Guerra aprofunda a deflação e coloca o mundo à beira de crise energética e alimentar prolongada. Brasil pode usar suas imensas riquezas para se projetar neste contexto. Mas passo exige reverter ataques à Petrobrás e reestatizar Eletrobrás
Por: José Álvaro de Lima Cardoso
A guerra na Ucrânia e suas consequências no fornecimento e nos preços de gás e petróleo evidenciam os riscos de uma grande dependência dos países de fontes externas de energia e alimentos. As sanções impostas pela Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan), ao invés de dizimar a economia russa (que era o alvo), desarranjou muito mais a economia da Europa e, por tabela, o crescimento mundial. A guerra, que já dura 4,5 meses, ajudou a desorganizar as cadeias produtivas globais, reduziu os níveis do comércio mundial, elevou os patamares inflacionários e contribuiu para desacelerar o crescimento no mundo.
Algumas das principais economias mundiais estão à beira de uma estagflação (inflação combinada com recessão), fenômeno que leva à queda da renda dos trabalhadores e ao aumento do desemprego. A guerra da Ucrânia veio num momento em que a economia mundial já enfrentava o problema de desorganização das cadeias produtivas e de inflação alta, decorrentes da covid-19. Os casos inflacionários mais graves são Argentina e Turquia, mas os países ricos também apresentam níveis inflacionários muito elevados para seus padrões históricos, como EUA e Alemanha.
Em doze meses, a inflação da Alemanha chegou a 7,9% (maio), a mais elevada em quase meio século, segundo o Departamento Alemão de Estatísticas (Destatis). A taxa de maio foi a mais elevada desde a reunificação alemã e também a maior desde a registrada no final de 1973 e início de 1974, com a crise do petróleo. A inflação no país vem subindo a cada mês, a partir do início da guerra, em função basicamente do aumento dos preços da energia, que aumentaram em torno de 40% segundo o Destatis.
Um dado decisivo no xadrez da guerra da Ucrânia é a dramática dependência do continente europeu ao gás e petróleo fornecidos pela Rússia. É claro que a Europa é o destino preferencial das exportações russas, em função da geografia e economia. Segundo informações oficiais da Gazprom (empresa de energia controlada pelo governo russo, maior exportadora de gás natural do mundo e uma das 20 maiores empresas do globo), 68% das exportações do grupo em 2020 foram destinadas à Europa. Segundo a Agência Internacional de Energia (AIE), quase metade do orçamento federal da Rússia advém dos impostos do gás e petróleo, e das tarifas sobre a exportação.
Mas, a partir da guerra, com a diminuição das vendas para a Europa, a Rússia tem conseguido reposicionar suas exportações, já que petróleo e gás são commodities das mais essenciais e, portanto, têm grande demanda em todos os recantos do mundo. A Rússia foi beneficiada inclusive pelo aumento da cotação desses bens, a partir do início da guerra. Além disso, deve-se considerar o outro lado, que é a dependência da Europa do gás natural fornecido pela Rússia, que supriu 32% do consumo global de gás da UE e do Reino Unido no ano passado.
A dependência dos países da Europa do fornecimento russo é bastante variada. Porém a Alemanha, principal economia do continente, depende em 55% do gás russo, dado que dá uma ideia da gravidade do problema. Sem suprimento estável de energia o país não consegue manter o ritmo e o volume de sua produção industrial, que gera 30% do PIB nacional. Nem mencionemos países como a Finlândia (que, juntamente com a Suécia, formalizou o pedido de ingresso na Otan), que importa da Rússia 97,6% do gás que consome.
Um dos objetivos das sanções econômicas da Otan era enfraquecer a economia russa. Mas essa medida agravou as incertezas e aumentou o risco de uma estagflação mundial. Temos que considerar que, além da guerra da Ucrânia, a Europa sofre também os efeitos das restrições comerciais ligadas à pandemia na China, que no ano passado foi o maior parceiro comercial da Alemanha.
A inflação da Rússia – que já era muito elevada – aumentou com a guerra, chegando em torno de 18%, a terceira maior do G20, atrás da Turquia (69,9%) e Argentina (58%). Mas, em função da adoção de medidas governamentais, desde o início da guerra o rublo se valorizou em relação às moedas consideradas fortes. O governo russo forçou, por exemplo, a comercialização de bens e serviços com moeda nacional, o que neutralizou em parte as sanções internacionais. Acostumada com processos anteriores, a Rússia se preparou antecipadamente para as sanções, que já conhecia bem. O rublo se valorizou no primeiro semestre até o mês passado 22% em relação ao dólar dos Estados Unidos, na comparação com o câmbio de antes do início da guerra. Registre-se que, em plena guerra, visando atenuar os impactos da inflação sobre a população, o governo russo aumentou em 10% o valor das aposentadorias e no salário mínimo, a partir, respectivamente de 1º de junho e 1º de julho. Dessa forma, o governo russo conseguiu cumprir a promessa feita em março, de realizar ações para reduzir a pobreza e a desigualdade no país, ao longo deste ano.
Para o combate da inflação, que é um problema mundial, a estratégia adotada pelos países é bastante surrada: elevar juros para conter a demanda, procurando baixar os preços. Esse tipo de medida serve apenas para enriquecer ainda mais os especuladores do sistema financeiro, já que o sistema de distribuição de mercadorias é bastante oligopolizado no mundo. Além disso, não se sabe quanto tempo a guerra ainda durará, com o risco, inclusive, de uma eventual generalização do conflito, sempre muito presente nesses casos, especialmente quando envolve petróleo e seus derivados. O certo é que, mesmo que a guerra acabasse hoje – não há sinais disso – é inevitável que seus efeitos sobre a economia global alcance os próximos anos.
O Banco Mundial, que tinha previsto um crescimento da economia global de 5,7% para este ano, reviu a estimativa para 2,9%. O petróleo e as commodities agrícolas têm sido os principais causadores da inflação mundial neste ano, em função da importância da Ucrânia e da Rússia na oferta de alguns produtos essenciais. A Ucrânia responde por 17% do milho disponível no mercado mundial, as exportações de trigo de Rússia e Ucrânia, somadas, representam quase 30% do total de trigo consumido no mundo.
Todos os sinais de alerta já foram emitidos em relação à oferta de energia e alimentos no mundo. O anúncio recente do governo francês, que irá estatizar a maior geradora de energia elétrica do país, é muito ilustrativo. A primeira-ministra da França, Élisabeth Borne, anunciou no dia 6 de julho a reestatização da Électricité de France (EDF). O governo, que detém 84% das ações quer ter 100% do capital, para tomar as decisões estratégicas necessárias para enfrentar os problemas da área. Não é uma medida ideológica, mas fundamentalmente política e econômica, que tenta evitar o colapso da economia e o desgaste do governo. Conforme explicação da primeira-ministra, a retomada das ações da EDF é necessária para a realização de projetos essenciais, ligados ao futuro energético da França. Com a guerra da Ucrânia, e o aumento do preço da energia, a França sentiu na carne os efeitos de ter que dividir as decisões sobre setores estratégicos com a iniciativa privada. Isso que o governo já detém 84% das ações da Companhia.
No Brasil, o governo Bolsonaro, não só entregou o controle acionário da Eletrobrás para o setor privado, como vem dando continuidade à política de desmonte da Petrobrás, iniciada no governo golpista de Michel Temer. Um governo minimamente comprometido com o desenvolvimento do país deveria não só reestatizar a Eletrobrás e sustar o processo de venda em pedaços da Petrobrás, como iniciar um programa de guerra pela retomada na indústria. O Brasil ainda é o país mais industrializado da América Latina, mas o setor vem sistematicamente perdendo importância no PIB, numa política típica de país subdesenvolvido e colonizado. O país ideal de Paulo Guedes, Bolsonaro e sua turma não tem indústria, se limitaria a fornecer comida e petróleo bruto para os países ricos. Bastou uma guerra no Velho Continente que o Brasil mostrou sua vulnerabilidade no abastecimento de fertilizantes, insumo essencial para o setor agrícola.
Cabe alertar que há uma ignorância cultivada entre os brasileiros, acerca do papel da Petrobrás na industrialização nacional, do desenvolvimento da indústria petroquímica, na geração de tecnologia, na área de fertilizantes e de energia da biomassa. É um desconhecimento plantado entre os brasileiros, e sistematicamente alimentado, fruto da estratégia de controle de recursos naturais vitais do Brasil, empreendida pelas multinacionais. Na área do petróleo, em função da essencialidade do produto para a vida moderna (gostemos disso ou não), essa estratégia de manipulação, que é extremamente sofisticada, não conhece nenhum tipo de escrúpulo.
É muito claro que o Brasil sofre, há alguns anos, um ataque sofisticado de forças que não querem que o país se desenvolva. Num quadro de crise mundial aguda como o atual, aumenta a disputa por matérias primas e mercados mundiais. Estamos assistindo neste momento a uma escalada de ataques à soberania brasileira na Amazônia, que é impressionante. Um país com recursos naturais e com a extensão territorial do Brasil, com uma política de desenvolvimento, com petroquímica desenvolvida, com as reservas petrolíferas que dispõe, tende a ser imbatível como nação desenvolvida. Precisa “apenas” ter soberania e colocar toda essa riqueza a serviço do país e da maioria de sua população. Mas essa conquista não cairá do céu.
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