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Chile: a poesia da vitória e os desafios do poder

Um filósofo e ativista nas lutas sociais descreve o cenário pós-eleitoral. Boric e seu lugar no tabuleiro político. O surpreendente ministério. Os poderes e o papel da Constituinte. A ultradireita, que ainda respira. Qual futuro é possível esperar

Por: José Andrés Murillo, entrevistado por Maurício Ayer

O anúncio do gabinete ministerial de Gabriel Boric, presidente eleito do Chile, causou o impacto de um símbolo de mudança. Na foto oficial, o novo ministério, que tomará posse no próximo dia 11 de março, surge como uma equipe jovem, com inédita maioria de mulheres, todos vestidos “à paisana” – nada de terno e gravata, num colorido vívido – e até com algumas crianças ali no meio. Certamente, fica a impressão de que se respira um novo ar no país.

Mas como interpretar estes símbolos à luz do contexto político chileno e de suas reais possibilidades? Foi com o intuito de entender melhor as nuances e as expectativas que se formam em torno do ainda nascente governo Boric que entrevistamos o filósofo chileno José Andrés Murillo.

Doutor em filosofia política na Universidade de Paris, Murillo tornou-se figura pública no Chile ao protagonizar, juntamente com o jornalista Juan Carlos Cruz e o médico James Hamilton, a denúncia e o processo por abusos sexuais perpetrados contra crianças e adolescentes pelo cardeal Fernando Karadima, então um poderoso quadro da Igreja Católica chilena. Mesmo antes de sua conclusão vitoriosa, o processo mobilizou Murillo a engajar-se mais amplamente na luta contra o abuso de crianças e para isso criou a Fundação para a Confiança, que preside, tendo Cruz e Hamilton como dois de seus diretores. No ano passado, candidatou-se à Assembleia Constituinte do Chile e, embora não tenha sido eleito, sua campanha pautou os temas dos direitos humanos e, em especial, dos direitos das crianças.

Filósofo e ativista chileno José Andrés Murillo

José Andrés Murillo mostra-se bastante otimista com os gestos de Boric e as perspectivas de seu governo. Questionado sobre se há uma nova cultura política se formando em seu país, foi categórico: “Absolutamente. Há um novo olhar e uma nova forma de política chegando com Boric e sua equipe. É muito provável que a mudança afete todos os setores, inclusive a direita”. Ao mesmo tempo, o filósofo parece entender que o novo governo demonstra mais equilíbrio que radicalismo e procura sublinhar que a experiência de Boric como deputado o transformou, descolando-o do símbolo que muitos ainda esperam que ele encarne: “Sua maturidade política lhe trouxe tempos muito duros, sofreu agressões inclusive físicas e a acusação de ser ‘amarelo’, ou seja, não suficientemente radical”.

Finalmente, ao analisar os desafios que estão postos para o governo, Murillo lembra que o processo que ocorre no Chile é mais amplo: “As reformas mais importantes também passarão pela nova Constituição, portanto, nem tudo está em jogo com o novo governo e sua relação com o parlamento”.

Leia a íntegra da entrevista.

Primeiramente, gostaria de lhe perguntar sobre sua impressão em relação ao gabinete ministerial apresentado por Boric na semana passada. Tem-se comentado muito a respeito de dois aspectos: a maioria de mulheres (quase 60%, superando a paridade que já havia sido proposta por Bachelet no início de seu primeiro mandato) e a juventude. Alguns destacam ainda o fato de que alguns ministros frequentaram escolas públicas, o que parece ser uma novidade. Como você avalia isso do ponto de vista simbólico? Por outro lado, que impacto isso deve ter na formulação e execução das políticas de governo e de Estado?

José Andrés Murillo – De fato, a paridade e até a maioria de mulheres no gabinete é uma novidade global. Além dos números, é um sinal. Simbolicamente, é tremendamente poderoso e acho que pode estabelecer uma referência para outros países. Trata-se principalmente de jovens que adentraram o mundo público porque pertencem a movimentos críticos, especialmente o movimento estudantil.

O país estava passando por um processo de profundo descontentamento que levou a uma onda de protestos generalizados em 2019, com milhões de pessoas se manifestando nas ruas. Isto é incomum para o Chile. Mas o sentimento de injustiça era muito grande, por exemplo pelas aposentadorias miseráveis sustentadas por um sistema privado instalado durante a ditadura que financia grandes empresas e é lucrativo para seus proprietários. O sentimento de abuso cresceu até explodir.

Isto obrigou o governo a iniciar um processo de mudança constitucional que está em andamento hoje.

Você acredita que haja sinais de uma mudança na cultura política do país?

Absolutamente. Há um novo olhar e uma nova forma de política chegando com Boric e sua equipe. É muito provável que a mudança afete todos os setores, inclusive a direita. A maneira clássica de exercer o poder estava chegando a uma insolvência política e ética muito grande. Também estava chegando a uma insolvência simbólica, mas agora há uma forte mudança que toma conta deste descontentamento sem gerar uma revolução violenta.

É muito provável que o momento político atual no Chile, desde outubro de 2019, com o que agora é conhecido como revolta social, seja considerado uma verdadeira revolução no estilo arendtiano. Ou seja, um retorno ao cuidado do mundo considerado como mundo comum.

Se a vitória de Boric foi tremendamente importante, foi também muito apertada e contra um adversário de extrema-direita, um pinochetista. No Brasil assistimos a esse “desrecalque” (no sentido psicanalítico) da direita, que polariza o cenário político da pior forma possível, muitas vezes beirando a violência. Boric tem se mostrado muito cauteloso e tem procurado tranquilizar a todos. Como você avalia esses gestos? O ministério é coerente com esse esforço de pacificação?

No Chile também assistimos a este fenômeno de desrecalque da face mais violenta da direita, a direita não-democrática. Acho que devemos encontrar um novo nome para este setor. Mesmo “fascismo” parece pouco, porque o que se vê é um pensamento antipolítico, que despreza não apenas a democracia, mas também o mundo como um horizonte de existência comum, o mundo natural e o meio ambiente. Este setor questiona os direitos humanos, os direitos da mulher. Hoje, no Chile, há um congressista, eleito com grande votação, que questiona o direito de voto das mulheres. Ele se escuda dizendo que é uma piada, mas o que vemos é exatamente este processo de desrepressão, de desrecalque. É um processo muito perigoso, mas talvez não seja de todo ruim, porque ao se mostrar como é também permite uma resposta direta. Caem as máscaras. O que temos que fazer é chamá-lo pelo seu nome, antipolítico.

Boric nomeou como seu ministro da Fazenda o atual presidente do Banco Central, sinalizando que, em alguma medida, haverá alguma continuidade no plano econômico. Isso seria “tranquilizador” para o “Mercado”. Ao mesmo tempo, Boric afirmou no discurso logo após a sua vitória nas urnas que “Se Chile foi o berço do neoliberalismo, será também o seu túmulo”. Como você avalia essa contradição? Que tipo de limites isso pode impor para mudanças mais estruturais que são parte do programa de governo?

Acredito que a estabilidade econômica nunca deve ser entendida como um monopólio do neoliberalismo. Pelo contrário, o neoliberalismo é o seu fracasso. O ministro da Fazenda, Mario Marcel, além de ter uma trajetória técnica e política de excelência, compreende as falhas do mercado, ele não o nega. Muitas vezes se pensa que a esquerda deve ter economistas com uma linguagem diferente do funcionamento do mercado, mas eu acho que isto é um erro. A economia de mercado é uma realidade que deve ser compreendida e fortemente controlada para garantir uma distribuição mais equitativa. O neoliberalismo, especialmente o que tem sido aplicado no Chile, destruiu o mercado, não o fortaleceu. Casos de corrupção, conluio, abuso sobre os consumidores e a inclusão de áreas que não deveriam ser assuntos de mercado, ainda mais sem controle, tais como proteção à criança, educação básica, saúde, previdência, são o que tem destruído o pacto social mais básico. Boric sabe que não há jogo fora da estrutura atual de entendimento econômico e que estabilidade econômica e neoliberalismo não são a mesma coisa.

As mobilizações da sociedade civil chilena foram cruciais para que se chegasse à vitória de Boric e, também, ao processo da Constituinte. Além do próprio Boric, que adentrou a política como líder do movimento estudantil, o presidente eleito quis que as forças mobilizadas da sociedade chilena estivessem representadas no ministério. Como você avalia isso? Um aspecto dessa questão é: trazer esses movimentos para dentro do governo não poderia ser um risco de enfraquecê-los enquanto forças da sociedade civil? Numa eventual crise, como poderiam esses movimentos atuar (até para apoiar o governo, se for o caso) se estiverem dentro do próprio governo e confundidos com ele?

Acho que este não é um perigo real. Embora Boric traga consigo o movimento estudantil, ele já passou por um importante processo político no Congresso como deputado. Ele não foi apenas um porta-voz do movimento estudantil, mas também assumiu outras questões relevantes, tais como a saúde mental e, especialmente, os direitos das crianças. Sua maturidade política lhe trouxe tempos muito duros, sofreu agressões inclusive físicas e a acusação de ser ‘amarelo’, ou seja, não suficientemente radical.

Três temas cruciais envolvem reformas de Estado difíceis de realizar: educação pública, saúde pública e previdência (as aposentadorias). Você acredita que este ministério esteja a altura do desafio de promover essas reformas? Como você acredita que será a relação do governo Boric com o parlamento neste sentido?

O parlamento não tem hoje um domicílio político definido. Está totalmente dividido em suas forças, alguns dizem que está uniformemente dividido, mas há muitos novos parlamentares que não pertencem a nenhuma coalizão. As reformas mais importantes também passarão pela nova Constituição, portanto, nem tudo está em jogo com o novo governo e sua relação com o parlamento. Entretanto, vejo no novo governo um compromisso mais claro com o diálogo e especialmente com a escuta. O novo gabinete de ministros está mais em contato com a realidade do Chile e com as urgências globais.

Sua atuação na Fundação para a Confiança envolve a questão dos direitos da criança e combate aos abusos. Essa foi, aliás, a principal agenda de sua candidatura à Constituinte. Quais os ministérios chave para a atuação da Fundação e qual a sua expectativa para a sua área de atuação?

Hoje, um novo serviço especializado de proteção está começando em nosso país, substituindo um programa nefasto, que durou mais de 40 anos, no qual milhares de crianças necessitadas de proteção especial foram maltratadas de forma inaceitável. Milhares de crianças que morreram de modo inexplicável, sobre as quais ainda não se sabe muito.

O novo serviço, chamado Infância Melhor (Mejor Niñez), vai substituí-lo, embora continue ainda com uma estrutura muito neoliberal de licitações para organizações privadas para a realização dos atendimentos, que ainda não mudou. Além disso, a Lei de Proteção Integral dos Direitos da Infância acaba de ser aprovada, o que traz consigo um sistema que será implementado pouco a pouco. Os desafios são grandes e esperamos que o novo governo esteja à altura da tarefa. Nós estaremos lá para lembrá-los.

 

Veja em: https://outraspalavras.net/pos-capitalismo/chile-a-poesia-da-vitoria-eos-desafios-do-poder/

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