”, que o Congo seria efetivamente transformado em colônia europeia. Inicialmente, os portugueses restringiram suas ações predatórias ao litoral, com eventuais incursões para os sertões africanos. A profilaxia da malária, as novas tecnologias militares e o motor à vapor possibilitaram então que os europeus desbravassem de forma contínua e sistemática o rio Congo e a sua bacia hidrográfica. É nesse contexto que surge o nome do explorador estadunidense, Henry Morton Stanley. Financiado por potências europeias, Stanley angariou um mecenas adequado para suas pretensões de tornar-se o explorador mais famoso da África: o rei Leopoldo II, da Bélgica. Ao desbravar boa parte do território congolês, Stanley declarou que suas mais recentes descobertas eram agora propriedade do rei da Bélgica que, buscando se desvincular da imagem de colonizador, criara a Associação Internacional Africana, loteando o terreno da bacia do Congo para empresas belgas, francesas e inglesas se instalarem na região.
Entre 1870 e 1900, o Congo era um território ainda desconhecido para os europeus, mas a busca por pedras preciosas motivou uma série de empreendimentos. Mas foi com o advento da indústria automobilística, e a demanda no mercado global pela borracha vulcanizada, que o empreendimento de Leopoldo II começou a dar retornos crescentes para a coroa belga. O mal chamado “Estado Livre do Congo” (uma nomenclatura que mais parece uma das mais perversas ironias da história), e demanda incessante por borracha, gerou um dos crimes mais hediondos do colonialismo. Adam Hoschild em sua obra O fantasma do rei Leopoldo chega a calcular que, entre 1885 e 1908, cerca de 10 milhões de congoleses foram assassinados pelos europeus em prol da busca desenfreada por lucros. As tropas coloniais e os mercenários prendiam famílias inteiras e ameaçavam com mutilações e decapitações todos aqueles que não trouxessem borracha suficiente para as empresas europeias, como a Abir Congo Company, um conglomerado anglo-belga, ou a Goodyear Company, a famosa empresa de pneus estadunidense.
Os horrores da colonização do Congo foram retratados nas fotos da missionária Alice Seeley Harris mostrando decapitações de congoleses promovidas pelos capatazes belgas. A captura, aprisionamento e demonstração dos chamados pigmeus da bacia do Congo nos zoológicos humanos do Ocidente – sendo o caso de Ota Benga, talvez o mais famoso – estão registrados nos anais da barbárie imperialista. A brutal colonização do Congo, apesar de denunciada constantemente pela comunidade internacional, sobretudo pelo movimento socialista, se manteve relativamente estável até o final da Segunda Guerra Mundial, promovendo horrores indizíveis para os povos da região e lucros obscenos para a indústria da borracha global.
Patrice Lumumba: quando o Congo ousou ser realmente livre
Entre 1908 e 1960, o Congo manteve-se como colônia belga. Como tantas outras colônias, foi fundamental no esforço de guerra contra o nazifascismo e sem ela, dificilmente a guerra teria terminado com a vitória dos Aliados.
Com a guerra formou-se também um corpo burocrático congolês local que, não obstante as divisões por localidade e etnia, encontrava-se agora no interior do Estado colonial e reivindicando sua independência. É nesse contexto que emerge na sociedade congolesa setores médios intelectualizados que, a partir das ideias de nacionalismo e emancipação universal, questionam os pressupostos do Estado colonial belga.
Um dos nomes que desponta nessa geração é do carteiro e intelectual Patrice Lumumba. Imerso nos debates do pan-africanismo da década de 1950, Lumumba passa a promover um programa de independência congolesa que, alinhado a propostas como a de Kwame Nkrumah em Gana e a de Franz Fanon na Argélia, poderia efetivamente construir um projeto de libertação descolonial sem precedentes. Em seus escritos sobre a Revolução Africana, Fanon, que era da Martinica, parece profundamente admirado com a possibilidade de um Congo livre e soberano, irradiando como farol da liberdade africana.
Exatamente por esse motivo, Lumumba torna-se extremamente perigoso não apenas para os belgas, mas para o Ocidente. Em 1960, as forças belgas negociaram sua saída do Congo de forma apressada, deixando a ONU responsável pela proteção dos congoleses. Lumumba, a partir de Leopoldville (atual Kinshasa) passou a controlar a capital, mas diferentes grupos políticos e militares controlaram localidades como Luba, Kasai e Katanga (a província mais rica em minérios do país). A ONU enviou uma força tarefa de 20.000 homens para a região, mas se recusou a auxiliar Lumumba com seu projeto de unificação nacional.
Nesse meio tempo, a CIA instruiu diretamente o coronel congolês Joseph Mobutu a agir. Lumumba então foi preso e torturado – na frente de câmeras de televisão. Seu fuzilamento sumário ocorreu às escondidas em Elisabethville (atual Lubumbashi), em 17 de janeiro de 1961, e o corpo foi dissolvido em ácido numa ação conjunta de militares alinhados à Mobutu com a gendarmerie belga, liderada por Gerald Soete. O assassinato de Lumumba ecoou ao redor do mundo como mais uma agressão do colonialismo ocidental, eternizado nas palavras de Carolina Maria de Jesus: “Fiquei com dó do Patrice Lumumba, que podia viver mais uns dias. Quando será que a civilização vai predominar?”
O assassinato do líder congolês e a ação imperialista permitiu, assim, que Mobutu assumisse a presidência do país, lançando o Congo – agora independente – numa sanguinolenta ditadura anticomunista que perduraria até o exílio de Mobutu, em 1997. Os opositores políticos do coronel foram executados e o Congo, transformado em República do Zaire, se tornando uma ditadura associada aos interesses ocidentais. Em termos geológicos, ressalta-se que o Congo é riquíssimo em recursos minerais, todos eles drenados diretamente para as indústrias ocidentais, o que lhe concedeu favores de figuras como Margareth Thatcher, Ronald Reagan e até mesmo o papa João Paulo II.
A guerra civil mais longa do mundo
Quando Mobutu foi retirado do poder, em 1997, o Congo passava por largas transformações. O fim da Guerra Fria, a luta pela abertura política do regime, o genocídio em Ruanda e a demanda crescente por minérios fundamentais para a Terceira Revolução Industrial em território congolês foram elementos determinantes para solapar o apoio ao ditador.
Com a queda do ditador, o país foi tragado por uma longa guerra civil, marcada pela interferência de países vizinhos como Angola, Namíbia e Zimbábue – além de Ruanda. As disputas entre diferentes frações de exércitos rebeldes no território se tornou uma disputa territorial pelos principais recursos do país, em especial o cobre, os diamantes, zinco, cobalto, entre outros minérios fundamentais para as indústrias ocidentais.
O Congo é hoje um dos maiores produtores de cobalto do planeta – 60% de toda a produção mundial vem do país. Sabe-se que empresas como Google, Apple, Tesla e Microsoft são extremamente dependentes do cobalto congolês, inclusive alvo de ações internacionais denunciando péssimas condições de trabalho e trabalho infantil na mineração.
Ao mesmo tempo, corporações chinesas como o Jichuan Group e China Molybdenum também passaram a disputar pelo acesso ao cobalto, o que por sua vez permitiu a expansão das milícias privadas e dos exércitos rebeldes – em especial na parte oriental do Congo.
Da sanha exploradora das grandes corporações e das disputas geopolíticas do século XXI, ainda que oficialmente pacificado, boa parte do território congolês está em disputa entre rebeldes e governos locais e central. Nesse cenário de guerra constante, convém ressaltar um dado assombroso – desde a luta de independência que derrubou Mobutu, iniciada em 1996, calcula-se que 6 milhões de congoleses já perderam a vida nos conflitos que se arrastam pelo país. É nesse cenário de guerra e de disputa predatória por recursos que Möise Kabagambe e sua família migraram para o Brasil.
Quando o imperialismo chega nas nossas portas
As histórias de violência e brutalidade resultantes do colonialismo e do imperialismo se entrecruzaram aqui no Brasil. A bem da verdade, congoleses fogem da sua história brutal, tanto quanto brasileiros, ou guatemaltecas, sírios e palestinos. O chamado Sul Global nada mais é do que uma imensa colcha de retalhos de histórias de violência colonial, uma chaga que não possui cura dentro do capitalismo. Política e economicamente falando, o epíteto “global” dá a verdadeira dimensão de múltiplas experiências se entrecruzando na busca de uma vida melhor. As agências da ONU calculam algo em torno de meio milhão de congoleses refugiados ao redor do mundo.
O desabafo terrível da mãe de Moise Kabagambe, comparando o assassinato de seu filho no Brasil com as mortes no Congo possui muitas camadas. Uma das mais difíceis é aquela que mostra o que acontece quando figuras privadas se apropriam dos recursos públicos e utilizam da violência para assegurar seu domínio. A brutalidade de uma guerra civil pelos recursos de um dos países mais ricos da África subsaariana e a brutalidade de um Rio de Janeiro tomado por milicianos carregam consigo o triste paralelo de que o corpo de Kabagambe foi vítima: a ideia de que os poderes privados de uma sociedade podem recorrer à brutalidade para atestar que as formas de exploração e expropriação seguirão ativas. Esse paralelo, somado à sólida instituição do racismo brasileiro, torna o crime ainda mais hediondo.
Desse trágico encontro, marcado pela barbárie, percebemos o quanto temos em comum com nossos irmãos do outro lado do Atlântico. A partir deste instante, o que nos cabe é, reconhecendo a história da brutalidade colonial e neocolonial do Congo, construir alguma possibilidade de justiça no Brasil. Do encontro desses horrores, somos irmãos de uma imensa chaga colonial cujos horrores não podem mais se repetir.
Veja em: https://jacobin.com.br/2022/02/a-historia-da-barbarie-imperialista-no-congo/
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