Conversa com um motorista de app, em meia hora de corrida. Ele é negro, defende liberdade difusa e destila conservadorismos. Seu tom alterna raiva e desilusão. Como, então, furar “bolhas de militância” e dialogar com o precarizado?
Por: Fabiana Moraes | Créditos da foto: Julia Dolce/Agência Pública.
Higienópolis, domingo, 16h. Entrei no Uber em direção a Congonhas. Voltava para o Recife. No volante, um rapaz alto, negro, usando gorro. Ouvia Racionais: “A primeira faz bum, a segunda faz tá/Eu tenho uma missão e não vou parar/Meu estilo é pesado e faz tremer o chão/Minha palavra vale um tiro, eu tenho muita munição”.
Gosto da música e acho graça na coincidência: comprei o CD “Sobrevivendo no Inferno” em uma lojinha na Avenida Paulista no fim dos anos 90. Lá estava eu, tantos Brasis depois, me reencontrando com ele.
Joguei a mochila de lado e dei bom dia. O motorista não respondeu.
Seguimos. Ele dirige muito rápido, bruscamente, corta carros e reclama da lentidão à sua frente. Na Rua Jaguaribe, uma moça, também negra, vai cruzando a pista. Ele não diminui a velocidade, ela apressa o passo e corre. “Atravessa na faixa de pedestre, porra! Se a gente bate, a gente é que tá errado.” Ele fala baixo e muito irritado. Para em um sinal e depois arranca. O carro é, antes de tudo, sua extensão. O alerta amarelo acende para mim.
Ali tinha muita raiva. Eu a conheço bem.
Na queda ou na ascensão minha atitude vai além/E tenho disposição pro mal e pro bem/Talvez eu seja um sádico, um anjo, um mágico/Juiz ou réu, um bandido do céu.
Resolvo puxar uma conversa a partir do elo simbólico que havia entre nós dois: a música. “Você já ouviu o podcast de Mano Brown?”. Ele responde que não, que nunca teve muita paciência para podcast, nem estava sabendo. Eu começo a elogiar o programa e a capacidade de escuta e diálogo de Brown, que conversa sem deixar de inquirir, questionar, adicionar o necessário fogo na conversa. Digo que geralmente escuto podcast enquanto faço outras coisas, lavando prato, preparando almoço, no tempo que dá.
Ele se mostra interessado, diz que vai procurar o programa, que vai deixar ali rodando o áudio enquanto dirige. Elogia os Racionais e fala que só gosta de ouvir rap mais antigo, dos “que tratam de questão social, falam da realidade, e não esses traps de agora que só tem sexo e droga”. Acho interessante essa demarcação moral e admito que me surpreende um pouco o tom meio conservador adotado na crítica.
Malandro ou otário, padre sanguinário/Franco atirador, se for necessário/Revolucionário, insano ou marginal/Antigo e moderno, imortal
Seguimos. A direção se torna menos agressiva, e o último comentário feito por ele começa a se abrir como um leque. Ele diz: “as coisas hoje estão muito diferentes, você não pode mais falar nada… dizer que o cara é gay… eu penso assim, que é importante garantir respeito, garantir nossa liberdade, saca?”
Minha primeira reação é tentar me esconder, internamente, em um canto: além de “gripezinha” e “tocante”, outra palavra que Bolsonaro conseguiu esculhambar foi “liberdade”. Mais: o pavio claramente homofóbico também já constava ali. Não sei bem onde aquela conversa pode chegar e sinto, de novo, o sinal amarelo brilhando.
Tento retomar o fio anterior e pergunto que tocador ele está usando no celular. Ele conta que assina o YouTube, gosta bastante, embora o modo offline às vezes não funcione muito bem. Eu comento qualquer coisa sobre os serviços de streaming que uso, se ele acha que vale a pena trocar, fazemos comparações, etc. Parecia que íamos voltar para o terreno das amenidades, quando então ele diz algo que me choca: reclama que gostava mais do YouTube e agora menos, “porque removeram muita coisa, tiraram os vídeos de tiroteio, os vídeos de matança”.
Eu demorei um pouco para processar. Ele estava falando para uma passageira, uma desconhecida sentada ali no banco de trás, que gostava de ver conteúdo de execuções e assassinatos? Era uma provocação? Ele queria que eu sentisse medo? Ou, na verdade, era algo já tão normalizado para ele que não cabia ser filtrado? Fui em frente, sem deixar transparecer meu espanto, e comentei, com cuidado: “O problema é que as crianças acessam, então é delicado mesmo. Na TV tem as classificações, na internet ainda é tudo muito solto.”
De novo, ele evoca a liberdade. “Ah, mas eu não posso pagar se os pais não sabem cuidar dos filhos, são eles que precisam impedir, é o meu direito. As crianças hoje estão muito mudadas, já cedo falam que são gays…”
Na minha cabeça, fica se repetindo: vídeo de tiroteio. Vídeo de matança. Liberdade.
Fronteira do Céu com o Inferno/Astral imprevisível, como um ataque cardíaco no verso/Violentamente pacífico, verídico/Vim pra sabotar seu raciocínio
Chegamos na Avenida 23 de Maio. Ele não comenta, como é comum aqui, sobre o meu sotaque. Pergunta de onde sou. Falo que nasci no Recife e pergunto de onde ele é. Achava que era filho de São Paulo, mas não: nasceu na Bahia, mas, ainda pequeno, foi morar em Palmeira dos Índios, Alagoas, com a família. Cresceu na cidade. “Mas lá não deu certo pra mim, não arrumei trabalho. Fui embora para Portugal.” A raiva que eu percebi assim que entrei no carro começou a ganhar osso e músculo.
Construção civil, auxiliar de pedreiro. Vivia em uma comunidade formada principalmente por cabo-verdianos e também outros brasileiros. Quando ele falou, lembrei imediatamente do filme “Vitalina Varela”, a mulher que (narrando sua própria história) sai de Cabo Verde para Lisboa para encontrar o marido que há 25 anos foi para a capital. Procurava, como meu companheiro de viagem, uma vida melhor.
Também me lembro quando fui a Lisboa em 2018 e reparei, lá na Praça do Rossio, uma quantidade expressiva de africanos conversando em diversos pontos: disponibilizavam-se para o trabalho, trocavam informações, fumavam cigarros. Uma comunidade grande deles vive em Amadora, região metropolitana de Lisboa, onde vários bairros muito precarizados acomodam casas e expectativas de conforto, dinheiro, melhores sapatos, um aniversário de filha. Era onde aquele motorista nordestino e fã dos Racionais também vivia. Naquele mapa negro e pobre de uma branca e racialmente mal resolvida Lisboa.
“Era difícil demais, pesado. Se eu te falar que fiquei mais amigo do pessoal de Cabo Verde, você acredita? Os brasileiros não queriam muita conversa, eram mais fechados…”
“Competição, né?”
“Justamente, muita competição. Quando eu precisava de ajuda, eram os africanos que chegavam perto, não contava com brasileiro, não”.
Pergunto porque ele voltou, e a história se repete: muito trabalho, pouco dinheiro. Falta de proteção social, de alimentação suficiente, de abrigo. Em resumo, super exploração e sofrimento. São os componentes que facilmente sustentam e animam não só a sua raiva, mas a de muita gente superexplorada e sofrida que nos cerca agora.
Depois de quase cinco anos “tentando dar certo” na Europa, ele voltou para o Brasil e se instalou em São Paulo. Me diz que está melhor agora. Naquele dia, quando nos encontramos, ele dirigia um carro preto, modelo sedan, meio velho e amassado de lado. Trabalha durante a noite e conta que, por isso mesmo, “vê muita desigualdade e muita coisa errada”. O leque se expande ainda mais.
Vim pra abalar seu sistema nervoso e sanguíneo/Pra mim ainda é pouco, Brown cachorro louco/Número um guia terrorista da periferia/Uni-duni-tê o que eu tenho pra você
“Eu fico querendo saber melhor porque as coisas são assim, saca? Eu pego gente na balada, eu vejo como é… uns com muito dinheiro, com tanto, e tanta gente sem nada. Eu queria entender melhor como isso vem, porque é assim, eu fico pensando. Uns ricaço, ganharam dinheiro até na pandemia… eu fico pensando de onde isso vem”.
Cresci me fazendo as mesmas perguntas. Talvez elas sejam uma das grandes motivações pelas quais ainda estou aqui, escrevendo. A desigualdade social – que não é uma mera expressão sociológica, um clichê progressista, um papo de boteco, mas um cenário que efetivamente leva milhões de pessoas à morte, à destruição, à impossibilidade de futuro e de qualquer felicidade – continua sendo um assombro para mim.
Dizem que nossa mente não consegue processar o fato de a velocidade da luz viajar quase 300 mil quilômetros em um só segundo. Eu não consigo processar que uma mulher se sente às sete da manhã em frente a uma máquina de costura para trabalhar e saia somente às 21h para ganhar R$ 650 ao mês. Mas isso acontece, eu a conheço e ela, evangélica, agradece a Deus por esse valor que pelo menos permite que ela compre salsicha e cuscuz para comer. Sobrevivendo no que não parece inferno.
Essa desigualdade se materializa toda vez que o “motorista parceiro” do Uber sai de Guaianases, na zona leste paulista, e abre a porta do carro em Higienópolis, onde eu estava hospedada. Se materializa no fato de ele precisar rodar à noite para conseguir viagens com preços mais altos. Se materializa no fato de a empresa “aceitar” que clientes deem gorjetas sem taxar esse valor. Dos R$ 40,97 da viagem, R$ 29,49 ficaram com ele. Dias antes, o preço da gasolina em postos do centro de SP chegava a R$ 8,59 o litro.
“Eu tô pagando para trabalhar.”
É procurando entender, após várias tentativas de “dar certo”, que ele segue sendo explorado. É procurando entender que ele abre várias vezes a porta do carro e não responde a um bom dia. “Uma miséria danada, e o pessoal aí comprando carrão de luxo, saca?”. Raiva tem osso, músculo e alma.
Colou dois mano, um acenou pra mim/De jaco de cetim, de tênis, calça jeans/Ei, Brown, sai fora, nem vai, nem cola/Não vale a pena dar ideia nesse tipo aí
Eu tinha por volta de 15 anos quando acordei um dia e minha mãe, camareira, já havia saído para trabalhar. Morávamos em um conjunto habitacional, o Marcos Freire, em Jaboatão. Ela ganhava um salário mínimo para ser superexplorada limpando os quartos de um hotel 5 estrelas, em Boa Viagem. Sobre a pia, mainha havia deixado para nosso almoço um prato de miúdo de galinha. Miúdos, as partes mais baratas do frango e que voltaram com força aos pratos de um Brasil marcado pela fome e pelo desemprego. Mas não era qualquer miúdo que estava ali: era dos mais acessíveis, somente pescoço.
Osso com alguma proteína. Sobre o pacote de isopor e plástico, o preço: algo como uns R$ 4.
Eu me senti mal por minha mãe, uma mulher branca, pobre, superexplorada, que sustentava uma família praticamente sozinha. Me senti mal por ela, naquele momento, estar tirando das suítes de luxo garrafas de vinho que custavam um mês de nosso aluguel. Por ela estar jogando fora uma comida que não podia comprar. Até hoje, quando lembro daquele pacote, sinto dor – mas sinto, principalmente, raiva.
Passamos o Ibirapuera, o carro desliza agora sem pressa. Vamos chegando mais perto do meu desembarque e algo que eu imaginava finalmente surgiu na conversa: ser preto. Ser preto em São Paulo, em Maceió, em Salvador. Ser preto em Lisboa. Escuto dele o desejo de voltar para a capital da Bahia, “porque lá tem mais cultura africana” e percebo que as relações estabelecidas nas periferias portuguesas seguem firmes nele. “Os africanos lá também conseguem mais benefício, são mais bem tratados, mas também falam melhor a língua, né? Os brasileiros, não. Lá eles não gostam de brasileiro preto”.
Eu comento que achei Lisboa muito racista e ele concorda. “Por isso eu prefiro aqui, saca? Aqui é melhor, melhor de trabalhar. O problema são só essas coisas mesmo da noite, da balada. Um dia desses um rapaz que aparentava assim, ser gay, a gente via pelo jeito, mas nada contra. Ele pediu viagem e aí quando cheguei no local, vi o jeito. Perguntei para onde ele ia e ele falou que já estava no pedido, no sistema… eu perguntei de novo, ‘vai pra onde, mano?’ e ele não falou. Disse que tava no sistema. Aí não levei, deixei ele lá e fui embora.”
… Quatro minutos se passaram e ninguém viu/O monstro que nasceu em algum lugar do Brasil/Talvez o mano que trampa debaixo do carro sujo de óleo/Que enquadra o carro forte na febre com o sangue nos olhos.
Seguimos. Chegando no aeroporto. Eu me sinto provavelmente mais tranquila em poder falar algumas coisas que achava importante compartilhar. Aí digo que liberdade é importante, ele tem razão, mas isso significa que as outras pessoas também vão exercer as suas. Agora, também abro o meu leque: “Eu tenho um sobrinho gay. E ele decidiu contar para nossa família muito cedo, tinha só 13 anos”.
Ele se apressa: “Eu não tenho nada contra não, sabe? Só quero que respeitem, só acho também que começam muito cedo e…”
“É, mas talvez saber cedo também seja bom, porque guardar pode ser muito sofrido”.
Ele para um pouco depois da área de embarque. Se explica e fala que ali rola muita multa para motorista de Uber, eu emendo dizendo que é assim no aeroporto de Recife. Me preparo para descer sabendo que havia muito mais para falarmos. Comecei a viagem sentindo medo. Cerca de 30 minutos depois, eu queria permanecer ali e conversar mais.
“Como é teu nome?”
“Erivaldo.”
Estendo a mão e ele aperta com firmeza.
“O meu é Fabiana, Erivaldo. Obrigada pela viagem, pela conversa.”
“Eu que agradeço, satisfação trocar ideia contigo, Fabiana”.
“Tem uma semana boa. E se cuida, se cuida mesmo.”
“Você também.”
Nossos nomes constavam desde o início no sistema, mas achei que nossa brevíssima relação já havia ultrapassado o aplicativo.
… O mano que entrega envelope o dia inteiro no sol/Ou o que vende chocolate de farol em farol/Talvez o cara que defende o pobre no tribunal/Ou o que procura vida nova na condicional
(…)
O encontro com Erivaldo continua acontecendo em mim.
O motorista materializou, na sua justa raiva e no seu justo desejo, um incômodo que me belisca há tempos: o da pessoa negra e pobre que vem sendo escamoteada diversas vezes por outras pessoas ou grupos comprometidos com o antirracismo. De certa forma, Erivaldo “sobra” ao não preencher todos os pré-requisitos de uma espécie de pessoa negra ideal – ou melhor, idealizada – que vejo se desenhar. Essa idealização, frequentemente branca, concentra diversas vezes classismo e, consequentemente, exclusão.
Não tem livro de Fanon embaixo do seu braço, não tem citação a Lélia Gonzalez, não há visita à exposição de Grada Kilomba, “perspectiva decolonial” ou afins. O motorista não faz parte – pelo menos ainda – da massa de pessoas negras e/ou pobres que felizmente passou a ocupar os bancos de universidades públicas. Em 2019, foi a primeira vez no país que nos tornamos maioria nestes espaços.
No seu discurso não está impresso, também, um tipo de fala muito presente nas redes sociais, que versa sobre temas como interseccionalidade, “colorismo” etc. Tais espaços – academia e redes – são fundamentais, e detratá-los ou silenciá-los é comportamento de fascista, do governo que instrumentalizou a ideia de liberdade.
Mas quero pensar em uma população negra, conservadora e sofredora, não só representada por Erivaldo, mas ainda por pessoas evangélicas que formam 31% da população, ou 65,4 milhões de pessoas, segundo o Datafolha de 2020. Deste número, 60% são pretos e pardos, algo como 45 milhões. Dos pouco mais de 65 milhões, quase a metade vive apenas com até dois salários mínimos (48%).
Como sabemos, sem deixar de levar em conta a heterogeneidade evangélica, há aí uma imensa parcela bolsonarista. Há, ainda e mesclada, uma massa formada por gerações que vivem hoje em um Brasil praticamente inédito, nos quais debates sobre raça, machismo, xenofobia e transfobia, por exemplo, finalmente alcançaram com força o espaço público.
Para ela, até anteontem, falar “feminismo” era palavrão. Até anteontem, dizer que havia sofrido racismo era quase admitir uma fraqueza. Até anteontem, parecia mais confortável negar nosso preconceito com pobre, travesti. “Ah, que é isso. Eu tava só brincando”.
No final, somos uma população imensa – a maioria neste país – excluída reiteradas vezes e traçando uma série de negociações, várias vezes por sobrevivência, com uma estrutura de poder branca. Uma estrutura para qual, aliás, interessa não exatamente uma cisão, mas um desconhecimento sobre si. É esse aspecto que não pode ser perdido de vista. Ela é a dona dos bilhões que compram o Twitter, dona dos bilhões que valem a Uber, dona dos bilhões que permitem a entrega da Amazon (feita em grande parte por mãos negras). Ela está, agora, desenhando novos pactos de governabilidade para as próximas eleições, ela tem uma ideia de “humanidade” na qual, como escreveu Muniz Sodré no livro “Pensar Nagô”, sempre coube direitinho a ideia do racismo (ou o extermínio indígena).
Uma população imensa – que deve estar nas universidades, nos movimentos sociais, nas igrejas evangélicas, nos bailes, nas redes, nas óperas, etc. – para qual foram articuladas, quando foram articuladas, políticas públicas precárias. As pessoas que mais morreram de covid-19, na Vila Cruzeiro ou soterradas durante as fortes chuvas na cidade onde moro. Na academia, no campo ou dirigindo Uber, continuamos, guardando importantes distinções, trabalhando majoritariamente para uma cor ciente de seu demarcado e poderoso lugar.
Eu desci do carro com a imensa sensação de que precisamos redobrar nossos olhos e ouvidos. A quem interessa essa pessoa negra idealizada? E como ela pode ser capturada para fazer frente a tantas outras que não se encaixam nessa construção que é majoritariamente branca? Como ela ajuda a não arranhar a imagem das empresas, chapas políticas, redações e demais instituições – brancas – que neste momento arrotam “representatividade”?
Nesse feixe de desigualdades e sofrimentos que é o Brasil, quais discussões sobre raça, classe, concentração de renda, homofobia e misoginia, por exemplo, incluem um Erivaldo pobre, preto, homofóbico e que deseja ver vídeos de matança? O moço negro e nordestino que passa fome em Lisboa e não desacelera o carro quando uma moça negra, provavelmente indo para o trabalho, atravessa a rua? Quem é Erivaldo no programa de um partido, inclusive os progressistas?
Há pouco mais de um ano, uma pessoa da minha família corajosamente nos falou sobre sua transexualidade. Sua avó, que ajudava na sua criação, ficou estarrecida, confusa. Na sua memória, havia apenas um garoto que ela colocou várias vezes para dormir. Sem saber ler, inventava histórias baseadas nas imagens dos livros.
Poucos dias depois, ela, que também me criou, me ligou chorando muito. “Eu não sei o que é isso, Fá. Me explica. Eu não estudei, como vocês. Eu não tenho estudo, mas quero entender.” Aquilo me desmontou. É uma mulher negra, mãe muito cedo, ensino fundamental incompleto, ex-empregada doméstica que sofreu toda uma série de violências ao longo da vida. Poderia facilmente ser chamada de transfóbica. Naquele momento, ela também não saberia o que é isso.
Uma vez, li que uma pessoa negra não deveria se relacionar com brancos ou ser de qualquer religião de matriz cristã. No meu caso específico, teria que me afastar da minha própria mãe e ainda de três irmãs (e quem vem de uma família interracial sabe o quanto as tensões que serão enfrentadas nas ruas já se desenham nitidamente e dolorosamente ali). Milhões de pessoas pretas que depositam sua fé em virgens marias e santos beneditos perderiam automaticamente pontos.
Nós já sabemos o quanto a “miscigenação” ou o “sincretismo” guardaram muito mais horror que uma celebrada e falsa harmonia e serviram para um pacto no qual pessoas negras não foram as privilegiadas. Como tantas tentativas de coerção foram oferecidas com sorrisos nos lábios, sempre na procura de embraquecer – ou melhor, de exterminar – subjetividades negras e indígenas. Mas o que dizer, por exemplo, das relações de fé nas quais Cristo e santos são antes de tudo readequados para servir a lógicas próprias, como o São Pedro e o São Paulo colocados de castigo por uma população do interior do México quando ambos não “mandam” as chuvas anuais? Como pensar um criativo que também significa poder e inteligência?
É um bocado de coisa. Me pergunto, honestamente, como podemos lidar com essa complexidade. Não tenho resposta. Mas sei que não é com arrogância e com um classismo que isso pode acontecer.
Wakanda, infelizmente, não é aqui. Aqui é o Brasil, e Erivaldo, hoje, estará saindo de Guaianases, provavelmente muito puto, para abrir a porta do carro em Santa Cecília, Brooklyn ou Higienópolis. Ele trabalha para a bilionária e branca Uber. E continua querendo entender.
Veja em: https://outraspalavras.net/outrasmidias/cronica-um-uberizado-sobrevivendo-no-inferno/
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