Clipping

Encarar a morte, para recuperar a vida

Ideia da finitude dos corpos é igualitária e desalienante. Por isso, a modernidade capitalista ocultou-a por séculos. A pandemia reembaralha as cartas. A certeza de que todos pereceremos precisa ser convite a transformar a vida em comum

Por: Gustavo Assano

O lugar social da morte é teor fundamental para a compreensão do que se perde e o que se forma entre os últimos sopros da civilização medieval e o alvorecer da modernidade capitalista. Ao refletir sobre este período, talvez seja possível traçar reflexões sobre certos aspectos de nossa experiência contemporânea com a morte, explicitados pela vivência da pandemia. Johan Huizinga chama atenção ao longo de todo seu famoso livro, O outono da Idade Média (1919), para como a mudança do estatuto da morte permite entender a transposição sensorial implicada para se pensar o que era a formação da consciência antes do século XVI. A anestesia não havia sido inventada. Sob critérios modernos, a dor promovia contornos expressivos de consequências inesperadas, e o mesmo pode ser dito sobre a alegria. A morte estava em toda parte, não se escondia, não podia ser ignorada ou esquecida. Mostrava-se abertamente, com alarde e crueldade.

Seria impensável o que Walter Benjamin percebeu ao compor suas considerações sobre o narrador de Nicolai Leskov, sobre como as instituições higiênicas e sociais da vida burguesa europeia aboliram o espetáculo da morte na vida cotidiana. Algo se perde de experiência transmissível e compartilhável quando a morte perde sua onipresença e força de evocação compartilhada na consciência coletiva. No declínio da Idade Média, um imperecível apelo de memento mori ressoa através da vida, inscrita num tempo que rumava para o fim dos tempos.

No extraordinário capítulo 11 do livro de Huizinga, “A imagem da morte”, o historiador nos lembra que deitar-se para dormir todas as noites era um ato que constantemente se relacionava com o fato de que um dia mãos estranhas deitariam o próprio corpo num túmulo; nunca ficava em segundo plano o fato de que toda forma humana corpórea um dia amanheceria como cadáver. Em nenhuma outra época se atribuiu tanto valor ao pensamento da morte como no século XV no norte do continente europeu. Um sentido da natureza perecível de todas as coisas estava impresso nos espíritos de forma incontornável. A queixa sem fim da fragilidade de toda a glória terrena era cantada em várias melodias. Nestas, três motivos eram os mais comuns: o primeiro era a pergunta “onde estão agora aqueles que em dado momento preencheram o mundo com seu esplendor?”. O segundo remetia ao espetáculo aterrador da beleza humana caída na decrepitude, a decomposição de tudo que um dia foi tido como belo por olhos humanos. O terceiro era a dança da morte, ou dança macabra, a Parca arrastando os homens de todas as condições e idades, a universalidade negativa e trevosa que a morte impõe ao moldar a unidade das coisas vivas passadas, obrigando a dedução do futuro para o presente, a imagem da certeza de que inevitavelmente tudo que é vivo será aniquilado – a morte como estrofe conclusiva da ciranda das coisas vivas. Rei ou servo, cônego ou flagelado, general ou soldado raso, o lastro da igualdade entre os homens ali estava em latência, e este sentido era plenamente transmissível coma imagem da morte e sua dança macabra.

A sensibilidade medieval exigia uma incorporação concreta do perecível: a reiteração do cadáver que apodrece. Toda meditação ascética já insistia no pó e nos vermes, mas no final do século XIV o tema da decomposição toma conta da arte pictural. O desejo de inventar uma imagem visível de tudo o que se relacionava com a morte deu lugar a uma aversão aos aspectos dela que não fossem passíveis de representação direta. Só as concepções mais cruas da morte se fixavam nas consciências, ainda que nada disso desfizesse a forte aversão pela decomposição da carne (afinal, um dos aspectos sublimes da glória de Maria foi o fato de ter ascendido aos céus escapando das garras da putrefação). Não havia nota elegíaca. Assim, há algo de egoísta e terreno nesta concepção de morte. Huizinga nota um espírito de “tremendo materialismo” nisso tudo, uma invasão da sensualidade mundana coordenando o sentido de orientações dogmáticas religiosas, uma unidade contraditória na representação obsessiva e reiterada das formas das imagens da morte.

Mal se descobre a dor pela ausência dos que morrem, é o medo da própria morte que ganha ênfase, este o pior dos males. Neste período, a morte não é consoladora, não há repouso desejado, o fim dos sofrimentos. São raros os vestígios de ternura em relação à morte, excetuando-se uma situação: a morte dos filhos. Mesmo assim, não existia individualização dos processos de luto; este emergia como expressão configurada por impossibilidade de manter sua repressão por ausência de forma. Quase mais nada se conhecia em relação à morte senão o lamento pela brevidade das glórias terrenas e o júbilo pela salvação da alma. O que fica entre estes extremos – piedade, resignação, consolação – ficou sem expressão.

No entanto, com a saturação do macabro, tornava-se aceitável a morte como um espetáculo público. Como sabiamente marcado por Benjamin, com a expulsão da morte do universo dos vivos, expulsa-se a forma transmissível da sabedoria dos momentos finais, estes confinados em sanatórios e hospitais, não mais em quartos e salas onde a interioridade do agonizante se traduziria em gestos e olhares que emergem do confronto de toda uma vida que alcança seu fim – uma autoridade que torna todo “zé ninguém” merecedor de respeito e reverência dos vivos ao redor.

No entanto, prévio ao ordenamento burguês, eram raros os momentos de reconhecimento de interioridade e profundidade de paixões humanas. Daí o consenso do macabro e o terror da putrefação sobre a realização dignificante no retrato da morte medieval. É da era moderna, própria de suas idealizações sobre o passado, portanto, o lamento pela perda da “arte de morrer” e da “arte do sofrimento”, uma perda da dignidade da morte que em parte idealiza os antigos, mas que ao mesmo tempo não é sem razão de ser, pois é justo lamentar que não exista na era da “saúde plena” uma morte com sentido, um sofrimento que não é vão. Uma nostalgia pela integração plena da individualidade abstrata a uma ordem social exterior rígida surge do mal-estar da modernidade capitalista. A recusa em reconhecer uma lacuna entre interior (individual) e exterior (social) do período medieval fornecia a imagem tentadora de totalidade independente plenamente realizada, em que o desespero pelo perecimento absoluto da morte, imagem mais forte que a da fome ou da pobreza, encontrava estatuto de sentido, integrada a uma ordem.

Este tipo de romantismo regressivo colocou um véu sobre a necessidade da erradicação do cosmos medieval, pois tornava sublime aquilo que este tinha de falso e mentiroso. Como Huizinga pontua, as riquezas espirituais e a beleza absoluta almejada por personagens da corte não podiam conceber que “o povo não podia viver sua própria sorte e os acontecimentos daqueles dias senão como uma sequência infinita de abuso e extorsão, guerras e pilhagem, carestia, miséria e pestilência”. As guerras sucessivas travadas por facções derivadas de crises dinásticas, a insalubridade e insegurança no campo e na cidade, a exploração sem fim e sem nome, a ameaça perpétua de uma justiça dura e parcial e, para completar, o medo do fogo do inferno tornavam os contornos da vida sombrios demais para sustentar qualquer nostalgia pelo período medievo.

Neste sentido, o que se deve salientar neste movimento de valorização de uma ordem integrada que faz pouco caso de sua falsidade transcendental é a carência por contornos nítidos do caráter enfático e expressivo de eventos da vida. Ênfase e expressão que atingia estertores nas representações da Idade Média de acontecimentos como o nascimento, o matrimônio e a morte, compostos por rituais que sedimentavam um estilo de vida rígido e cruel, mas envolto no esplendor do mistério divino, em que o propósito da existência de cada estamento, cada ordem, cada ofício podia ser reconhecido. Daí a nostalgia do fascismo italiano pelo heroísmo dos condottieri pré-renascentistas e do nazismo pelo Sacro Império Germânico, o Primeiro Reich.

A expulsão da morte do universo dos vivos na era burguesa representa uma desmoralização, uma perda de autoridade sobre as próprias experiências vividas, além da perda da capacidade de transmiti-las, como percebido por Benjamin. Uma vida tutelada pelo triunfo da medicalização, que sabota a singularidade das experiências das pessoas lhes informando que são anormais e que suas sensações nada dizem senão o fato de que precisam de correções de peritos, é o que molda nossa experiência da morte e do sofrimento corporal. A morte das pessoas não é mais propriamente parte da vida das pessoas. Acontece o que o filósofo austríaco e católico Ivan Illich chamou, em livro que transcreve diálogo com David Cayley (Ivan Illich in Conversation, House of Anansi Press, 1992), de aquisição de “corpos iatrogênicos”: as pessoas percebem a si mesmas e seus corpos apenas como os médicos e a comunidade científica lhes descreve e indica. Percebemo-nos como modelos de explicações médicas sobre o organismo, não como habitantes destes, não podemos perceber a própria finitude e decrepitude como parte integral de uma experiência de vida, mas sim como um amontoado de dados científicos que explicam uma inferioridade mecânica e inorgânica. Não sentimos apenas frustração com a perda da saúde, mas também vergonha, sentimos a humilhação de não possuirmos corpos imperecíveis. A falibilidade biológica é tabu, uma extensão do fenômeno daquilo que Gunther Anders chamou de “vergonha prometeica” em seu Die Antiquiertheit des Menschen [A obsolescência do homem]. Vergonha pelo envelhecimento e pela doença e inveja da saúde que não se goza são patologias criadas pela ideação de organismos artificiais não vividos pela forma humana, tomados como forma ideal – ao se constatar a discrepância entre a forma orgânica real e a forma artificial idealizada, tomada como patamar de perfeição, surge a vergonha, o ressentimento sobre a inferioridade suscitada pela condição de organismo perecível.

Esta alienação sobre o próprio corpo e, por extensão, da experiência da decrepitude e do processo de definhamento do corpo humano como partes integradas de uma experiência humana coerente trazem elementos para pensar o negacionismo anticientífico do nosso tempo. Por um lado, é manipulação política e engajamento de rebanho, mas ao mesmo tempo há um gesto de paródia de meditação dubitativa fundada sobre critérios de disputa de identidade, que não devem ser confundidos com critérios de busca por verdade. Na recusa dos argumentos científicos, a valorização da opinião própria defendida cinicamente como exercício de liberdade – mandar às favas os especialistas, os burocratas, o establishment bem-comportado – há um arremedo de gesto libertador que, apesar de desprovido de substância, é funcional, demonstra ter eficácia para a composição da autoimagem de indivíduos que ritualizam a própria liberdade. Tal qual o terraplanismo, não se trata de buscar a verdade, mas de compor um ritual que encene um arremedo de autonomia e busca por liberdade, sanar as frustrações de sujeitos que se sabem impotentes por motivos reais, mas que recusam uma ordem vigente em função da integração a uma ordem outra, alternativa, que forneça alívio sobre a dura realidade usurpadora de autonomia que é a ordem pandêmica, que não deixa de ser uma tabula rasa sobre a fragilidade, imperfeição e inferioridade do organismo humano se comparado com suas idealizações e aquilo que poderia ser e exercer caso recusasse autoridades desqualificadoras.

Aceitar regras do convívio pandêmico significa abdicar de viver segundo os próprios termos, e não há mentira nesta afirmação. A falsidade aparece quando se passa a creditar que havia liberdade universal antes da pandemia. Daí a frouxidão de acusar o estado pandêmico de estado de exceção, termo empregado como jargão sem elaborações maiores na conceituação: então a ordem neoliberal anterior era o quê? Soberania popular realizada plenamente? Qual o troféu a se ganhar na disputa por tomar como fim ideal a defesa de um estado de não-liberdade contra outro? Curiosa a aversão em se reconhecer duas falsas alternativas. Afinal, fomos todos condicionados a viver segundo o mantra there is no alternative há quase meio século. O contraditório não pode ser reconhecido, existe apenas apologia ou oposição.

Mas não é apenas o negacionismo anticiência que compõe o leque de ideologias mórbidas da nova época pandêmica eclodida. Há também o cinismo da solução bolsonarista, que possui nuances e detalhes nada óbvios. A explicação da “gripezinha”, a contradição sem consequência de constatar a existência de uma situação difícil, mas com a ressalva de que é melhor agir como se ela não existisse, pois do contrário a vida em sociedade se tornaria dura e calamitosa. Em outras palavras, o discurso vitorioso sobre a racionalização da vida em pandemia em contexto brasileiro, o discurso que prega a urgência do “retorno à normalidade”. Não é fácil interpretar esta forma de pensar. Também há uma encenação de transgressão libertadora, de gesto que teatraliza tomar as rédeas da situação, de indivíduos comandando as próprias vidas.

Há contornos políticos, culturais, teológicos e econômicos muito específicos nesta forma de agir. Ora, um dos motivos que nos levam a temer a morte, dita uma explicação fundamentada em senso comum, é a aparência de invalidação de tudo que fomos após sua consumação. A morte higienizada, pós-medieval, apaga os rastros da materialidade do macabro, sua imagem pública não carrega nada de universalidade transmissível. No entanto, prevalece um anseio por eternização, de desejo por sobrevivência simbólica. Tudo aquilo que não puder ser inscrito na eternidade é suscetível de ser considerado ralo, fraco e insuportavelmente irrelevante. É difícil aceitar que o que fazemos e sentimos carrega algum valor se um dia será soterrado pelo esquecimento das coisas não reconhecidas pelo olhar alheio.

Desdobrando o raciocínio, descobre-se que se o valor não se preserva na posteridade, ele só pode residir no agora, que deve ser cultivado. A suposição de que a raça humana sobreviverá à nossa morte individual, mesmo que por um período razoável, é vital para nosso atual senso de autovalorização. Daí a euforia que a consciência da proximidade da morte pode causar, motivando também uma repressão da melancolia pelo dever em provar aos pares que a vida está sendo aproveitada, imperativo que anula o conflito entre morte individual e a morte coletiva – o “vamos todos morrer mesmo” que o banhista da praia de Santos articulou de maneira tão debochada e clarividente em janeiro de 2021.1 A fala, cínica e mesquinha, revela uma verdade de difícil confronto para qualquer consciência crítica: fazer o distanciamento social é inútil, pois é incentivado da mesma maneira que campanhas em defesa do meio ambiente pedem racionamento no uso doméstico de água e ignoram o desperdício do uso industrial – pede-se a renúncia de espaços de lazer, mas nada é feito para evitar as aglomerações no transporte público rumo ao trabalho. Se posso me matar e matar os outros indo ao trabalho, não posso para descansar? A crítica verdadeira que exige reflexão ponderada é mera desdita e despeito, uma paródia que complementa a satisfação de um abanar de mãos que substitui com altivez de lacração um “ora, não me encha o saco, me deixe viver minha vida”. Nota importante: o esforço sobre o peso de verdade na interpretação do fenômeno social complexo na fala do banhista está mobilizado para justificar o lazer, não para combater a forma como a vida no trabalho está organizada. Muita coisa se poderia tirar dessa formulação para além do cinismo.

A razão cínica expressa-se pelo fato do argumento buscar a justificação do gozo imediato, a adesão à normalidade mantida como se a vida pudesse seguir inalterada, desengajando-se do peso das consequências; estas não são ignoradas, são aceitas como simplesmente inevitáveis, como a morte – coisas da vida, fazer o quê? A verdade sobre a qual essa razão se apoia está no fato de que é realmente pouco razoável e delirante a cobrança individual sem transformação radical da organização coletiva da vida em sociedade para lidar com a pandemia. Também expõe os limites do bom-mocismo da defesa de lockdowns (deixemos de lado momentaneamente a discrepância entre o que o termo descreve no Brasil e o que se passou em outros países ao empregarem o termo) pelo anseio desesperado pela volta da normalidade, que a rigor nunca mais voltará, e que o banhista responde com contundência contracultural em seu gesto – “pra que esperar, renunciar meu gozo se posso viver intensamente agora, se posso agir como na normalidade de antes no agora?”. Uma transgressão autoafirmativa em que o “agora” é a manutenção ilusória de um “antes”. Uma transgressão pela conservação de um estado de coisas, uma desobediência pela conformação à ordem, uma fala escandalosa pela manutenção da vida regrada e ordeira, comandada pelos imperativos de circulação de mercadorias – este o circuito que dita a velocidade dos contágios.

 

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