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Friedrich Engels sobre o assassinato social

O socialista revolucionário Friedrich Engels faleceu neste dia em 1895, depois de passar grande parte de sua vida na Inglaterra – e escrever sobre o sofrimento inerente à vida no sistema capitalista.

Por: Friedrich Engels | Tradução: Coletivo Leia Marxista |Créditos da foto: Creative Commons. Friedrich Engels (1820-1895), fotografado em 1891.

O texto a seguir extraído do livro A situação da classe trabalhadora na Inglaterra, publicado pela primeira vez em 1845. Você pode o livro completo aqui.


Uma cidade como Londres, onde é possível caminhar horas e horas sem sequer chegar ao princípio do fim, sem encontrar o menor sinal que faça supor a vizinhança do campo, é verdadeiramente um caso singular. Essa centralização colossal, esse amontoado de 2,5 milhões de seres humanos em um ponto, multiplicou por 100 o poder desses 2,5 milhões; elevou Londres à capital comercial do mundo, criou as docas gigantes e congregou os mil navios que cobrem continuamente o Tâmisa.

Não conheço nada mais imponente do que a vista que o Tamisa proporciona durante a subida do mar à London Bridge. Os prédios amontoados, os cais de ambos os lados, especialmente acima de Woolwich, os incontáveis ​​navios ao longo de ambas as margens, amontoando-se cada vez mais perto uns dos outros, até que, por fim, resta apenas uma passagem estreita no meio do rio, uma passagem através da qual centenas de embarcações a vapor se ultrapassam; tudo isso é tão vasto, tão impressionante, que um homem não consegue se controlar, e se perde na maravilha que é a grandeza da Inglaterra antes mesmo de pisar em solo inglês.

Mas os sacrifícios que tudo isso custou tornaram-se aparentes mais tarde. Depois de vagar pelas ruas da capital por um ou dois dias, avançando com dificuldade no tumulto humano e nas intermináveis ​​filas de veículos, depois de visitar os bairros degradantes da metrópole, percebe-se pela primeira vez que esses londrinos foram obrigados a sacrificar as melhores qualidades de sua natureza humana para realizar todas as maravilhas da civilização que tomam conta de sua cidade; que incontáveis poderes, os quais dormiam dentro deles, permaneceram inativos, foram suprimidos a fim de que alguns pudessem se desenvolver mais plenamente e se multiplicar por meio da união com os poderes de outros. O próprio tumulto das ruas tem algo de repulsivo, algo contra o qual a natureza humana se rebela. As centenas de milhares de pessoas de todas as classes e categorias se aglomerando, não são todos seres humanos com as mesmas qualidades e poderes, e com o mesmo interesse em ser felizes? E não devem, no final, buscar a felicidade da mesma maneira, pelos mesmos meios?

Ainda assim eles se aglomeram como se não tivessem nada em comum, nada a ver um com o outro, e seu único acordo é tácito, que cada um fique do seu lado da calçada para não atrasar os fluxos opostos da multidão, enquanto não ocorre a nenhum homem honrar o outro com apenas um olhar. A indiferença brutal, o isolamento insensível de cada um em seu interesse particular, torna-se tanto mais repelente e ofensivo quanto mais esses indivíduos se aglomeram dentro de um espaço limitado.

E, por mais que sejamos conscientes de que esse isolamento do indivíduo, esse egoísmo raso, é o princípio fundamental de nossa sociedade em todos os lugares, não está em nenhum lugar tão descaradamente despojado, tão autoconsciente como aqui na aglomeração da grande cidade. A dissolução da humanidade em mônadas, nas quais cada uma tem um princípio separado, esse mundo dos átomos, é aqui levada ao seu extremo.

Daí resulta também que a guerra social, a guerra de cada um contra todos, é aqui declarada abertamente. Exatamente como dito no recente livro de Max Stirner The Ego and Its Own [O Único e sua Propriedade], as pessoas consideram umas às outras apenas como objetos úteis; cada um explora o outro, e o fim de tudo é que o mais forte pisa no mais fraco com os pés; e que os poucos poderosos, os capitalistas, tomam tudo para si, enquanto que para os numerosos fracos, pobres, dificilmente resta uma simples existência digna.

O que é verdade para Londres, é verdade para Manchester, Birmingham, Leeds, é verdade para todas as grandes cidades. Por toda parte há a indiferença bárbara, o egoísmo duro de um lado e a miséria sem nome do outro, a guerra social está em todos os lugares, a casa de cada homem está em estado de sítio, a pilhagem recíproca acontece em toda parte sob a proteção da lei, e tudo acontece de forma tão desavergonhada, tão abertamente declarada que alguém só pode encolher-se diante das consequências de nosso estado social, conforme elas se manifestam aqui sem disfarces, e só pode perguntar-se como toda essa trama maluca ainda se sustenta.

Visto que o capital, o controle direto ou indireto dos meios de subsistência e produção, é a arma com a qual essa guerra social é travada, é claro que todas as desvantagens de tal estado devem recair sobre os pobres. Nenhum homem tem a menor preocupação por eles. Lançado no redemoinho, ele deve lutar o melhor que puder. Se for feliz em encontrar trabalho, isto é, se a burguesia lhe faz o favor de enriquecer por meio dele, espera-o um salário que mal basta para manter o corpo e a alma juntos; se não conseguir trabalho, ele pode roubar, se não tiver medo da polícia, ou pode ainda morrer de fome, caso em que a polícia tomará cuidado para que a morte seja silenciosa para não chocar a burguesia.

Durante minha residência na Inglaterra, pelo menos 20 ou 30 pessoas morreram de fome nas circunstâncias mais revoltantes, e raramente um júri teve a coragem de falar a verdade nua e crua sobre o assunto. Mesmo o depoimento das testemunhas sendo sempre tão claro e inequívoco, a burguesia, da qual o júri é selecionado, encontra alguma saída para escapar do terrível veredicto final: a morte por fome. A burguesia não ousa falar a verdade nesses casos, pois ela declararia sua própria condenação. Mas, indiretamente, muito mais do que diretamente, vários morreram de fome, pessoas nas quais o prolongado desejo por nutrição adequada suscitou doenças fatais e produziu tais debilidades que, causas que em outras circunstâncias poderiam ter permanecido inoperantes, ocasionaram doenças graves e morte. Os trabalhadores ingleses chamam isso de “assassinato social” e acusam toda a nossa sociedade de cometer esse crime perpetuamente. Eles estão errados?

É verdade que indivíduos isolados passam fome, mas que segurança tem o trabalhador de que amanhã não será a sua vez? Quem lhe garante emprego, quem garante que, se por qualquer motivo ou sem motivo algum seu senhor e mestre o despedir amanhã, ele poderá sustentar a si e aos que dependem dele até que encontre outro alguém “para lhe dar pão”? Quem garante que a vontade de trabalhar bastará para obter trabalho, que a integridade, a laboriosidade, a parcimônia e as demais virtudes recomendadas pela burguesia são realmente o seu caminho para a felicidade?

Ninguém. Ele sabe que tem algo hoje e que não depende dele se terá algo amanhã. Ele sabe que cada suspiro, cada capricho de seu empregador, cada rumo desafortunado pode lançá-lo de volta ao redemoinho feroz do qual ele se salvou temporariamente, e no qual é difícil e muitas vezes impossível manter sua cabeça acima da água. Ele sabe que, embora possa ter meios para viver hoje, é muito incerto se os terá amanhã…

 

Veja em: https://jacobin.com.br/2022/08/friedrich-engels-sobre-o-assassinato-social/

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