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Desafio de Lula é resgatar o presidencialismo

Enquanto não eliminar as amarras legais acionadas desde 2016, presidente ficará refém do Congresso, numa espécie de parlamentarismo não declarado. Porque políticas como o teto de gastos inviabilizam o país, e obrigam a passar o pires todo ano

Por: Almir Felitte. Lula começará mandato vendo-se obrigado a apoiar Arthur Lira, o mesmo que comandou o orçamento secreto sob Bolsonaro

A eleição presidencial de outubro de 2022 era apenas uma das muitas lutas a serem travadas e vencidas por aqueles que sonham em reerguer nosso país após longos anos de crise e destruição. Para além do insistente golpismo, cada vez mais reduzido, mas também mais armado e violento, o grande desafio que se apresenta à nossa frente é a construção efetiva do Governo Lula e a realização de seu projeto.

O processo de transição, porém, já tem nos mostrado que os obstáculos neste caminho serão enormes. Neste ponto, todo o debate envolvendo a chamada “PEC da Transição” é central, e devemos estar atentos às possíveis armadilhas que uma aparente vitória pode esconder.

O grande ponto da “PEC da Transição” gira em torno do orçamento do país para o ano que vem deixado pelo governo Bolsonaro. É ponto comum entre o futuro governo Lula, o Congresso e até mesmo a imprensa que ele é simplesmente inviável. Reduzido e amarrado pelo teto de gastos, este legado liberal tornaria impossível a realização das políticas sociais mais básicas, como o próprio Auxílio Brasil.

O novo Governo Lula foi eleito com base na ideia de retomar os investimentos públicos e a expansão do Estado Social no Brasil, com maior participação pública na economia e ampliação de programas sociais. Um programa que reconhece que a austeridade da agenda neoliberal imposta ao país é a grande causa de nossa crise econômica e social. Mas também um programa que só pode ser posto em prática se o orçamento bolsonarista for revisto.

Diante disso, há duas saídas para Lula. A primeira, mais imediata, é a que vemos agora sendo feita por sua equipe de transição: negociar uma PEC com o Congresso que libere “furos” no teto de gastos para que ao menos alguns programas sociais prometidos sejam viáveis. Neste caminho, todo o orçamento do ano fica sujeito às negociações com o Poder Legislativo, que é quem de fato vai decidir o que pode e o que não pode furar a mordaça do teto de gastos.

O problema é que esta saída seria pontual, já que as amarras fiscais seriam mantidas. Dessa forma, até o fim de seu mandato, Lula seria obrigado a sentar com o Congresso todo fim de ano para negociar, novamente, quais gastos poderiam furar o teto. Em outras palavras, o Legislativo teria surrupiado de vez a função presidencial de definir o orçamento público do país, impondo um parlamentarismo forçado e ignorando o programa de governo eleito pelas urnas.

Este cenário, aliás, não seria novidade. Segundo a FGV, entre 2019 e 2022, Bolsonaro conseguiu realizar gastos acima do teto que somaram quase R$ 800 bilhões, boa parte destes conseguidos apenas através da autorização do Congresso.

Como as presidências do Senado e da Câmara estiveram bem alinhadas à agenda econômica de Temer e Bolsonaro, as poucas divergências entre Executivo e Legislativo fizeram com que este parlamentarismo imposto fosse menos aparente nos últimos anos. No novo cenário, onde o programa de governo de Lula é incompatível com a agenda ultraliberal de um Congresso mais radicalizado à direita, talvez este parlamentarismo forçado fique mais visível.

Assim, o povo brasileiro corre o risco de assistir a um verdadeiro golpe eleitoral, no qual o Congresso tornaria inviável, ano após ano, que o programa presidencial vencedor fosse colocado em prática por Lula. Ou, em uma hipótese menos pior, todo fim de ano, os parlamentares cobrariam um preço caro demais para permitir que Lula o realizasse. De uma maneira ou de outra, anualmente, o programa de governo do país seria definido pelo Legislativo.

Por isso, é tão importante debater a segunda saída possível para este entrave, inclusive defendida pelo próprio Lula como promessa de campanha: a revogação do teto de gastos. Nem gastarei mais linhas aqui para falar sobre o suicídio econômico e social que este teto representou para o país nos últimos anos. Os fatos falam por si, e até mesmo liberais insuspeitos já consideram um absurdo que esta política continue.

A questão é que, como podemos enxergar com clareza agora, o teto de gastos não foi uma camisa-de-força apenas para a nossa economia e nosso Estado social. Na verdade, o teto de gastos acabou sendo uma amarra ao próprio sistema político brasileiro, colocando em xeque nosso histórico presidencialismo.

Aliado ao terrorismo econômico da grande imprensa liberal, o teto de gastos representa uma ameaça constante de impeachment a qualquer Presidente que ouse discordar de uma cartilha de austeridade que só beneficia especuladores. Não importa qual programa de governo o povo brasileiro tenha escolhido, o teto de gastos sempre fará com que o orçamento que o sustenta fique sujeito às vontades de um Congresso, sob risco de outro golpe parlamentar. Novamente, um parlamentarismo que nós não escolhemos viver.

A revogação do teto de gastos, desse modo, não seria só uma forma de retomar os investimentos públicos no país e os programas sociais que beneficiam os mais pobres, mas também uma maneira do Brasil retomar o seu próprio sistema presidencialista. Seria, aliás, a única forma de viabilizar o programa de governo lulista eleito pela maioria dos brasileiros.

O grande problema é que esta revogação também deve passar pelo crivo do Congresso. Diante disso, é vital que a equipe de Lula se organize para além das negociações em torno da PEC da Transição. Apesar do ainda grande eleitorado bolsonarista, há um sentimento majoritário na população de que o governo de Jair e as reformas dos últimos anos não trouxeram benefícios e pioraram a vida da população.

Em outras palavras, temos a possibilidade de construir um sentimento geral forte o suficiente para formar uma campanha popular por um “revogaço” de medidas impopulares impostas nos últimos anos, como a Reforma Trabalhista, a Reforma da Previdência e o próprio teto de gastos. Para isso, é mais do que necessário aproveitar o gás dado pela vitória eleitoral e pelo início do novo governo para a esquerda recuperar sua capacidade de mobilização perdida na última década.

Lula não pode nem deve ter medo de chamar o povo para governar com ele. No campo social e econômico, muitas reformas desaprovadas pelo povo foram passadas nos últimos tempos de forma antidemocrática e atropelada. Nessa área, campanhas por plebiscitos e referendos podem ser o impulso necessário para retomar uma capacidade de mobilização que coloque o Congresso em seu devido lugar, force as necessárias revogações e viabilize o programa de governo eleito.

Nesse sentido, recuperar o presidencialismo no Brasil é mais do que confiar toda a esperança de novos tempos para o país apenas nas mãos de Lula. Recuperar o presidencialismo seria, antes de tudo, uma forma de recuperar a própria soberania do povo brasileiro. Esta é uma luta que vai muito além de grupos de engravatados tratando da transição do governo. É uma luta que passa pela reconstrução dos nossos movimentos sociais e populares. Uma luta árdua e exigente, mas que certamente definirá nosso rumo como povo e país nos próximos anos.

 

Veja em: https://outraspalavras.net/estadoemdisputa/desafio-de-lula-e-resgatar-o-presidencialismo/

 

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