O sentido da liberdade, lançamento da Boitempo, reúne palestras inéditas no Brasil da filósofa marxista. Leia em Outras Palavras capítulo que discute atualizações do racismo em nosso tempo. Nossos apoiadores concorrem a 2 exemplares
Por: Guilherme Arruda | Créditos da foto: APUB. Angela Davis em palestra na UFBA, 2017
Por Angela Davis
Em 21 de março de 1960, a polícia sul-africana matou 69 participantes de uma manifestação pacífica no município de Sharpeville. Sinto-me honrada por ter sido convidada a proferir o discurso da vice-reitoria no Dia Internacional para a Eliminação da Discriminação Racial, que homenageia as vítimas de Sharpeville. Estou particularmente honrada por estar aqui na Austrália após o primeiro pedido de desculpas de um chefe de Estado aos povos originários deste país e gostaria de agradecer aos proprietários tradicionais desta terra.
Em 1º de fevereiro de 1960, menos de dois meses antes do massacre de Sharpeville, na África do Sul, na cidade estadunidense de Greensboro, Carolina do Norte, estudantes da comunidade negra sentaram-se no balcão de uma lanchonete Woolworth’s. Tradicionalmente, as pessoas negras só eram atendidas se permanecessem em pé. Essa manifestação se tornou um catalisador para um momento importante do movimento pelos direitos civis nos Estados Unidos. Como negra nos Estados Unidos, lembro-me vividamente daquele dia; cresci em Birmingham, Alabama, que na década de 1950 era conheci‐da como a cidade mais racialmente segregada em nosso país. Eu tinha me levantado muitas vezes do balcão da Woolworth’s na cidade, vivenciando a humilhação de ser tratada como não suficientemente humana para poder me sentar e comer um sanduíche.
Quando criança, descobri o apartheid sul-africano quando soube que Birmingham, Alabama, minha cidade natal, era conhecida como a Johanesburgo do Sul. De fato, o regime de supremacia branca que influenciou todos os aspectos de nossa vida baseava-se, assim como o apartheid sul-africano, na noção de que a ordem social exigia separação racial absoluta e estruturação hierárquica de encontros raciais sempre que ocorressem.
Uma exigência fundamental de minha educação infantil foi aprender a linguagem do racismo, explicitada em placas colocadas acima dos bebedouros, nos banheiros, dentro dos ônibus, nos vestiários. Aprender a ler e escrever envolveu, portanto, a aquisição de uma ampla familiaridade com os protocolos do racismo durante a era anterior aos direitos civis. Isso foi, em parte, possibilitado pelo fato de que minhas escolas primárias e secundárias faziam parte do chamado Sistema Escolar Negro. A casa que meus pais compraram estava localizada na fronteira de um bairro destinado a famílias negras. As leis locais nos proibiam de atravessar a rua em frente à nossa casa, pois poderíamos ser legalmente acusados de invadir a zona branca.
Menciono esses detalhes porque o movimento pelos direitos civis nos Estados Unidos, que tomou forma em meados da década de 1950, contestou esses e outros aspectos da segregação racial legalizada. Ao exigirmos igualdade jurídica no transporte público, moradia, educação e voto, reivindicamos os direitos de cidadania, conforme previstos em lei. A conquista desses direitos de cidadania também envolveu uma luta prolongada contra o linchamento, que, desde o fim da guerra civil, serviu como brutal afirmação simbólica da supremacia branca.
À medida que as ideias de igualdade racial produzidas pelo movimento por direitos civis gradualmente se tornaram hegemônicas na nação, elas se solidificaram em noções firmes do que contava como vitórias sobre a subjugação racial e, no processo, produziram seus próprios sentidos para o racismo. Por mais importantes que essas vitórias tenham se mostrado, certa inflexibilidade nas definições de racismo resultantes produziu, tanto nos discursos jurídicos quanto nos populares, enganos persistentes em relação à natureza do racismo. As definições de racismo influenciadas por condições históricas particulares tornaram‑se formas trans ou a‑históricas de conceituar a discriminação e a subjugação racial. A persistência desses sentidos para além das condições históricas particulares que os produziram tem dificultado a evolução de um novo vocabulário e de um novo discurso que nos permita identificar modos de racismo na chamada era pós‑direitos civis.
O reconhecimento, pela Comunidade Internacional de Direitos Humanos, de alguns desses novos modelos de racismo foi indicado no título da Conferência Mundial contra o Racismo, a Discriminação Racista, a Xenofobia e Intolerâncias Relacionadas de 2001, em Durban, África do Sul. Lamentavelmente, a cobertura da mídia aos ataques do 11 de Setembro em Nova York e Washington, que ocorreram no fim da conferência, resultou em pouca atenção aos acontecimentos posteriores à conferência mundial. Diálogos públicos mais frequentes sobre a conferência poderiam ter ajudado a popularizar os sentidos mais amplos do racismo.
Nos Estados Unidos, as comunidades acadêmicas e ativistas apontaram os perigos de basear as teorias do racismo, bem como as práticas antirracistas, no paradigma negro/branco que influenciou a busca por direitos civis e, mais ainda, de assumir que o paradigma dos direitos é fundamental para o próprio sentido do antirracismo. Nenhum paradigma pode explicar, por exemplo, o papel desempenhado pela colonização e o genocídio praticado contra os povos indígenas na formação do racismo nos Estados Unidos. O genocídio histórico contra indígenas baseia‑se justamente na invisibilidade – em uma recusa obstinada a reconhecer a existência dos povos originários da América do Norte, em um reconhecimento ou equívoco que só os reconhece como empecilhos à transformação da paisagem, empecilhos a ser destruídos ou assimilados.
Diversas populações racializadas dos Estados Unidos – primeiras nações, mexicanas, asiáticas e, mais recentemente, de ascendência médio‑oriental e sul‑asiática – têm sido alvo de diferentes modos de subjugação racial. A islamofobia provoca e complexifica o que conhecemos como racismo. Além disso, o racismo que afeta pessoas de ascendência africana é hoje mais profundamente influenciado por classe, gênero e sexualidade que talvez reconhecêssemos em meados do século XX.
A questão que quero explorar nesta palestra, então, é: como a permanência dos sentidos históricos do racismo e suas soluções nos impedem de reconhecer as formas complexas como o racismo estrutura clandestinamente instituições, práticas e ideologias predominantes nesta era do neoliberalismo?
Elizabeth Martínez, lendária ativista dos direitos civis e do movimento chicano, apontou, junto com seu colaborador Arnoldo García, da Rede Nacional de Direitos dos Imigrantes e Refugiados, que as novas condições que constituem o neoliberalismo e caracterizam o desenvolvimento econômico desde os anos 1980 envolvem uma liberdade quase total de movimento de capital, bens e serviços – em outras palavras, o domínio total do mercado. Os gastos públicos com serviços sociais foram drasticamente reduzidos. Tem havido uma pressão constante para a eliminação da intervenção governamental e da regulação do mercado. Assim, a privatização do gás e da energia elétrica, da saúde, da educação e de muitos outros serviços de assistência social emergiu como o modo de aumentar os lucros das corporações globais. Por fim, Martínez e García apontam que o conceito de bem público e o próprio conceito de “comunidade” têm sido eliminados para abrir caminho à noção de “responsabilidade individual”. Isso resulta em uma “pressão sobre as pessoas mais empobrecidas de uma sociedade para que encontrem, por conta própria, as soluções para a carência de assistência médica, educação e seguridade social – além de acusá‑las, se falharem, de ‘preguiçosas’” [1].
Eu acrescentaria um ponto a essa definição de neoliberalismo: a suposição equivocada de que a história não é relevante. Essa ideia, formulada por Francis Fukuyama como “o fim da história”, envolve também, como disse Dinesh d’Souza, “o fim do racismo”. Tanto a raça quanto o racismo são profundamente históricos. Assim, se descartamos noções biológicas e, portanto, essencialistas de “raça” como falaciosas, seria errôneo supor que também podemos nos livrar voluntariamente de histórias de raça e racismo. Reconheçamos ou não, continuamos a habitar essas histórias, que ajudam a constituir nossos mundos social e psíquico.
O neoliberalismo vê o mercado como o verdadeiro paradigma da liberdade, e a democracia surge como sinônimo de capitalismo, que reemergiu como o télos da história. Nas narrativas oficiais da cronologia estadunidense, as importantes vitórias dos direitos civis são tratadas como a consolidação final da democracia nos Estados Unidos, tendo relegado o racismo à lata de lixo da história. O caminho para a eliminação completa do racismo está representado no discurso neoliberal da “neutralidade racial” e na afirmação de que a igualdade só pode ser alcançada quando a lei e também os sujeitos individuais se tornam neutros em relação à raça. Essa abordagem, no entanto, não consegue apreender o trabalho material e ideológico que a raça continua a fazer.
Quando exemplos óbvios de racismo vêm a público, são considerados aberrações isoladas, a ser tratadas como atributos anacrônicos do comportamento individual. Houve vários casos desse tipo nos últimos meses nos Estados Unidos. Cito o laço que foi pendurado em um galho de árvore por estudantes brancos em uma escola em Jena, Louisiana, como sinal de que estudantes negros estavam proibidos de se reunir sob aquela árvore. Também posso aludir ao uso público de palavrões racistas por um famoso comediante branco, à linguagem racista e misógina empregada por um conhecido radialista ao se referir a mulheres negras em um time de basquete universitário e, por fim, a comentários recentes sobre o golfista Tiger Woods.
Talvez eu deva explicar melhor este último exemplo: dois jornalistas esportivos estiveram envolvidos pouco tempo atrás em uma conversa sobre o aparentemente irrefreável Tiger Woods em relação à nova geração de golfistas, que tem grande dificuldade de alcançá‑lo. Um jornalista observou que os golfistas mais jovens provavelmente teriam que se agrupar e atacar Woods. O outro respondeu dizendo que eles teriam de pegá‑lo e “linchá‑lo em um beco”, evocando, assim, com uma única frase banal, uma longa e brutal história de implacável violência racista.
Esses comentários foram, é claro, prontamente identificados como expressões familiares – extremamente familiares – de atitudes racistas que agora são tratadas como anacrônicas e que, no passado, se articulavam com racismos patrocinados pelo Estado. Esse tipo de ocorrência é agora relegado à esfera privada e só se torna público quando é literalmente publicado. Se, em um período anterior de nossa história, tais comentários teriam sido claramente entendidos como vinculados à política estatal e às práticas materiais das instituições sociais, agora são tratados como anomalias individuais e privadas, a ser solucionadas punindo e reeducando os indivíduos, ensinando a eles a neutralidade racial, instruindo‑os a não perceber o fenômeno da raça.
Porém, se enxergamos essas explosões individuais de racismo como associadas à persistência e ao maior entrincheiramento do racismo institucional e estrutural atrás da cortina do neoliberalismo, seus sentidos não podem ser entendidos como aberrações individuais. Nos casos que discutimos, o racismo é explícito e flagrante. Não há como negar que essas são declarações racistas. O que acontece, porém, quando o racismo se expressa não pelas palavras de indivíduos, mas pelas práticas institucionais “silenciosas”, tomando emprestado o termo usado por Dána‑Ain Davis, a respeito do racismo [2]?
A incapacidade de reconhecer a persistência contemporânea dos racismos dentro de instituições e outras estruturas sociais resulta na responsabilização dos indivíduos que são as vítimas pelos efeitos por eles provocados, agravando ainda mais o problema de não identificar as operações econômicas, sociais e ideológicas do racismo. Existe uma lógica semelhante por trás da criminalização dessas comunidades, que estão super‑representadas em prisões e presídios. Ao não reconhecer as forças materiais do racismo responsáveis por oferecer enorme quantidade de jovens de comunidades negras e latinas ao Estado carcerário, o processo de criminalização imputa a responsabilidade aos indivíduos que são as vítimas, reproduzindo, assim, as próprias condições que geram padrões racistas de encarceramento e sua capacidade aparentemente infinita de expansão. A interpretação equivocada desses padrões racistas replica e reforça a privatização que está no cerne do neoliberalismo, pela qual a atividade social é individualizada e os enormes lucros gerados pela indústria punitiva são legitimados.
Em 28 de fevereiro de 2008, o Pew Research Center publicou um relatório sobre o encarceramento nos Estados Unidos intitulado “One in One Hundred: Behind Bars in America 2008”. De acordo com o relatório, uma em cada cem pessoas adultas está agora atrás das grades em um dia qualquer. Embora os números em si sejam chocantes, a imensa desproporção de pessoas de minorias étnicas e raciais em presídios e prisões é, em grande parte, responsável pela cifra “uma em cem”. De acordo com o relatório,
para alguns grupos, os números do encarceramento são especialmente surpreendentes. Enquanto um em cada trinta homens entre 20 e 34 anos está atrás das grades, entre homens negros dessa faixa etária o número é um em nove. O gênero adiciona outra dimensão aos dados. Os homens ainda têm cerca de dez vezes mais chances de estar no presídio ou na prisão, mas a população feminina está crescendo em um ritmo bem mais rápido. Para as mulheres negras na faixa dos trinta e poucos anos, a taxa de encarceramento também atingiu a marca de uma em cem. [3]
Entre parênteses, quando mencionei recentemente esses novos números a um grupo em Londres, incluindo membros do Parlamento, quase todos pensaram que eu tinha errado ao falar ou que tinham me ouvido mal. Acontece que eles estavam familiarizados com os números sobre o encarceramento de jovens negros e não ficaram tão surpresos com o fato de que um número enorme de pessoas de minorias étnicas e raciais estivesse na prisão. Mas era difícil para eles entender a ideia de que, dada uma população majoritariamente branca, uma em cada cem pessoas adultas nos Estados Unidos está atrás das grades.
Em 1985, havia menos de 800 mil pessoas atrás das grades. Hoje, há cerca de três vezes mais pessoas presas, e o grande aumento foi impulsionado quase inteiramente pela prática de encarcerar a juventude de minorias étnicas e raciais. Embora os números não sejam comparáveis, pode‑se argumentar que uma dinâmica semelhante comanda o encarceramento aqui na Austrália, com um número dez vezes maior de pessoas aborígines presas que sua proporção na população geral.
Por que, então, é tão difícil nomear essas práticas como racistas? Por que a palavra “racista” tem um tom tão arcaico, como se estivéssemos confinados em um túnel do tempo? Por que é tão difícil nomear a crise do encarceramento como uma crise de racismo?
De acordo com o relatório do Pew Research Center,
os Estados Unidos encarceram mais pessoas que qualquer país do mundo, incluindo a nação muito mais populosa da China. No início do novo ano, o sistema penal estadunidense detinha mais de 2,3 milhões de adultos. A China ficou em segundo lugar, com 1,5 milhão de pessoas atrás das grades, e a Rússia ficou em terceiro, com 890 mil pessoas detidas, de acordo com os últimos dados disponíveis. Além da grande população carcerária, os Estados Unidos também são líderes globais na taxa de encarceramento de suas cidadãs e seus cidadãos, superando nações como África do Sul e Irã. Na Alemanha, de cada 100 mil pessoas adultas e crianças, 93 estão presas. Nos Estados Unidos, a taxa é cerca de oito vezes maior: 750 de cada 100 mil.
Esses números foram produzidos pela desproporcionalmente imensa maioria representada pela juventude de minorias étnicas e raciais, em especial homens jovens negros, atualmente atrás das grades. Por exemplo, se um em cada sessenta homens brancos entre 20 e 24 anos está atrás das grades, então um em cada nove homens negros da mesma idade está encarcerado. Segundo explicações neoliberais, o fato de esses jovens negros estarem atrás das grades tem pouco a ver com raça ou racismo e tudo a ver com sua própria educação familiar privada e sua incapacidade de assumir responsabilidade moral por seus atos. Tais explicações permanecem “silenciosas” – para usar a expressão de Dána‑Ain Davis novamente – diante do poder social, econômico e histórico do racismo. Permanecem “silenciosas” diante do perigoso trabalho contemporâneo que a raça continua a fazer.
O encarceramento da juventude de minorias étnicas e raciais – e de um número crescente de mulheres jovens de minorias étnicas e raciais – não é visto como associado às amplas transformações estruturais produzidas pela desregulamentação, pela privatização, pela desvalorização do bem público e pela deterioração da comunidade. Como não existe vocabulário público que nos permita situar esses desdobramentos em um contexto histórico, o desvio individual é a explicação generalizada para o aumento grotesco do número de pessoas relegadas às prisões do país e do mundo. De acordo com Henry Giroux, “o racismo sobrevive sob o disfarce do neoliberalismo, uma espécie de réplica que imagina a capacidade de ação humana como questão de escolhas individuais, sendo o único obstáculo à cidadania e à ação efetivas a falta de esforço pessoal e de responsabilidade moral” [4].
Dado que o racismo é visto como vestígio anacrônico do passado, não conseguimos compreender até que ponto a longa memória das instituições – ainda mais aquelas que constituem o circuito intimamente conectado de educação e encarceramento – continua a permitir que a raça determine quem tem acesso à educação e quem tem acesso ao encarceramento. Embora as leis tenham tido o efeito de privatizar atitudes racistas e eliminar as práticas explicitamente racistas das instituições, essas mesmas leis são incapazes de apreender a existência estrutural profunda do racismo e, portanto, permitem que ele continue a crescer.
Essa operação invisível do racismo não só influencia as chances de sobrevivência de milhões de pessoas, como ajuda a nutrir um reservatório psíquico de um racismo que muitas vezes irrompe nas falas e nas ações dos indivíduos, como nos casos já citados. A reação frequente desses indivíduos que são pegos em flagrante é “Não sou racista. Nem sei de onde veio isso” e só pode ser respondida se formos capazes de reconhecer a profunda existência estrutural do racismo.
O racismo estrutural profundo do sistema de justiça criminal afeta nossa vida de formas complexas. O que reconhecemos há mais de uma década como o complexo industrial‑prisional dos Estados Unidos, através do qual o racismo produz enormes lucros para corporações privadas, agora pode ser reconhecido como um complexo industrial‑prisional global que lucra em todo o mundo com as formas pós‑coloniais de racismo e xenofobia. Com o desmantelamento do Estado de bem‑estar social e o ajuste estrutural no Sul Global exigido pelas instituições financeiras globais, a instituição da prisão – que é em si um importante produto comercializado pelo capitalismo do mundo – torna‑se o local privilegiado no qual as populações empobrecidas excedentes são depositadas. Portanto, novas formas de racismo estrutural estão surgindo. A profunda existência estrutural do racismo verte do sistema de justiça criminal dos Estados Unidos e tem exercido um efeito devastador na vida política da nação e do mundo.
Desde o período da escravatura, o racismo tem sido associado à morte. A geógrafa Ruth Gilmore definiu o racismo como “a produção e a exploração sancionadas pelo Estado e/ou legais e a exploração da vulnerabilidade de diferentes grupos à morte prematura, em geografias políticas distintas, mas densamente interconectadas” [5]. A morte a que Gilmore se refere é multidimensional, abrangendo a morte corporal, a morte social e a morte civil. Desde seu advento, a instituição da prisão foi organicamente ligada à ordem política da democracia na medida em que demonstra de forma negativa a centralidade dos direitos e liberdades individuais. A vida civil é negada, e o preso é relegado à condição de morte civil. Seguindo Claude Meillassoux e Orlando Patterson, Colin (Joan) Dayan e uma equipe compararam a morte social pela escravização à morte civil do encarceramento, particularmente considerando o histórico caso legal “Ruffin vs. Commonwealth”, que em 1871 declarou o prisioneiro como “o escravo do Estado”.
Embora o estado de morte civil de pessoas aprisionadas tenha agora mudado para que elas não sejam mais mortas‑vivas, como Dayan as caracterizou – ou seja, seus direitos residuais foram ligeiramente ampliados –, uma série de privações coloca a pessoa presa e, aliás, também a ex‑presa fora dos limites da democracia liberal.
No tempo que me resta, quero examinar uma dessas privações – a perda do direito ao voto por pessoas que cometeram crimes – e de pensar no impacto que ela tem como um subproduto do racismo no funcionamento da democracia estadunidense contemporânea.
Nos Estados Unidos, as populações encarceradas, exceto nos estados de Vermont e Maine, perdem o direito ao voto. Isso significa que 5,3 milhões de pessoas perderam o direito de votar, permanente ou temporariamente. Entre os homens negros, os números são ainda mais dramáticos: quase 2 milhões de homens negros, ou 13% da população total de homens negros adultos. Em alguns estados, um em cada quatro homens negros é impedido de votar.
O período histórico que testemunhou uma expansão significativa das leis de exclusão de criminosos foi a era pós‑guerra civil, ou seja, após a aprovação da 14ª e da 15ª emendas. Na verdade, assim que a 13ª emenda – que legalmente (e apenas legalmente) acabou com a escravização – definiu as pessoas sentenciadas como exceções, a 14ª emenda, que garantia a todas as pessoas igual proteção da lei, também continha uma exceção – a seção 2 permitia aos estados retirar o direito de sufrágio de quem se envolvia em “rebelião ou outros crimes” [6].
De acordo com Elizabeth Hull, as convenções constitucionais sulistas durante o período que se seguiu à derrubada da Reconstrução Radical – para usar a periodização de W. E. B. Du Bois – desenvolveram estratégias de criminalização precisamente para privar pessoas escravizadas e as que delas descendiam do direito ao voto. Muitos estados do Sul aprovaram leis que vinculavam os crimes especificamente associados a negros à privação de direitos, enquanto aqueles associados a brancos não resultaram na privação do direito ao voto. Em estados como Mississippi, havia a situação irônica de que, se você fosse condenado por assassinato, mantinha seu direito de votar, mas, se recebesse uma sentença por miscigenação, perdia‑o [7].
O trabalho de Jeff Manza e Christoper Uggen revelou que, entre 1850 e 2002, estados com maior número de pessoas de minorias étnicas e raciais entre suas populações carcerárias eram mais propensos a aprovar leis restringindo seu direito ao voto, o que os leva a concluir que existe uma “conexão direta entre política racial e absolvição de quem comete crimes […]. Quando perguntamos como chegamos ao ponto em que a prática estadunidense pode estar muito desalinhada com o resto do mundo”, escrevem eles, “a resposta mais plausível que podemos fornecer é a de raça” [8].
Pode‑se argumentar com segurança que a presidência de Bush foi possibilitada precisamente pelo rebaixamento de uma grande população negra formada na maioria de indivíduos “livres” à condição de morte civil. George W. Bush “ganhou” as eleições na Flórida em 2000 por uma pequena margem de 537 votos. Como o congressista John Conyers apontou, o fato de 600 mil pessoas que haviam sido prisioneiras terem sua participação nas eleições negada apenas no estado da Flórida “pode ter mudado a história desta nação” [9]. Seria possível, assim, argumentar que a existência de um profundo racismo estrutural no sistema prisional dos Estados Unidos nos deu o presidente que articulou os medos coletivos ligados a um reservatório psíquico histórico de racismo a fim de travar guerras contra os povos do Afeganistão e do Iraque sob o pretexto de combate ao terror.
Veja em: https://outraspalavras.net/blog/angela-davis-o-racismo-na-era-do-neoliberalismo/
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