Antes de ser assassinado, o indigenista articulou intercâmbio entre guardiões do Javari (AM) e dos Guajajara (MA). Apesar do luto, encontro traçou caminhos para a defesa autônoma das florestas: “a árvore tomba, mas as sementes caem e brotam novamente”
Por: Daniel Camargos
Quando o indigenista Bruno Pereira foi assassinado no Vale do Javari, no Amazonas, em 5 de junho, ele tinha um encontro marcado. Viajaria até a Terra Indígena Araribóia, no Maranhão, para promover um intercâmbio entre os defensores dos dois territórios. A ideia era que os experientes Guardiões da Floresta Guajajara treinassem os parentes amazonenses do Javari – que além de também serem ameaçados pela invasão do território, ainda enfrentam a pesca ilegal e o narcotráfico na tríplice fronteira com Peru e Colômbia.
“Quando uma árvore tomba, muitas sementes caem no chão e brotam novamente”. Foi assim que os quatro indígenas do Javari definiram a morte de Bruno quando desembarcaram no Maranhão. Binin Matis, Igson Kanamari, Manoel Marubo e Assis Mayoruna estavam ali como sementes para aprimorarem suas técnicas de autodefesa com os Guajajara.
aprimorarem suas técnicas de autodefesa com os Guajajara.
Eles são recebidos por cerca de 50 guardiões, entre eles, Laércio, que veste uma calça com camuflagem militar e tem o corpo pintado com urucum e jenipapo. Ele usa no pescoço um colar com dentes de queixada, o porco do mato. É um dos mais ativos nos cânticos e danças entoados para saudar os visitantes.
Laércio Guajajara se emociona ao escutar os indígenas do Vale do Javari falarem sobre Bruno. Levanta com lágrimas nos olhos e abraça com força cada um deles. Dividem a dor de terem perdido um amigo – em 2019, Paulino Guajajara fora assassinado diante de seus olhos por invasores do território.
As equipes da Repórter Brasil e do jornal inglês The Guardian acompanharam durante uma semana o encontro entre os povos. Nessa cobertura, jornalistas e indígenas dividiam o mesmo sentimento de luto, já que o jornalista britânico Dom Phillips – assassinado junto com Bruno – era amigo e companheiro de trabalho das duas equipes. Entrevistadores e entrevistados compartilhavam também o esforço para dar continuidade ao trabalho de Dom e Bruno.
Presenciamos uma ação dos Guardiões da Floresta com dezenas de indígenas armados com espingardas, pistolas, facões, arcos e flechas. Andando enfileirados em 10 caminhonetes e duas motos pelas estradas esburacadas de dentro do território, a sensação é a de seguir uma grande operação oficial dos órgãos de fiscalização do governo brasileiro, que se tornaram escassas na gestão do presidente Jair Bolsonaro. Sem apoio governamental, os Guardiões defendem o território com seus próprios corpos e estratégias.
A operação para em uma aldeia suspeita de ser conivente com os madeireiros, quando os guardiões descem das picapes com as armas nas mãos, se dividem em posições de guarda e interrogam o cacique. As mulheres guardiãs assumem a frente no diálogo com a comunidade. Nos últimos anos, elas estão cada vez mais presentes entre os guardiões. “A gente pensa no futuro. Eu sou mãe e terei netos. Se a floresta for destruída, como eles vão caçar e construir suas casas?”, afirma Zarawe Guajajara, que segura uma espingarda durante a operação.
Após serem convencidos de que a extração de madeira não passa mais por ali, eles partem para outra aldeia. Pouco à frente, identificam um caminho por onde madeireiros estão atuando, encontram um trator atolado em um córrego e colocam fogo na máquina.
“Decidimos incinerar porque é um câncer dentro do nosso território. Não temos acordo com madeireiro. Estão desrespeitando nosso trabalho, desrespeitando o Estado brasileiro e trazendo a destruição da floresta, do meu povo, do nosso rio e da nossa chuva. Somos obrigados a fazer isso, pois o estado brasileiro não faz”, afirma Olímpio Guajajara, um dos líderes dos Guardiões da Floresta.
Enquanto o trator queima, Laércio Guajajara agacha e observa. “É uma sensação de alívio para nós e para a floresta”, descreve. No final de 2019, ele e seu amigo, Paulo Paulino Guajajara, foram atacados por caçadores que atuavam ilegalmente dentro da Terra Indígena. Lobo, como Paulino era conhecido, morreu. Laércio recebeu quatro tiros, mas conseguiu sobreviver. Em abril, a Justiça Federal decidiu que os dois acusados pela morte de Paulino irão a júri popular.
Laércio conta que os guardiões nasceram por conta da omissão do governo na proteção aos territórios demarcados. Na primeira ação que realizaram, em 2012, eram apenas seis indígenas e foram obrigados a devolver o caminhão apreendido por pressão exercida pelos madeireiros. Passados dez anos, a realidade é outra – formalizaram uma associação, investiram em treinamento e adquiriram equipamentos de monitoramento do território, como drones, celulares e motos.
Quando o monitoramento de defesa foi iniciado, existiam 78 pontos de entradas de invasores no território, principalmente madeireiros. Atualmente, são apenas três entradas. A ação dos indígenas que defendem seu território é elogiada por organizações de defesa ao meio ambiente, mas eles pagam um preço alto ao assumir a responsabilidade do Estado. Em menos de 20 anos, foram 48 assassinatos do povo Guajajara, de acordo com o Conselho Indigenista Missionário (Cimi).
Procurados, Funai, Polícia Federal e Ministério da Justiça não responderam ao pedido de posicionamento da reportagem.
Emboscada iminente
Depois de incendiarem o trator, os guardiões seguem pela trilha e encontram um caminhão e toras de madeira prontas para serem transportadas. Queimam tudo. O trajeto entre os dois pontos é tenso. São cerca de oito quilômetros de caminhada. A qualquer momento pode ocorrer uma emboscada em retaliação ao prejuízo causado com a destruição do equipamento. Acompanhamos os passos rápidos dos indígenas, atravessamos áreas alagadas e ficamos atentos a qualquer sinal de perigo.
Se nós, jornalistas, estamos aflitos, os indígenas do Vale do Javari encaram a operação com naturalidade. Sentado na trilha aberta pelos madeireiros, Igson Kanamari está mais à vontade para conversar ali – distante 2,7 mil quilômetros de casa – do que em Atalaia do Norte (AM), onde é vítima de ameaças por sua atuação na equipe de vigilância da Univaja (União das Organizações Indígenas do Vale do Javari). “Não tenho proteção para ter liberdade de caminhar, passear com minha família. Eu me sinto preso dentro da minha própria casa”, afirma.
Pai de 11 filhos, Igson teme sofrer uma emboscada. Além de Bruno e Dom, lembra de outro amigo que foi assassinado, o funcionário da Funai, Maxciel Pereira dos Santos. “Não quero ser a quarta vítima”, afirma.
Saiba mais em: https://outraspalavras.net/outrasmidias/bruno-e-dom-um-legado-na-defesa-da-amazonia/
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