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Inflação e o poder da narrativa

 

Por: Paul Krugman | Créditos da foto: (Kathryn Gamble para The New York Times)

O presidente Biden teve ontem (24) o que eu chamaria ‘um momento humano’. Depois que um correspondente da Fox News perguntou se a inflação seria um passivo político [nas eleições na metade do mandato presidencial], Biden pode ser ouvido murmurando: “Não, é um grande ativo. Mais inflação. Que filho da puta estúpido.”

Falando sério, pode-se culpá-lo?

A questão é por que a inflação está provando ser um passivo político tão grande? A ideia de que os norte-americanos estão economicamente mal porque os aumentos de preços superaram o crescimento dos salários se solidificou no conhecimento convencional. E obviamente isso faz algum sentido. Mas a reação política é desproporcional ao declínio real dos salários reais, e eu diria que os jornalistas estão perdendo uma grande parte da história se não perceberem isso.

Vamos falar sobre a visão de longo prazo de salários e preços.

Aqui está a taxa anual de variação dos salários reais – a taxa de aumento salarial menos a taxa de inflação – para os operários desde o final dos anos 1970:


Variação percentual anual dos salários-hora reais (ou seja descontada a inflação ao consumidor) no longo prazo. Fonte: US Bureau of Labor Statistics. Crédito: FRED (Federal Reserve Economic Data)

Obviamente, houve um grande declínio após o choque do petróleo de 1979. Talvez menos familiar seja o fato de que os salários reais caíram durante grande parte da era Reagan. Em particular, em outubro de 1984 – às vésperas da eleição presidencial – os salários reais eram 1,4% mais baixos do que no ano anterior. Em outubro de 1988, eles caíram 0,6%. No entanto, os republicanos venceram ambas as eleições por grandes margens, falando eloquentemente da economia.

E a nossa situação atual? Os salários mais usados têm estado bastante confusos durante a pandemia, por causa dos efeitos de composição. Por exemplo, os salários médios dispararam em 2020, não porque os trabalhadores estavam recebendo grandes aumentos, mas porque os trabalhadores com baixos salários foram demitidos em números desproporcionais. Portanto, precisamos analisar as estimativas que devem corrigir esses efeitos de composição, como o rastreador de salários do Fed de Atlanta:

Os salários estão subindo


Os salários estão subindo. Média móvel trimestral do salário médio por hora. Fonte: US Bureau of Labor Statistics. Crédito: Federal Reserve Bank of Atlanta

Este rastreador mostra uma forte aceleração nos salários; o mesmo acontece com o Índice de Custo de Emprego oficial, embora esse índice ainda não tenha sido atualizado para refletir os últimos meses.

Ainda assim, não há dúvida de que a inflação superou os salários no ano passado. Por outro lado, a inflação foi baixa em 2020, medida tanto pelo Índice de Preços ao Consumidor quanto pela medida preferida do Fed, o deflator de gastos de consumo pessoal:

Infelizmente, os preços também estão subindo


Infelizmente, os preços também estão subindo. A linha azul mostra a variação de gastos com consumo pessoal e a vermelha mostra um índice de preços para consumidores urbanos. Crédito: FRED (Federal Reserve Economic Data)

Assim, os salários reais aumentaram no ano passado. Em uma base de dois anos, eles provavelmente caíram, mas não muito. Ao mesmo tempo, tivemos um crescimento estelar de empregos – e, como eu disse, a combinação de salários reais modestamente em declínio com um mercado de trabalho forte na verdade foi um ponto muito positivo na avaliação de presidentes anteriores.

Desta vez, no entanto, o sentimento do consumidor é extremamente negativo – quase tão negativo quanto no final da década de 1970, quando os salários reais estavam realmente despencando e o desemprego estava aumentando rapidamente:

Os consumidores dizem que a situação é horrível


O gráfico descreve o sentimento dos consumidores. Fonte: Universidade de Michigan. Crédito: FRED (Federal Reserve Economic Data)

O que está acontecendo? Certamente é o poder da narrativa. Como muitos de nós notamos, os norte-americanos estão muito deprimidos com a economia nacional, mas relativamente otimistas sobre sua própria situação financeira pessoal:

Mas está horrível apenas para os outros


Mas está horrível apenas para os outros. O gráfico descreve o sentimento para a economia nacional (linha azul), para as vendas ao consumidor (linha laranja) e para as finanças pessoais (linha vermelha). Crédito: Langer Research Associates

Ou seja, sua experiência pessoal é muito boa, mas eles ouviram que as coisas são terríveis para outras pessoas.

Muito disso é partidarismo. Democratas e republicanos costumavam ter avaliações semelhantes da economia, independentemente de quem fosse o presidente. Agora, os republicanos avaliam que a economia está pior do que em junho de 1980, quando a inflação era de 14% e os salários reais caíam 6% ao ano.

Parte disso também tem relação com a forma como a mídia cobre a economia. Eu sei que os jornalistas odeiam ouvir isso, mas se a forma como reportamos os eventos não afeta a percepção do público, qual é o sentido do que estamos fazendo? E, por algum motivo, a inflação de Biden, e não o grande aumento no emprego de Biden, passou a dominar a cobertura jornalística.

Não estou argumentando que a inflação não é um problema, nem estou fazendo o papel de Phil Gramm e chamando os Estados Unidos de “nação de chorões”. Estou dizendo que, a reação preponderantemente negativa do público a uma conjuntura econômica que pelos padrões históricos seria, na pior das hipóteses, considerada notícia mista (com aspectos positivos e negativos), é uma história importante em si e merece tanto alguma cobertura quanto, talvez, autorreflexão por parte daqueles que reportam sobre o assunto.

 

Veja em: https://www.cartamaior.com.br/?/Editoria/Pelo-Mundo/Inflacao-e-o-poder-da-narrativa/6/52562

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