As doenças do Brasil, seu novo livro, carnavaliza a linguagem e dá voz aos sofrimentos que resultam do colonialismo e do racismo. Nele, o escritor é o “clínico da civilização” e o acerto de contas, é o caminho para curar as feridas da história
Por: Paulo Ferrareze Filho
Em 1929, em Mal-estar na civilização, Freud previu que o desenvolvimento da psicanálise passaria pela elaboração das “patologias das comunidades culturais”.
Durante quase cem anos, fixou-se a ideia de que “o inconsciente guarda os restos não escritos e não elaborados dos traumas históricos […]. O recalcado se transmite e produz efeitos que só depois serão nomeados e inscritos na cultura que os produziu”.[1]
Posta essa incontornável interação entre o social e o psíquico, cogito que psiquismos reunidos encerram em si (psico)patologias sociais. Em uma massa, essas (psico)patologias sociais são conformadas por traumas históricos recalcados que retornam como sintomas geradores de alguma espécie de sofrimento subjetivo.
No livro As doenças do Brasil, Valter Hugo Mãe dá voz aos sofrimentos experimentados a partir do colonialismo e do racismo. Por isso o livro é o testemunho de um recalcado que retorna. É também uma prova de que o fazer literário é uma atividade clínica. E que o escritor é um “médico”, um “clínico da civilização”, como sugeriram Nietzsche e Deleuze. Segundo Roberto Machado,[2] “todo artista é um sintomatologista, já que é possível tratar o mundo como sintoma, e nele buscar os signos de doença, de vida, de cura ou de saúde”.
Hugo Mãe é um artista clínico que problematiza a própria descendência de colonizador. Trabalha como redator de um complexo diagnóstico. E por isso é também um sintomatologista, já que sua arte alberga nuances, traços e sintomas das violências da colonização e do racismo.
Honra é o personagem central da trama. É um indígena adolescente de pele branca que nasceu do estupro do colonizador. Quer matar o pai abusador para restaurar a honra do seu entorno. Eis o modo de Hugo Mãe para diagnosticar a extensão dos efeitos da violência colonial, do subjetivo às cidades. A impressão que o texto deixa é que Honra só cogita matar o pai porque tem nas veias a violência torpe dele. É nesse contexto que Honra mostra o drama subjetivo dos povos originários e africanos, e toda sorte de indignidades pelas quais passaram.
É um pedaço da história subjetiva da mestiçagem brasileira feito a facão e estupro. “No princípio era o estupro”, poderia dizer o evangelho brasileiro.
O sotaque, que mistura português de Portugal e uma hipotética língua indígena, mostra a engenhosidade criativa do escritor. A novidade talvez esteja aí: mais na forma da linguagem do que no conhecido(?) conteúdo da violência colonial. Hugo Mãe carnavaliza a linguagem para recontá-la a partir da boca de quem foi silenciado.
A naturalização do silêncio e da subalternidade dos povos africanos e originários se explica pelo que está na história do livro. Se hoje essa naturalização ainda permanece recalcada mesmo entre as vítimas (vide o caso de Sérgio Camargo, presidente da Fundação Palmares do governo Bolsonaro), é porque ainda não falamos o suficiente sobre colonialismo e racismo. É porque nos falta educação. É porque somos, enfim, mal educados no tema.
Lembro de escutar quando criança, nos anos 1990, frases como: “esse negro é tão bom que deve ter alma branca”. Ou: “os índios da rodoviária são todos vagabundos e pinguços”. Assim, quando alguém diz “denegrir” sem perceber que fala sobre racismo ou posta “save the date” sem perceber o próprio viralatismo, temos indícios do recalcado que retorna do inconsciente brasileiro com esses atos falhos compartilhados.
Se o livro fala das violências do processo colonial, o fato de que tenha vindo a público em 2021 sugere que essas violências não só nos moldaram e nos adoeceram, como ainda nos fazem doer. A xenofobia, por exemplo, é uma “ômicron” que funde colonialismo e racismo. Esse caldo tóxico segue mais borbulhante do que nunca com a ascensão do bolso-nazi-fascismo. E como as palavras se materializam, esse cenário doentio do passado ajuda a explicar, no presente, episódios como a morte a pauladas do congolês Moïse Kabagambe (a quem Sérgio Camargo chamou de vagabundo). Assim como o fato de que a #todosporNotreDame tenha sido maior, mesmo entre brasileiros, do que a #todospelomuseunacional. Afinal, os incêndios em Paris são sempre mais chics.
A chaga também se atualiza perversamente com Bolsonaro pesando quilombolas em arrobas e Mourão chamando negros e indígenas de malandros e indolentes. Bolsonaro é descrito com perfeição por Hugo Mãe: “O animal branco é o animal vazio, fera sem sinal de espírito, máscara vocabular que deita a palavra do mal […]. Assombra a mata, azarando e solicitando a guerra aos que soam. É oposto ao diálogo porque aquilo que entoa, mente”.
No livro, o acerto de contas entre colonizadores e colonizados, restaurando a honra dos humilhados, é cura óbvia apenas na ficção. Se 40 milhões de brasileiros aderem a um discurso que nega a escravidão, ainda é preciso falar sobre colonialismo e racismo.
Para fechar, cito a psicanalista Vera Iaconelli: “O Brasil é um paciente que não vai para a análise, que não deita no divã, que não quer saber da própria história e só vai repetindo os mesmos sintomas sem fim”. O livro de Hugo Mãe é um convite para que o Brasil se deite no divã e elabore seus ódios podres, seus sentimentos de injustiça, seu revanchismo e seu desamor.
Paulo Ferrareze Filho é professor de Psicologia do Direito, faz pesquisa de pós-doutorado em Psicologia Social na USP e é psicanalista em formação.
Veja em: https://outraspalavras.net/poeticas/hugo-mae-no-principio-era-o-estupro/
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