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Agrotóxicos: ‘estamos todos participando de uma experiência química global’

“O ser humano é parte da natureza, e sua guerra contra a natureza é inevitavelmente uma guerra contra si mesmo.”

Por: Alejandra Martins | Créditos da foto: GETTY IMAGES. Rachel Carson publicou “Primavera Silenciosa” em 1962

A citação é de Rachel Carson, a bióloga e conservacionista americana que causou comoção em seu país ao publicar seu famoso livro Primavera Silenciosa em 1962. O trabalho começa com um convite: imagine uma cidade em que os pássaros sumiram, vítimas do uso excessivo de compostos químicos como agrotóxicos.

Carson não era contra a aplicação seletiva de agrotóxicos e inseticidas, mas era contra seu uso indiscriminado, comum em uma época marcada por uma fé cega no poder da ciência.

A obra teve tanta repercussão que foi uma das catalisadoras do movimento ambientalista nos EUA. Carson não só escrevia com precisão científica como também comunicava com beleza poética o que chamava de “tecido intrincado da vida”, no qual tudo está interligado e do qual todos fazemos parte.

Sessenta anos depois da publicação de Primavera Silenciosa, quão preocupante é a atual proliferação de compostos químicos? E qual seria a mensagem de um livro como o de Carson hoje?

A BBC News Mundo (serviço de notícias em espanhol da BBC) conversou com Joan Grimalt, professor de Química Ambiental do Conselho Superior de Pesquisa Científica da Espanha e integrante do Painel Intergovernamental de Poluição Química (IPCP). O IPCP é um grupo de cientistas que reivindica a criação de um organismo internacional para monitorar agrotóxicos.

BBC: Rachel Carson alertou sobre “a contaminação do ar, da terra e do mar com materiais perigosos e até letais”. Esta mensagem é relevante na atualidade?

Joan Grimalt: Sim, com certeza. É verdade que o uso em alguns lugares não é mais permitido. Mas, em geral, o uso de compostos químicos aumentou e o despejo desses compostos no meio ambiente também aumentou.

Existem atualmente cerca de 350 mil compostos fabricados pela indústria. Na época de Carson, eu diria que esse número não passava de 30 mil.

Joan Grimalt
CRÉDITO,GENTILEZA JOAN GRIMALT. Legenda da foto: Joan Grimalt é integrante do Painel Intergovernamental sobre Contaminação Química, um grupo de cientistas que reivindica a criação de um organismo internacional para monitorar agrotóxicos

BBC: Em seu livro, Carson falou especialmente de um composto, o DDT.

Grimalt: O DDT foi importante. Mas o problema é que muitos compostos foram criados. Outro problema é a sua ampla utilização, que é o que gerou mais problemas ainda.

O DDT já era conhecido desde o final do século 19. Mas na década de 1940 havia um médico, Paul Müller, que propôs usar o DDT para eliminar os mosquitos do gênero Anopheles (mosquito-prego) que transmitem a malária.

E isso levou à disseminação do DDT em todo o mundo. Deve-se lembrar que isso rendeu o Prêmio Nobel de Medicina a Paul Müller, porque esse composto eliminou o mosquito Anopheles em praticamente todos os lugares, exceto nas zonas tropicais, e a incidência de malária caiu drasticamente.

E também é preciso dizer que desde 2005 a Organização Mundial da Saúde recomenda o uso do DDT para combater o mosquito Anopheles em lugares onde a malária ainda é endêmica.

Às vezes o que acontece é que uma coisa não é branca nem preta; depende do uso que se dá a ela.

Uso de DDT na Alemanha em 1945
CRÉDITO, GETTY IMAGES. Legenda da foto: Uma menina é pulverizada com DDT na Alemanha em 1945 como parte de um programa para matar piolhos, um dos insetos que podem transmitir o tifo

BBC: Quais foram impactos negativos do DDT?

Grimalt: Concretamente, um primeiro efeito foi que nas aves expostas ao DDT, as cascas dos ovos ficaram muito mais finas e, por isso, durante a incubação, muitas ninhadas foram perdidas porque os ovos não aguentavam o peso dos adultos que os chocavam. Isso resultou no desaparecimento de muitos pássaros.

O DDT quase extinguiu a águia-americana, por exemplo, a águia símbolo dos Estados Unidos, e muitas outras espécies.

Duas águias-americanas
CRÉDITO,GETTY IMAGES. Legenda da foto: O DDT quase extinguiu a águia-americana

Além disso, se observou que em humanos o DDT também causava problemas. Há imagens onde você pode ver soldados dos Estados Unidos de cuecas sendo pulverizados com DDT (para matar pulgas e piolhos), porque se acreditava que o DDT não os afetava. Não sabemos como esses soldados estão agora. O DDT é neurotóxico e dentro das células dos organismos, incluindo os humanos, as células que mais se reproduzem são as células nervosas, por isso o dano causado ao sistema neurológico é mais permanente.

BBC: Você poderia nos dar alguns exemplos de compostos que são usados ​​hoje e são especialmente preocupantes para você? Fala-se muito sobre os produtos químicos “forever chemicals” ou compostos “eternos” (fluorosurfactantes).

Grimalt: Ao falar de compostos ou contaminantes químicos, devemos diferenciar aqueles que possuem importantes propriedades de estabilidade química. Estes seriam o que se chama de produtos químicos eternos, que são compostos persistentes.

A persistência existe por causa de dois fatores. Primeiro, porque quimicamente as moléculas são muito estáveis. No meio ambiente não há muitas reações que conseguem degradá-las, e a atividade dos organismos, sejam eles bactérias ou organismos superiores, as degrada muito pouco.

A outra propriedade que esses compostos costumam apresentar é serem hidrofóbicos, o que significa que se dissolvem mais em matéria orgânica do que em água. Por isso eles tendem a se acumular em organismos vivos, o que é chamado de bioacumulação. Toda vez que hum corpo bebe ou come algo que os contém, ele os acumula e não os excreta, porque nosso sistema de excreção mais normal é a urina, e eles não são solúveis na urina.

Além disso, na medida em que vamos subindo na cadeia alimentar, os organismos superiores se acumulam cada vez mais porque comem coisas que também continham esses compostos. Isso é o que é chamado de biomagnificação. Mamíferos marinhos, por exemplo, focas, baleias, acumulam mais [compostos] do que peixes. E os peixes que são predadores de outros peixes acumulam mais do que peixes que comem algas e zooplâncton.

Rachel Carson
CRÉDITO, GETTY IMAGES. Legenda da foto: “Carson era contra a corrente de pensamento de todo mundo, e desde então se comprovou que ela estava certa”, diz Grimalt

BBC: Você pode nos dar um exemplo desses compostos persistentes?

Grimalt: Isso está no DDT. Todos nós carregamos DDT e seus metabólitos em nosso sangue.

Mas um composto que me preocupa muito é o mercúrio. Alguns tipos de carvão têm um certo nível de mercúrio e quando grandes quantidades desse carvão são queimadas, isso solta o mercúrio na atmosfera. A partir daí, isso passa para a água e também vai se acumulando em organismos.

Outra fonte de mercúrio é o fato de que em reservas tropicais, tanto na América quanto na África, há pessoas que se dedicam a procurar ouro, e são pessoas muito pobres com técnicas muito primitivas. Uma delas é amalgamar ouro com mercúrio.

BBC: Você pode nos lembrar de quão tóxico é o mercúrio?

Grimalt: Ele é neurotóxico nessas concentrações de que estamos falando, porque afeta tudo — o fígado, os rins. Também leva a deformidades nas crianças quando as mães grávidas são expostas.

Infelizmente, na Baía de Minamata, no Japão, isso foi perfeitamente documentado, porque havia uma indústria que despejava derivados de mercúrio no rio, e esses derivados entravam na cadeia alimentar e nos peixes que os habitantes locais comiam, e isso foi um desastre.

Mercurio usado para separar ouro
GETTY IMAGES. Legenda da foto: Na mineração ilegal, o mercúrio adere ao ouro formando um amálgama. Em seguida, é aquecido para que o mercúrio evapore e o ouro permaneça

BBC: Quais outras substâncias o preocupam? Muito se fala sobre os microplásticos, que em estudos recentes foram detectados até na placenta humana.

Grimalt: Os microplásticos também são importantes, mas ainda não sabemos quais efeitos eles têm. Mas cuidado, o plástico é uma invenção da humanidade que provou ser muito útil.

O plástico é inerte e a priori não tem nenhum efeito negativo. Se isso acontecesse, estaríamos acabados, porque embalamos comida em plástico e colocamos remédios em nossas veias com tubos de plástico e nada acontece.

Isso não significa dizer que estamos usando de forma correta o plástico.

É preciso investigar quais são os efeitos dos microplásticos na saúde. Mas não é preciso esperar pesquisas para tratar adequadamente os resíduos e as águas urbanas. Já podemos retirar muito plástico do meio ambiente. Por outro lado, com o mercúrio, quando você já o descartou, não existe mais remédio.

 

Saiba mais em: https://www.bbc.com/portuguese/geral-63255592

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