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”É crucial buscar o que é nosso horizonte comum de futuro”: um novo universalismo para sociedades complexas

“Um projeto socialista precisa ter uma resposta para a crise climática, a qual serve, ademais, para pôr em xeque o funcionamento do capitalismo”, diz o sociólogo José Maurício Domingues

Por: Patricia Fachin | Crédito de Foto: Créditos da foto: (IIPC)

As experiências políticas dos últimos anos, frustradas por não conseguirem garantir a emancipação humana diante das injustiças causadas pela própria espécie, continuam a nos desafiar na busca de modelos políticos que despertem a nossa imaginação para algo novo.

Olhando para o passado recente, explica José Maurício Domingues, a “derrota do chamado ‘socialismo real’ e mudanças fundamentais na estrutura social complicaram muito a questão do socialismo” que, em diferentes países, se transformou em um “coletivismo autoritário”. A social-democracia, por sua vez, “não passou de reformas muito limitadas”, enquanto o anarquismo, argumenta, “dificilmente tem soluções para sociedades altamente complexas”. E acrescenta: “A profecia – baseada na identificação de processos sociais de simplificação da estrutura de classes aparentemente em curso no século XIX – de um proletariado que fosse majoritário e se homogeneizasse, ao menos politicamente, não se cumpriu, nem se cumprirá na forma imaginada por Marx e Engels. Os processos de individuação, não necessariamente numa direção egoísta e mesquinha, avançaram muito”.

Autor do livro “Uma esquerda para o século XXI. Horizontes, estratégias e identidades” (2021), que integra a coleção Esquerda em movimento, da editora Mauad X, Domingues destaca que, apesar dos fracassos políticos, “a ideia de socialismo no sentido de comunismo como apropriação comum, e direitos, como enfatizou a social-democracia desde a República de Weimar em sua Constituição de 1919, bem como a preocupação com a monopolização do poder, desde cedo denunciada pelos anarquistas, são temas que devem estar no centro de um renovado pensamento socialista, que seja capaz de interpelar também as grandes questões de nosso tempo”.

Um projeto para o futuro, defende na entrevista a seguir, concedida por e-mail, “não pode ser baseado sobretudo na propriedade estatal, mas sim em vários tipos de propriedade social, pois, como aprendemos com o coletivismo autoritário, propriedade estatal não necessariamente implica apropriação social, que é o que caracteriza um projeto socialista”.

Segundo ele, também é preciso desoligarquizar a democracia, aumentar a participação política, alterar a jornada de trabalho e buscar a concretização dos direitos para buscar um horizonte comum de futuro. “Ao lado de nossas particularidades e para além de ‘lugares de fala’ excludentes e que se fazem a partir das experiências de cada um, não obstante o quão importante elas sejam, é crucial buscar o que é nosso horizonte comum de futuro. Aliás, é o que se lê em cada página de Fanon! Um novo universalismo, que possibilite o que quero chamar de solidariedade complexa, em uma sociedade complexa, atravessada por dominações e desigualdade, assim como por desejos múltiplos, é fundamental, voltada para o futuro. Não há mágica que prescreva o equilíbrio entre esses aspectos de forma absoluta e permanente”. E assegura: “Aí é preciso recorrer a Lenin e buscar a análise concreta da situação concreta”.

José Maurício Domingues é graduado em História pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro – PUCRJ, mestre em Sociologia pelo Programa de Pós-Graduação em Sociologia Política do Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro – IUPERJ, e doutor em Sociologia pela London School of Economics and Political Science, Universidade de Londres. Atualmente é professor do Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro – IESP-UERJ. É autor de Uma esquerda para o século XXI. Horizontes, estratégias e identidades (Rio de Janeiro: Mauad X, 2021) Esquerda: crise e futuro (2017) e O Brasil entre o presente e o futuro (2a. edição, 2015).

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No livro “Uma esquerda para o século XXI. Horizontes, estratégias e identidades”, o senhor caracteriza o governo Bolsonaro como uma forma de oligarquia liberal autoritária que tem como projeto tornar o país mais oligárquico, menos democrático e mais militarizado e autocrático. Pode nos dar exemplos de como isso tem sido feito na prática?

As democracias liberais são na verdade o que se pode chamar de um regime misto, que inclui elementos democráticos – livre expressão, participação eleitoral, organização autônoma da sociedade – e oligárquicos – com a política em larga medida controlada pelos políticos profissionais e os aparelhos burocrático-partidários. Em princípio, o império da lei é vigente nesses regimes liberais, mas o Estado e mesmo aparelhos paraestatais têm muitos recursos coercitivos e repressivos a sua disposição. Houve, durante o século XX, no segundo pós-guerra, uma democratização da democracia liberal, com a participação das massas, ampliação do direito de voto (feminino também), direitos sociais amplos na Europa e uns poucos outros lugares. Desde fins dos anos 1970, tem havido, porém, uma desdemocratização da democracia liberal, que se fez mais oligárquica e autoritária. Exprimir opinião e votar acaba, em particular, tendo pouco efeito sobre o sistema político, uma vez que os políticos e o próprio Estado se vinculam menos à população em geral, mais preocupados que estão consigo mesmos e seu poder, com os ricos e com as forças do capitalismo global. Cada país tem nisso sua trajetória.

No centro do sistema global, aparece uma tendência à constituição do que chamo de oligarquia liberal avançada mais típica. Em outros lugares, como a Turquia e até há pouco inclusive a Rússia, elementos básicos da democracia liberal se mantêm, mas são muito restringidos, com o sistema político se tornando claramente mais autoritário. Se na Turquia isso parece estar em crise, a Rússia evoluiu mais explicitamente hoje para um sistema autocrático. Trump queria fazer algo parecido nos Estados Unidos e os republicanos lá seguem nessa direção. No Brasil, cujo sistema político se democratizou sem deixar de ser altamente oligárquico, mantendo um núcleo tradicional, que inclui mas não se restringe ao “centrão”, temos, por outro lado, um sistema político e um aparato de Estado com fortíssimos elementos autoritários, que o atual governo vem tentando explorar em seu favor, bloqueado até agora em boa medida pelas forças democráticas, pela esquerda e por elementos importantes da oligarquia política e seus vetores no judiciário comprometidos com a democracia liberal.

Oligarquia

Quero enfatizar que, quando falo de oligarquia, não me refiro à influência do poder econômico e das classes burguesas no sistema político. Obviamente ela existe e é forte, mas não devemos esquecer que a dimensão política tem ampla autonomia no mundo moderno. Por isso mesmo, vemos rapidamente os partidos políticos de esquerda se oligarquizarem e se transformarem em elemento, com frequência subordinado, das oligarquias das democracias liberais, sem que isso queira dizer que não representem em parte (junto com seu próprio interesse no poder) classes e grupos sociais distintos daqueles representados, em parte, por partidos de outras fatias do espectro político. De todo modo, o governo de Bolsonaro gostaria de monopolizar ou ao menos se tornar dominante no sistema político, juntando os setores oligárquicos mais fisiológicos com seu núcleo de direita ou mesmo extrema-direita. Começou com um projeto mais puro, mas logo descobriu que a vida ficava muito difícil sem esses elementos oligárquicos, que são uma verdadeira praga do sistema político brasileiro. Mas pode voltar, ao menos em parte, a seu projeto original caso Bolsonaro ganhe a eleição de 2022, o que de modo algum está descartado.

A que atribui não só o retorno de grupos políticos autoritários à política nacional, mas também a adesão de parte da população a esse segmento?

O Brasil viveu um processo de democratização acentuado entre fins da década de 1970 e meados dos anos 2000. Mas os problemas do sistema político e o comportamento das forças políticas – que atuaram como facções em guerra sobretudo durante o governo de Dilma Rousseff – levaram a uma crise política muito profunda. A esquerda, sobretudo o PT, se desmoralizou com os escândalos de corrupção e o estelionato eleitoral de Rousseff após sua reeleição; o PSDB se tornou um partido cada vez mais neoliberal e sedento de voltar ao poder, juntamente com o DEM, enquanto que os políticos e partidos mais fisiológicos queriam se proteger dos avanços da Lava Jato e de seu bonapartismo judiciário, que se aproveitava da crise e das divisões no sistema político e ao mesmo tempo aprofundava a desestruturação desse sistema, sem ser de modo algum o principal agente desestruturador.

2013 – Insatisfação de massa

Na verdade, a crise começa em 2013 com a insatisfação de massa, sobretudo dos jovens, contra o sistema político e sua oligarquização, o que não quer dizer que esse conceito estivesse presente enquanto tal. Fato é que os plebeus, definidos em termos políticos, da sociedade brasileira demonstraram sua insatisfação com a falta de representação, a corrupção, o autocentramento dos políticos, majoritariamente com a falta de direitos, a exemplo do que ocorreu no Chile a partir de 2019, mas de maneira mais caótica, frente à irritação dos aparelhos de esquerda – se bem que houve presença da direita também nos protestos. Rousseff acabou por não conseguir manejar a situação, que se complicou com a crise econômica, o mal-estar das classes médias e, enfim, a decepção dos empresários, que então optaram por aproveitar a crise e apostar num neoliberalismo radicalizado e uma subalternização ainda maior em termos globais. A crise foi fundamentalmente política, somente no fim do processo o empresariado decidiu realmente apoiar o impeachment.

Equívocos políticos

Não há como encontrar na economia, de forma direta, os determinantes da crise política neste caso, muito menos sugerir interesses imperialistas, guerra híbrida e coisas desse tipo, que servem mais como tentativa das lideranças de esquerda de se esconder dos erros que cometeram. Nem adianta evocar escravidão e latifúndio para cobrir os equívocos políticos recentes cometidos.

Visões pessoais de mundo

Bolsonaro, sim, se aproveitou da crise do sistema político e, correndo por fora, embora dele fizesse parte há tempos, recolheu vitoriosamente a insatisfação e a raiva da população com os políticos. Sua visão pessoal de mundo se vincula ao fascismo da ditadura militar, mas o projeto dos generais que o apoiaram tinha mais a ver com a perspectiva de autorreforma da ditadura nos anos 1980, frustrado com a derrota no Colégio Eleitoral em 1985. De resto, a direita sempre esteve por aí, mas a crise do sistema político – e da esquerda, especialmente – abriu espaço para que pudessem retomar seus projetos, que, aliás, vinham sendo preparados também por uma bem articulada campanha de pseudointelectuais pseudoliberais. Acabaram todos abraçados à oligarquia fisiológica. Todavia, a crise política não acabou. Pandemia, crise econômica e extrema-direita concentram as preocupações da população, mas os problemas colocados em 2013 não desapareceram.

Uma das questões centrais do seu livro é sobre o que é preciso para recolocar o socialismo na ordem do dia. Como tem respondido a essa questão?

A derrota do chamado “socialismo real” e mudanças fundamentais na estrutura social complicaram muito a questão do socialismo. O coletivismo autoritário, que é como, creio, deve-se de fato chamar esse “socialismo”, da União Soviética à China e Cuba – com agora somente seu sistema político altamente autoritário vinculado a um tipo particular de capitalismo –, deixou um gosto amargo, como se se tratasse de tarefa impossível construir um socialismo que amplie a liberdade.

A social-democracia não passou de reformas muito limitadas. O anarquismo dificilmente tem soluções para sociedades altamente complexas. Por outro lado, a profecia – baseada na identificação de processos sociais de simplificação da estrutura de classes aparentemente em curso no século XIX – de um proletariado que fosse majoritário e se homogeneizasse, ao menos politicamente, não se cumpriu, nem se cumprirá na forma imaginada por Marx e Engels. Os processos de individuação, não necessariamente numa direção egoísta e mesquinha, avançaram muito. Como construir uma maioria social a favor do socialismo, calcada em trabalhadores assalariados e aqueles que nem conseguem mais trabalho (ao menos, adequado e fixo), incorporando também setores médios e até mesmo pequenos empresários, é um projeto cuja via de concretização não está clara, sem que um tal projeto deixe de ser necessário de todo modo do ponto de vista político e da imaginação de um novo tipo de sociedade, que abra o horizonte histórico e subtraia da direita a possibilidade de aparecer como quem contesta, falsamente, é claro, a ordem vigente. Esse projeto não pode ser baseado sobretudo na propriedade estatal, mas sim em vários tipos de propriedade social, pois, como aprendemos com o coletivismo autoritário, propriedade estatal não necessariamente implica apropriação social, que é o que caracteriza um projeto socialista. Isso tem que se conjugar com a desoligarquização da democracia, com um aumento da participação e mudanças na jornada de trabalho de modo a liberar os cidadãos e cidadãs para tarefas cívicas, em todas as esferas, inclusive a econômica, além de buscar concretizar direitos em todas elas, o que é uma demanda, em larga medida, da população. Esses direitos podem vir a incluir direitos “econômicos” e de apropriação coletiva.

Saiba mais em: https://www.cartamaior.com.br/?/Editoria/Sociedade-e-Cultura/-e-crucial-buscar-o-que-e-nosso-horizonte-comum-de-futuro-um-novo-universalismo-para-sociedades-complexas/52/52462

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