Em Osso, de Erika Balbino, um caleidoscópio de histórias da periferia paulistana — que podem ou não se cruzar. Para não virarem pó, frente ao feroz (e machista) mundo do trabalho, as mulheres são impelidas a uma resistência fenix permanente
Por: Eleilson Leite | Imagem: Geórgia Lobo
Compartilho a leitura que fiz do livro Osso – poder e permissão, de Erika Balbino, obra publicada pela Editora Cosmos em 2017. Erika é formada em cinema e vídeo e é diretora da empresa de comunicação Baobá, Comunicação, Cultura e Conteúdo, nome que revela sua predileção por aliterações, como a do subtítulo de sua obra. Mulher negra, empresária bem posicionada no ramo em que atua, fez no livro um tributo à quebrada em que viveu, uma vila pobre situada num bairro de classe média na zona sul de São Paulo. Um território que congrega os bairros do Bosque da Saúde, Saúde e Praça da Árvore, região atravessada pela avenida Abrahão de Moraes que tem por continuação a rodovia dos Imigrantes por meio da qual se chega no litoral, passando por bairros como Jabaquara, Jardim Miriam e pela cidade de Diadema, no ABCD, um entorno que forma o contexto periférico no qual as histórias do livro se passam.
Exatamente no ponto em que a referida avenida se transforma em rodovia há uma favela que, para quem conhece a região como eu, acaba fixando a imagem dela para se situar no espaço especificado pela autora. A essa comunidade ela dá o nome de Canhão que me remete à Favela do Canão que ficou conhecida pelo rapper Sabotage que lá morou por muitos anos. Entretanto, tal favela fica na avenida Roberto Marinho, no Brooklin, também zona sul, uma vila pobre igualmente encravada num bairro ainda mais rico.
Curiosamente, Sabotage morava na favela que inspirou a fictícia Canhão na época em que foi assassinado em janeiro de 2002. Foi alvejado a tiros por criminosos com os quais tinha desavença. Seu corpo cravado de balas padeceu junto a um ponto de ônibus exatamente na avenida Abrahão de Moraes, palco de uma cena importante do livro. Uma história que poderia muito bem ser mencionada na obra como fato ou ficção, uma vez que o livro foi escrito em 2006 (ficou engavetado por 11 anos) e conta histórias que se passam na virada dos anos 90 para 2000. Corrobora minha indagação o fato de a autora citar o Racionais MC`s, GOG e outros expoentes da cultura hip hop que permeiam todo o livro, assim como outras manifestações da cultura negra, como as religiões de matriz africana, o samba e a capoeira. Essa observação me parece importante não para evidenciar uma lacuna no livro, mas para agregar a ele um personagem muito emblemático para a região, elevando assim o panteão de figuras notáveis e anônimas às quais Erika presta uma justa e comovente homenagem.
A autora escreveu Osso com muita emoção, revirando sentimentos e vísceras. Ela expressa isso num dos capítulos finais, ainda dentro do escopo da história, inserindo-se, dessa forma, como uma personagem entre as tantas que o livro expõe: “concluir essa narrativa é um desespero tremendo, uma agonia. Obriga-me a pôr um fim, um suplício. Ou, pior, será dar uma continuidade para as histórias que escutei, para as pessoas das quais falei?”. E Érika falou de muita gente.
Cada capítulo, um personagem, alguns voltam em outros capítulos, outros somem e aprecem mais adiante em conexões, as vezes prováveis, outras nem tanto. Alguns, porém não estabelecem conexão alguma com os demais e estão lá para que a autora desenvolva a reflexão em torno do tema que persegue no livro: poder e permissão. Assim é Raul que abre e encerra o livro. Uma pessoa aparentemente comum, um cidadão periférico na faixa dos trinta anos, engenheiro desempregado as voltas com um drama existencial e que do alto de um muro exerce sua dúvida: viver ou não viver. Um sujeito solitário que tem como companheira fiel apenas a Francisca, sua cadela que guarda a senha que ajuda a entender o título e o subtítulo da obra.
O livro de Érika fala de 27 pessoas, 14 mulheres e 13 homens. O equilíbrio de gênero seria completo se considerarmos que Tebas, que dá título a um dos capítulos, é um menino que ainda está em gestação. Essa gama de personagens forma uma paleta demasiadamente ampla provocando no leitor uma ansiedade incômoda quanto à solução que ela dará para cruzar tamanha quantidade de histórias. O rapper GOG tentou juntar todo mundo no texto que faz para o prefácio, mas se atrapalhou na mandala de histórias pessoais, porém, seu texto resultou numa boa solução de composição poética. Para além das vidas, há espaços na comunidade nos quais alguns se conectam: o Bar do Seu Luís, o Terreiro de Umbanda e, principalmente, a Escola de Samba chamada por ela de Barracuda, mas que se refere à Barroca Zona Sul, cuja quadra ficou instalada por muitos anos, sob um amplo viaduto no cruzamento da rodovia dos Imigrantes com a avenida dos Bandeirantes.
A estratégia de narrativas fragmentadas prejudica a unidade do livro. Mas o fluxo de entra e sai de personagens tem um fio condutor que é uma questão filosófica na verdade expressa no subtítulo do livro, como já foi dito. A autora poderia acrescentar a metáfora do pó também, ampliando a aliteração em p: pó, poder e permissão. Sobre o pó, a autora recorre ao Pe. Antonio Vieira, inserindo como capítulo um trecho do Sermão da Quarta-feira de Cinzas, elevando a densidade filosófica do livro. Essa dimensão metafísica da obra parte de uma formulação do filósofo austríaco Wittgenstein que a autora cita no texto de nota no final do livro: “(…) da antiga cultura restará apenas um monte de escombros, um monte de cinzas, mas haverá espíritos que flutuarão sobre essas cinzas”, uma reflexão que dialoga com Pe. Antonio Vieira: “os vivos são o pó levantado pelo vento, os mortos são o pó caído”. Mas o padre não ousou, como o filósofo, falar da vida dos espíritos, o Genius Loci, o espírito do lugar que para a autora é fundamental.
Erika poderia ter optado pelo recurso usado por Paulo Lins em Cidade de Deus. Para falar da formação de um bairro periférico, aquele autor estruturou a narrativa em três personagens em torno dos quais muitas outras histórias se entrelaçavam: Inferninho, Pardalzinho e Zé Miúdo (Cabeleira, Bené e Zé Pequeno, na primeira edição). Lins se baseou em Fogo Morto para usar essa estrutura. Na obra clássica de José Lins do Rego, os três personagens são: Mestre José Amaro, [o engenho de] Seu Lula e Capitão Vitorino. O objetivo do autor paraibano também era o de falar de um território, de um microcosmo, um modo de vida específico, no caso, de um engenho de cana em sua fase decadente. Se Erika adotasse o mesmo modelo, ela teria, a meu ver, três personagens: Elias, Rita e Herculano (ou Jamilson), pois são eles que percorrem todo o livro e que conectam várias das outras histórias.
Do ponto de vista estritamente literário, talvez não tenha sido uma boa solução destacar quase trinta personagens, mas para o que ela pretendia com o livro, deu certo. Erika consegue com Osso mapear trajetórias de vida que caracterizam bem o contexto das periferias urbanas de São Paulo e do Brasil, pois, como diz o GOG, sampleado pelos Racionais: “periferia é periferia em qualquer lugar”. Formada em cinema, talvez ela tenha seguido a linha de roteiro tornando seu livro muito promissor para uma adaptação como filme a exemplo de Cidade de Deus.
As histórias contadas como cenas de ação como o flerte de um jovem (Herculano) com uma garota (Vitória) na quadra da escola de samba num clima tenso, pois o rapaz está na iminência de um acerto de contas, é cinematográfico, como são os diálogos entre Elias e Quero Quero num reencontro na padoca depois de um deles ter passado um tempo enclausurado em virtude de seu currículo no crime. Erika também é habilidosa na representação de uma festinha de criança numa casa de burguês ou na perseguição que duas mulheres fazem para capturar um tarado que ataca uma delas no Metrô. Tais histórias, porém, são intercaladas com outras de narrativas mais mornas com personagens desconectados do contexto, embora interessantes, dando um certo desequilíbrio ao livro, porém, sem comprometer sua envergadura literária.
As mulheres e o mundo do trabalho
A chave de leitura que faço das obras de literatura periférica é conduzida pela busca de estruturas de sentimento que são as recorrências de subjetividades comuns em diferentes personagens que denotam uma ideia coletiva ou um comportamento generalizado, uma visão de mundo compartilhada. Seguindo essa trilha me chamou a atenção as mulheres do livro e sua relação com o trabalho. Com exceção de Amélia, que é uma criança paraplégica, muito enigmática por sinal, quase todas as demais têm na sua ocupação profissional um dado relevante de sua trajetória e destino, dimensão pouco presente entre os homens. Arrisco dizer que apenas dois dos machos teriam no trabalho um dado estruturante de suas vidas: Elias que trabalha num buffet e o Seu Luiz, mas este último não tem sua vida destrinchada, sua ocupação laboral denota da condição de dono do bar da comunidade. Poderia acrescentar também o Sidão, sambista que é identificado como metalúrgico, mas seu trabalho em nada interfere na sua passagem no livro que é um tanto surreal.
Já as mulheres trabalham muito e de várias formas. Rita é funcionária de um mercado; Maria do Carmo é empregada doméstica assim como Clementina que por sua vez trabalha na casa de Estela que é profissional do sexo. Vitória é manicure como Sheilá que é mulher trans e é artista também. Vitória atua como educadora de capoeira e Ana Cristina é bibliotecária. Já Roberta e Alice, funcionárias de alto escalão de grandes empresas, só entraram no livro para exporem seus dramas pela demissão injusta que sofreram. Trabalhadoras de ampla experiência, tiveram que ceder seus postos à profissionais mais jovens. Só quem não trabalha é a sentimental Glória e a burguesa da Marina. A primeira, porém, se dedica ao marido João que é trabalhador da construção civil e a segunda é patroa de vários empregados e vive da grana do marido empresário com quem tem um casamento de fachada.
É notável, por outro lado, o quanto o trabalho dessas mulheres é marcado pela adversidade. Rita sofre assédio do gerente que, não tendo êxito nas suas investidas, faz da vida da funcionária um inferno. Estela vive o conflito moral de sua profissão e da falta de escrúpulos de seus clientes endinheirados. Vitória tem dificuldade de se afirmar como educadora de capoeira por ser branca enquanto Sheilá sofre discriminação por sua identidade de gênero e orientação sexual. Roberta e Alice pagaram o preço da obsolescência profissional programada que recai perversamente sobre as mulheres. Clementina e Maria do Carmo, as duas empregadas domésticas, não tinham problemas com suas patroas, mas tiveram suas vidas marcadas pela tragédia. Em certa passagem do livro a autora, como narradora onisciente, dá a sentença para o desatino dessas mulheres: “talvez seja isso a misericórdia divina. A pensão alimentícia que Deus nos paga por sua ausência”.
A bibliotecária Ana Cristina, uma daquelas personagens desconexas, cuja trajetória é abordada no livro em virtude do sofrimento que lhe pune devido ao fim de um longo relacionamento, acaba por, na sua espiral decrescente rumo ao abismo, expressar a metáfora do pó tão recorrente na obra: “Do pó que carrego nas solas dos meus sapatos caros. Pó das ruas do Canhão. Jardim da nossa infância distante. Pó da minha solidão”. Mas, das cinzas renascem as mulheres de Érika, confirmando a tese do filósofo austríaco que pode ser traduzida no mito que virou clichê, mas que não perdeu a força. Fizeram-se Fênix, especialmente Rita, Estela, Vitória e Sheilá. Só a vida dessas quatro já faria do livro de Balbino um ótimo motivo para lê-lo. Mas tem muito mais.
O livro de Erika Balbino retrata a saga dos que vivem na margem: “o povo que traz a sua poeira nos olhos e a água da chuva na barra da calça”. Ou como diz Caetano e Gil no rap O Haiti é aqui, citado no livro: “A grandeza épica de um povo em povo em formação”. O escritor argentino Júlio Cortazar disse certa vez que romance é um filme (e o conto uma fotografia). Osso, poder e permissão confirma essa ideia. Um livro que pede, urgentemente, para ser lido e filmado.
Veja em: https://outraspalavras.net/poeticas/espiritos-que-flutuam-sobreas-cinzas/
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