Clipping

A Vale no solo movediço da globalização

Novo livro mostra como mineradora apartou-se do interesse nacional e tornou-se máquina de dividendos para acionistas. Em nome da selvageria neoliberal, arrasa comunidades, manipula sindicatos e gera ciclo sem fim de catástrofes ambientais

Por: Thiago Aguiar

Quando se concluía a pesquisa que baseou este livro [O solo movediço da globalização: Trabalho e extração mineral na Vale S.A., Boitempo, 2022], em 25 de janeiro de 2019, a barragem I da mina Córrego do Feijão da Vale, em Brumadinho (MG), rompeu-se. As operações de resgate identificaram, nos meses seguintes, 270 vítimas fatais da inundação de cerca de 12 milhões de metros cúbicos de rejeitos de mineração que engolfaram a região, tomaram o rio Paraopeba e se encaminharam ao rio São Francisco, afetando dezenas de milhares de famílias. A maioria dos mortos e desaparecidos era de trabalhadores da Vale, próprios ou terceirizados.

O rompimento da barragem em Brumadinho aconteceu pouco mais de três anos depois da ruptura da barragem do Fundão, operada pela Samarco (controlada pela Vale e pela BHP Billiton) em Mariana (MG). Como este livro direcionou seu foco à transnacionalização da Vale e às estratégias de relações de trabalho e sindicais da empresa, a ruptura das barragens não foi objeto de nossa análise. Está claro, no entanto, que não há ilustração mais brutal e concreta dos efeitos da mineração globalizada sobre trabalhadores, comunidades e meio ambiente do que esses acontecimentos recentes em Minas Gerais.

A princípio, as terríveis imagens da avalanche de rejeitos não se relacionavam ao “solo movediço” que dá título a este livro. A escolha devia-se, na realidade, à instabilidade característica da globalização e à desterritorialização do capital, diante de antigas amarras nacionais e locais para sua circulação e apropriação. Com o título, buscava-se também fazer referência à instabilidade vivida pela classe trabalhadora e por seus sindicatos ao lidar com o poder corporativo transnacional fortalecido, bem como às mudanças profundas ocorridas durante os quatro anos em que a investigação transcorreu.

Ainda que não se pretenda analisar em detalhes a ruptura da barragem em Brumadinho e seus efeitosi – sobretudo os mais importantes, relacionados às centenas de mortes e aos milhares de desalojados e afetados pela degradação ambiental e pela desorganização da economia local –, é necessário destacar algumas de suas consequências para a Vale. A empresa declarou ter tido “amplo impacto” em seu “desempenho financeiro e resultados operacionais” após o evento. Entre outras consequências, em 2019, a companhia destinou US$ 7,402 bilhões a despesas e provisões relacionadas à descaracterização de barragens a montante e perdeu US$ 235 milhões, “atribuíveis à baixa da mina Córrego do Feijão e outras barragens a montante”ii.

Várias operações foram suspensas como resultado de decisões judiciais, revogação de licenças e por iniciativa da empresa, afetando sua produção e suas receitas: a “suspensão das operações em seu nível mais crítico totalizou 92,8 milhões de toneladas por ano de capacidade de produção, mas parte dessas operações foi retomada durante 2019”.iii Nesse ano, por conta disso, a produção de minério de ferro da Vale foi de 302 milhões de toneladas métricas, com redução de 21,5% em relação a 2018.iv A produção de pelotas foi de 41,8 milhões de toneladas métricas, com redução de 24,4% em relação a 2018.v A mineradora registrou prejuízo de US$ 1,683 bilhão em 2019, comparado a um lucro de US$ 6,860 bilhões em 2018.vi Como já mencionado no capítulo 1, a redução da produção de minério de ferro, em 2019 e 2020, retirou temporariamente da Vale a posição de maior produtora global desse minério, mantida por anos, assumida pela Rio Tinto. No entanto, em 2020, a produção começou a recuperar-se e a empresa teve lucro líquido de US$ 4,5 bilhões.vii

Os esforços da gestão de Fabio Schvartsman, descritos anteriormente, para reduzir o endividamento da empresa, conduzir desinvestimentos e se concentrar no core business – para que a Vale pudesse transformar-se em uma “máquina de dividendos” para seus acionistas – sofreram um revés temporário. Logo após a ruptura da barragem de Brumadinho, a mineradora anunciou a suspensão do pagamento de dividendos, retomado em setembro de 2020, e, em 1de março de 2019, recebeu do “Ministério Público Federal, do Ministério Público do Estado de Minas Gerais, da Polícia Federal e da Polícia Civil do Estado de Minas Gerais […] recomendações sobre afastamento de alguns executivos e colaboradores”.viii Schvartsman e três diretores executivos afastaram-se de suas funções.ix Na sequência, Eduardo Bartolomeo, que ocupava a Diretoria de Metais Básicos, assumiu a presidência executiva da companhia.x

Enquanto processos judiciais seguiam em andamento e os milhares de afetados aguardavam a resolução de iniciativas de reparação, um acordo foi firmado pelo estado de Minas Gerais, Defensoria Pública do Estado, Ministério Público Federal e Vale, por meio do qual a empresa pagará R$ 37,7 bilhões “para reparar perdas econômicas e ambientais, e garantir a indenização por danos morais, coletivos e sociais do rompimento da barragem da mina Córrego do Feijão”.xi

A Vale ainda lidava com a corrosão de sua reputação, as mudanças na diretoria e as consequências operacionais, econômicas e judiciais da ruptura da barragem I da mina Córrego do Feijão quando a pandemia de covid-19, em 2020 e 2021, também afetou sua produção, suspendendo temporariamente o funcionamento de algumas de suas operações. No entanto, o choque da pandemia, que inicialmente desorganizou redes globais de produção e afetou a oferta de minérios, foi seguido pela recuperação da economia chinesa e pelos pacotes de estímulo nos países do Norte global, sobretudo nos Estados Unidos, levando a um aumento na demanda e a um inesperado aumento nos preços das commodities, liderado pelo minério de ferro, que subiu mais de 150% em um ano,xii superando a marca de US$ 200 por tonelada, um recorde, em meados de maio de 2021. A subida dos preços levou a especulações sobre o possível início de um novo boom de commodities, o que, por fim, não ocorreu.xiii A instabilidade na economia global e a queda das taxas de crescimento da China levaram os preços novamente para o patamar de US$ 100 por tonelada no final de 2021.

O gráfico 1 mostra a evolução dos preços do minério de ferro em um período de quinze anos, de novembro de 2006 a outubro de 2021. Nele, aparecem os dois picos de preços anteriores [descritos no capítulo 1 do livro, em que foram analisados o boom e o pós-boom das commodities]: em abril de 2008, o preço da tonelada do minério de ferro superou os US$ 190, enfrentou queda acentuada após a crise de 2008-2009 e alcançou novo pico em janeiro de 2011, quando os preços se aproximaram novamente de US$ 190. Em seguida, no pós-boom, houve uma queda consistente dos preços, com alguns momentos de recuperação. A partir de abril de 2020, é possível verificar um aumento constante, alcançando novamente os picos de preços anteriores em meados de 2021. Entretanto, como mencionado, no segundo semestre desse ano, houve rápida e acentuada queda dos preços.

Gráfico 1: Preços mensais (em dólares americanos) do minério de ferro de teor 62% (nov. 2006-out. 2021)xiv

Fonte: IndexMundi, com informações da Thomson Reuters Datastream e Banco Mundial.xv

A manutenção dos preços do minério de ferro nesse patamar elevado seria muito benéfica à Vale após a conclusão dos investimentos no S11D [o maior complexo minerador da história da Vale, localizado no município de Canaã dos Carajás, no sudeste do Pará]. Nesse cenário, com as mudanças descritas no regime de “governança corporativa”, investidores institucionais e fundos transnacionais, com presença crescente no capital da empresa, teriam condições privilegiadas para ampliar a captura de valor por meio da distribuição de lucros e dividendos.

Em maio de 2021, ocorreu a primeira eleição para o Conselho de Administração da Vale após a liberação das ações do antigo grupo controlador – cujos membros detêm cerca de 21% das ações da empresa e atuaram em conjunto na votação.xvi No entanto, a assembleia de acionistas foi marcada por intensa disputa entre o antigo grupo controlador e um grupo de acionistas minoritários, “respaldado por um dos maiores acionistas de referência da Vale”xvii na atualidade: o fundo transnacional Capital Group. Foram eleitos quatro membros vinculados a acionistas do antigo grupo controlador e oito membros tidos como “independentes”, dos quais quatro nomes foram lançados pelo grupo de acionistas minoritários apoiados pelo Capital Group.xviii Consolida-se, assim, a pulverização do capital da empresa e uma nova relação de forças interna em seu Conselho de Administração [conforme analisado no capítulo 4]. Ao longo deste livro, buscou-se apresentar os contornos do processo de transnacionalização da Vale e, ao fazê-lo, também iluminar as formas de integração da economia brasileira ao capitalismo global nas primeiras décadas do século XXI. O caso em questão ofereceu um olhar privilegiado sobre esse fenômeno, já que, como mencionado anteriormente, a Vale é uma empresa que teve papel decisivo na estruturação do capitalismo industrial no Brasil no século XX e ainda hoje “opera como um elemento de transferência e conexão entre processos internacionais e dinâmicas domésticas”.xix Como encerramento, então, apresenta-se a seguir uma síntese das várias dimensões da estratégia corporativa da mineradora, discutidas nos capítulos anteriores, e nossas últimas considerações.

A estratégia de relações de trabalho e sindicais da Vale é decisiva para garantir flexibilidade às operações da empresa. Em um mercado de commodities com preços instáveis, competição entre poderosas CTNs e oferta de minérios superior à demanda global, a empresa requer de seus trabalhadores e sindicatos flexibilidade diante de variações nas receitas e nos lucros, como se viu em 2015 e 2016 – quando, depois de experimentar um prejuízo histórico ocasionado pela queda brusca do preço do minério de ferro, impôs reajuste e PLR zero a seus trabalhadores no Brasil. Ou seja, as táticas empregadas pela companhia em sua relação com trabalhadores e sindicatos visam contribuir para a redução dos custos de operação e do trabalho, uma forma de ampliar a captura de valor e oferecer preços competitivos no mercado global de minérios.

O controle dos locais de produção, diante de sindicatos, movimentos sociais e outros agentes, também é um aspecto decisivo da estratégia corporativa.Os supervisores são os intermediários prioritários na relação entre a empresa e sua força de trabalho. Cabe a eles, quando necessário, disputar com os sindicatos a primazia da informação. Aos sindicatos, também cabe um papel de intermediação, cujo objetivo é estabilizar e contornar o conflito. A mineradora busca mantê-los próximos de seus interesses e se esforça para enfraquecer o poder coletivo das entidades por meio de sua fragmentação. Isso não significa que a Vale prescinda dos sindicatos. Pelo contrário, a estratégia de relações sindicais tem como efeito a perpetuação de direções nos sindicatos – sejam mais ou menos críticas à empresa –, que se tornam agentes reconhecidos e, de algum modo, confiáveis à companhia. Ao mesmo tempo, grupos opositores, particularmente em sindicatos estratégicos como o Metabase Carajás, têm poucas chances de sucesso, uma vez que a Vale atua para dificultar sua organização, de acordo com as entrevistas e a literatura mobilizadas. A noção de “consenso manipulado”xx parece ter bastante aderência às observações realizadas em Parauapebas (PA) e São Luís (MA): a empresa é bem-sucedida em seus esforços para conter o exercício do poder coletivo dos sindicatos e para impedir a emergência pública das reivindicações de seus trabalhadores.

Um episódio confirma o importante papel atribuído pela Vale a seus sindicatos. Em 2018, o Stefem aprovou em assembleia o estabelecimento de uma contribuição negocial, no valor de meio dia de trabalho, para substituir o imposto sindical extinto pela reforma trabalhista de 2017. Dado o ineditismo e os eventuais obstáculos para sua aplicação, sindicato e Vale estabeleceram um acordo inédito no Tribunal Superior do Trabalho, o primeiro do tipo no Brasil, validando a medida. A razão parece evidente: os sindicatos precisam de recursos para seguir existindo. Em sua ausência, grupos opositores, de comportamento desconhecido pela companhia, podem tornar-se mais fortes e competitivos em relação às direções sindicais estabelecidas há décadas, com as quais a Vale tem o hábito de negociar, discutir e, quando necessário, impor suas determinações.

No Canadá, a Vale buscou reestruturar suas operações, conforme descrito no capítulo 3, e se chocou com o coletivo operário ali estabelecido em busca, sobretudo, do controle da produção e da afirmação de seu poder corporativo perante um poderoso sindicato internacional, que poderia trazer dificuldades para a execução de sua estratégia corporativa. O vencimento do contrato coletivo em 2009, em um período de forte redução dos preços do níquel, permitiu à Vale estender o impasse nas negociações por um ano, enfraquecendo o sindicato e o poder coletivo dos trabalhadores, que, ao final, cederam à maioria das imposições da empresa em termos de remuneração, pensões e relações com supervisores e stewards na produção.

Foi possível identificar, além disso, que a Vale busca evitar o escrutínio público de suas ações. Sua estratégia institucional visa à proximidade com agentes que influenciam a regulação de suas atividades – não apenas no Brasil, já que, como se viu, uma supervisora da Vale foi eleita prefeita de Sudbury na eleição posterior à greve canadense de 2009-2010. Mecanismos como o financiamento de campanhas e a “porta giratória” em órgãos reguladores são descritos na literatura sobre a empresa.xxi

As mudanças na estrutura de propriedade e de financiamento, e a consolidação da transformação da Vale em uma CTN, por sua vez, talvez tenham como consequência seu “desenraizamento” no que se refere, por exemplo, à captura de valor, destinada prioritariamente a seus acionistas, espalhados pelo planeta, por meio da distribuição crescente de lucros e dividendos – um possível “desenraizamento”, também e portanto, das origens nacionais da antiga mineradora estatal brasileira. Obviamente, não se trata de um processo de mão única, uma vez que os vários agentes envolvidos na rede global de produção da empresa podem mobilizar-se para enfrentar as consequências desse processo e os efeitos da mineração.

Este livro também descreveu a tentativa de articulação dos sindicatos da Vale no mundo por meio de uma rede sindical internacional que, apesar de não ter tido sobrevida, se revelou uma ferramenta incômoda, ao menos temporariamente, para o exercício do poder corporativo da CTN diante de seus trabalhadores e sindicatos. Eis aí uma lição importante para o futuro: a organização transnacional do trabalho, tal como apontado por Peter Evans,xxii pode ser uma alternativa à emergência de movimentos sociais regressivos na esteira da crise da globalização capitalista.

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A escola do capitalismo global forneceu uma bússola teórica fundamental para o enquadramento de questões que transcendem as fronteiras nacionais, como as analisadas neste livro. William I. Robinsonxxiii também chamou a atenção para os efeitos da crise do capitalismo global, entre eles, o recrudescimento da repressão interna e externa – e de seu uso como fonte de acumulação –, e a emergência de formas políticas ainda mais restritas, dada a impossibilidade objetiva de a classe capitalista transnacional organizar novas formas de dominação hegemônica. Nos últimos anos, ganharam força movimentos políticos e governos com características neofascistas, além da intensificação da especulação financeira e da acumulação militarizada em todo o mundo. Os eventos recentes no Brasil e a experiência com o governo de Jair Bolsonaro, certamente representativos desse fenômeno, trazem novos desafios para a classe trabalhadora e para as massas populares.

Sem pretender desenvolver tais reflexões neste momento, é útil igualmente apontar as escolhas da CCT em tal contexto de crise. A sobreacumulação de capi- tais e a dificuldade de valorizá-los levam à intensificação de formas de acumulação primitiva e à despossessão de bens comuns tornados mercadorias, em um processo descrito por David Harvey como “acumulação por espoliação”,xxiv a que estariam sujeitos os recursos naturais, a terra e os serviços públicos. Se a acumulação por espoliação é uma das faces da crise do capitalismo global, faz ainda mais sentido a aposta na mobilização transnacional como resposta à barbárie – manifestada na destruição de vidas e sonhos de centenas de trabalhadores e de suas famílias em Brumadinho ou na escala trágica e inaudita das centenas de milhares de vítimas da covid-19 em nosso país. A respeito do lugar do Brasil na globalização neoliberal, Chico de Oliveira chegou a uma conclusão cortante há quase duas décadas:

O ornitorrinco é isso: não há possibilidade de permanecer como subdesenvolvido e aproveitar as brechas que a Segunda Revolução Industrial propiciava; não há possi- bilidade de avançar, no sentido da acumulação digital-molecular: as bases internas da acumulação são insuficientes, estão aquém das necessidades para uma ruptura desse porte. Restam apenas as “acumulações primitivas”, tais como as privatizações propiciaram: mas agora com o domínio do capital financeiro, elas são apenas transferências de patrimônio, não são, propriamente falando, “acumulação”. […] O ornitorrinco capitalista é uma acumulação truncada e uma sociedade desigualitária sem remissão.xxv

Com a inspiração etnográfica desta pesquisa, baseada na metodologia do “estudo de caso ampliado” de Michael Burawoy,xxvi pretendia-se buscar as macroforças sociais nos microprocessos observados em campo. A dinâmica do capitalismo global, por essa razão, esteve sempre presente como pano de fundo da análise do objeto e das transformações experimentadas durante a investigação. A ida a campo em Sudbury e o tratamento da longa greve de 2009-2010 nas operações da Vale no Canadá revelaram a necessidade de transcender análises baseadas apenas em dinâmicas nacionais.

Tal “ampliação” para além do Estado-nação permite enquadrar melhor os fenômenos locais e globais, a parte e o todo: como no poema de Drummond que serve de epígrafe a este livro, uma rua começa em Itabira (ou em Carajás, São Luís, Sudbury…) e vai dar em qualquer ponto da Terra. Novamente, contemplo a maravilha e a tragédia, a riqueza e a miséria do Brasil, tal como quando me apoiei em um mirante diante da maior mina de ferro do mundo no coração da Amazônia.

 

Veja em: https://outraspalavras.net/mercadovsdemocracia/a-vale-no-solo-movedico-da-globalizacao/

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