Um livro, duas poetas: primas, periféricas, raízes espelhadas. Forjadas nos saraus, elas cantam a ancestralidade negra e os lutos represados. Uma, através do vaivém dos trens e dos rolês; outra, no desespero e delírios da introspecção
Por: Eleilson Leite | Foto: Custódio Coimbra / Agência O Globo. Grafite em Santa Teresa. Rio de Janeiro.
Compartilho neste texto a leitura que fiz de Pilares: raízes espelhadas (edição independente, 2019), um livro duplo: de um lado Jessica Marcele e de outro Jaque Alvez. As semelhanças entre as duas autoras são tantas que justificam o título: mesmas raízes e trajetórias comuns como se uma fosse uma, espelho da outra. Primas, nasceram no mesmo ano (1994) numa família negra da Zona Leste de São Paulo com enorme presença de mulheres. Ambas seguem morando no mesmo distrito de São Miguel Paulista, mais especificamente o Jardim Lapena e outros bairros que ficam no território demarcado de um lado pela linha de trem, e de outro pela Rodovia Ayrton Senna. As duas são atrizes, ativistas culturais e uma delas, Jéssica, é produtora profissional. As autoras se formaram poetas nos saraus e, principalmente, nos slams que tomaram conta das periferias nos últimos 10 anos, especialmente no lado leste da metrópole.
Tanta identificação acaba por chamar a atenção para as diferenças. Jaque é assistente social e Jéssica, como foi dito, é produtora cultural. O trabalho é um traço importante de distinção entre ambas. Uma por se referir ao trampo inúmeras vezes (Jessica) e a outra por não citar sua profissão, pelo menos nos poemas. A ancestralidade africana e a formação da família matriarcal organiza toda a narrativa da parte de Jéssica no livro, enquanto Jaque faz uma obra autocentrada. Mas a diferença maior está no texto. Enquanto Jéssica faz um livro da porta para fora, no vai e vem do trem, no rolê no bairro, nas festas dos quintais, no trabalho e na história do povo do qual descende, Jaque se fecha em casa, no quarto, no banheiro de onde emite sua poesia introspectiva e perturbadora a ponto de fazer uma advertência a respeito do conteúdo de sua poesia a leitores e leitoras emocionalmente fragilizadas.
O livro de 40 páginas tem apenas 12 poemas; 7 da Jaque e 5 da Jéssica. Porém, trata-se de uma poesia (as vezes prosa poética) altamente densa e complexa que nos faz reler diversas vezes alguns textos para alcançar o nível de elaboração e captar a tensão impregnada nos poemas. O ponto de convergência entre as duas é a morte. Não a morte como elemento histórico e social. É também, mas me refiro à morte que atravessou a família, um luto particular que ambas compartilham com os leitores também de modo distinto.
Enquanto que na parte da Jéssica a morte aparece como tema apenas em um poema com o sugestivo título de “Despedida”, para Jaque a morte é base de 4 de seus 7 textos. Ao tratar do assunto, Jéssica mais uma vez se abre para o mundo e narra os cenários ensolarados e afetuosos que o jovem falecido não mais poderá acessar. Jaque, por sua vez, se dilacera perante a morte do primo. Ambas, porém, dividem entre si, o grito de dor e desespero e o silêncio que o antecede.
Jéssica Marcele
Os cinco poemas de Jéssica, discorrem sobre três temas: a condição de mulher negra, o trabalho na cultura e o luto. Sobre o primeiro tema são três poemas e os demais têm um texto cada. A afirmação da identidade negra aparece primeiro num poema sankofa, cujo título já denota a abordagem: Carta às que vieram antes de mim. A linhagem que a autora defende é toda do matriarcado: dona Nilza e dona Raimunda que, juntas, somam 17 filhas e 19 netas. Parafraseando Lenine, ela diz: “a vida é tão rara, e pedir um pouco mais de paciência é tortura…”.
Jéssica enfatiza o sofrimento das mulheres pretas, mas enaltece sua generosidade: “como vocês conseguem abraçar o mundo com os mesmos braços que carregam a sacola da feira, descendo e subindo ladeira?”. Mas a jovem poeta se desespera quando toma consciência de que os ciclos históricos se abrem e se fecham sem que a realidade mude. Ela usa imagens de um hamster que corre sem sair do lugar e de um “boomerang que vai o e vem o tempo todo”. Parece que a mulher negra não cabe no mundo no qual peleja por sua existência. Essa inadequação me remete ao Mito do Sísifo aquele que rola a pedra ladeira acima até que a rocha despenca e ele sobe novamente num movimento tortuoso e sem fim.
No poema Coloniza – dor, Jéssica identifica o algoz do martírio do povo preto. O uso do hífen é um recurso para enfatizar o sofrimento que a colonização brasileira causou aos seus antepassados. Silenciamento: 519 anos; o branco europeu como colonizador. Da chibata da escravidão até os dias atuais, ela refaz a trilha do genocídio. Cita o impeachment sem se referir à presidenta deposta em 2016. Recupera a trajetória de mulher preta; lírico, penetra no seu universo íntimo: seu quarto. Ao falar de si mesma, faz um uso intrigante da imagem da terra em diferentes formatos: barro, poeira, areia. Cita seu corre como trabalhadora da cultura: “ainda vou pagar minhas contas com poesia” e assim abre uma possibilidade de emancipação para, quem sabe, romper o círculo tortuoso da subalternidade que pesa sobre seu povo.
Já em Muito preta pra ser branca, ela discute o colorismo. Um poema de slam já anunciado no primeiro verso: “me disseram que não tenho ‘flow’, an?/Só eu ouvi os ‘pow, pow, pow’ no slam?”. Em primeira pessoa, defende seu corre: “enquanto ceis gravam stories/ eu tô fazendo história”. Fala da família na chave do matriarcado. Cita a avó e uma legião de tias. Defende a missão da poeta: “e salvar vidas com minha poesia é a meta”.
O presencial e o virtual encontra uma imagem periférica perfeita: “das plataformas de trem/ pras plataformas de streaming” e o livro é de 2019, antes portanto, da pandemia que levou os artistas para o online. O colorismo aparece na metade do poema. Ela diz que foge da polêmica, mas tem consciência de sua identidade: “e quem eu vejo no espelho/te mostro na caneta”. Não nega sua ascendência europeia, mas é a ancestralidade africana que lhe define: “reconheço meu lugar de fala/ e hoje ninguém me cala”.
O trabalho como atriz, poeta e produtora aparece em quase todos os poemas, mas em Sobre – viver de arte, ele é o tema. Aqui a autora mais uma vez usa com habilidade o hífen para duplicar o sentido de uma palavra. Separando a palavra “sobreviver” ela cria uma preposição que, por sua vez, atribui à palavra viver um sentido de lida para além da dimensão de existência que lhe é intrínseca. Com esse recurso ortográfico, ela apresenta um poema sobre a profissão de produtora no corre da cultura na quebrada. Discorre mais uma vez na chave da missão: “dar orgulho a quem torce por mim”. Por certo é sua família que tanto ela reverencia. Fala da descoberta do sarau como espaço de aprendizado e descoberta de si mesma. Concretizou o sonho de ser empreendedora: “criamos nossa produtora”. O uso do plural aqui denota ser um projeto coletivo, embora essa coletividade não esteja evidente nos versos do poema.
Jéssica contesta os que não entende o trabalho de uma produtora cultural: “contato, convite, fechamento/roteiro, gravação/ pro nosso ganha pão tem que ter muito argumento!”. Realizada e feliz com o que faz, apesar dos perrengues, ela lamenta que outros profissionais do seu ramo lidem com a correria do trampo como um sofrimento, sem entender o legado que estão produzindo. Na penúltima estrofe do poema ela faz uma imagem muito apropriada para os que, como ela, faz do sonho seu sustento: “com a mochila nas costas e as rimas na mão/ saio correndo e perco mais um busão e o trenzão tão lotado de/ gente quanto minha mente:/como é louco ser independente!”
Despedida é o poema que fecha a sua parte no livro. Podemos classificar como um conto em prosa poética. Um texto que destoa dos demais pelo tom fúnebre ao qual o leitor é induzido pelo título, a epígrafe e pelos versos que aparecem logo no início do poema: “Há sete dias atrás, você fazia o mesmo percurso de muitos/ [chamava sua mãe de canto, dizia que a amava/ Parece que já sabia o que aconteceria”. Novamente a narrativa é organizada em torno do trabalho e o deslocamento de trem para se chegar até o local da labuta: “mais um dia se passa/ pessoas voltam ao trabalho, faculdade/ seguem sua rotina”.
E no embalo do trem, a narradora expressa sua tristeza ao ver essa rotina de gestos e abraços, “coisas que você não pode mais fazer”. E conclui o texto confirmando o que está anunciado desde o título: “o rosto vazio/ e aquele dia sombrio/ em que pra debaixo da terra pra sempre partiu”. O poema lápide é dedicado a cinco pessoas, quatro delas homens que enfim aparecem no livro matriarcal de Jéssica, todos mortos: Caio, Daniel, Douglas e Marcelinho.
Jaque Alves
A parte de Jaque no livro já vem com uma advertência sobre o risco de efeitos emocionais que podem desestabilizar leitores mais fragilizados. Para isso, a autora indica atendimento público ou particular e dá até o telefone de um CAPS (Centro de Apoio Psicossocial). Essa recomendação contrasta com o texto de apresentação da MC Martina que diz que os poemas do livro está escrito de “uma forma tão gostosa….”. E de fato, os versos de Jaque não são recomendados a pessoas com tendências depressivas. Dos sete textos, três são delírios de uma alma perturbada e quatro falam de morte, sendo dois em sentido menos explícito e dois fúnebres. E todos são tão bem escritos, que podem te levar ao abismo existencial da poeta.
Em Insônia, temos um poema tenso e veloz. A autora parece estar diante do espelho pregando para si própria: “Queres mudança?/ leve teu peito a lança”. Expressa assim uma busca angustiada por uma virada na vida, uma tomada de consciência e de atitude: “Libere suas desgraças/ só não minta agora/ pois quando menos esperas/ já passou tua hora/ de arrancar suas mordaças”. Se este poema tem alguma pulsão de vida em meio à turbulência existencial, Fraturas internas, é uma espiral de melancolia no qual expressa um ceticismo sobre a vida. A poeta entrega os pontos: “acabem comigo! ( …)/ Mas não deixem esse corpo vivo”. Adota um tom de despedida: “obrigada pelos seus ensinamentos/aprendi detalhadamente sobre os tormentos (…)”. Jaque termina o poema com um verso que revela uma dúvida tenebrosa: “(…) eu entrei nesse voo, mas não sei se aguento ficar por muito tempo/ a bordo desta viagem”
Em Corpor’Ação, como Jéssica, Jaque cria um neologismo no título a fim de atribuir duplo significa à palavra. Mas “corporação”, um substantivo associado ao mundo do trabalho, não tem muito sentido na construção poética. A autora quis, me parece, é criar uma palavra que expressasse o que ela diz no verso: “coloco meu corpo no mundo em ação”. É um poema típico de Slam e para ser falado com contundência. Começa introspectivo: “através do espelho/ enxergo o reflexo das multifacetas/ que refletem nas minhas múltiplas gavetas/ cheias de roupas velhas e problemas velhos”.
A autora eleva o tom desesperado do poema conforme se aproxima do final, cujo ápice do delírio é narrado em caixa alta: “QUERO SUMIR!/NÃO MAIS EXISTIR!/ACABAR COM ESSA DESGRAÇA/ ATÉ O ULTIMO INSTANTE E SUCUMBIR”. Nos versos finais, o tom fica mais sombrio: “no último vinho do cálice/ o sangue é ardente/ e suga até a última gota do vale”. O poema termina desafiando os que chegaram até o final do texto sem cortar os pulsos: “gostaste da porra da minha métrica/ é que você ainda não viu/ o vômito catastrófico que sai da minha dialética”.
O flerte com a morte começa com Setembro amarelo. O título já dá uma pista muito explícita do teor do poema, uma vez que faz referência à campanha que acontece no mês de setembro para prevenção do suicídio. O poema discorre sobre a aflição de uma mulher atormentada por uma dor psicológica: “(…) essa mesma dor/ que me acompanha desde os 15 anos/ essa maldita síndrome do pânico/ ansiedade ou depressão/ eu não sei ao certo qual a definição”. O surto da mulher é narrado no compasso do sangue que sai de seu útero por meio da menstruação: “(…) escorrendo sobre minha vagina/ descendo pelas minhas pernas/ e caindo dentro de um vaso (…)”. O sangue derramado lhe provoca uma dúvida angustiante para a qual ela não tem resposta, mas tem a certeza de que será algo de que nunca se libertará, mesmo que a vida ela negar. E em face de tal sofrimento ela declara amor eterno ao filho que poderia ter saído de seu útero. Ou saiu?
Já em Asas de coruja, temos um poema melancólico que narra a morte de um primo que parece ter se suicidado: “queria que fosse mentira/ a corda enrolada no pescoço”. Diante da morte do parente querido, ela relembra o convívio fraterno que tinham. Diante, porém, do ato fúnebre, ela se desespera: “quase me joguei junto no buraco/ pra esquentar sua pele na minha/ e o vento que levou tudo embora?” Nos versos finais do poema, ela anuncia: “só queria te dizer uma coisa: / nos encontramos na aproxima esquina/ lá sim, eu sei, que será minha real despedida”. Talvez ela esteja dialogando com o poema de Jéssica que também fala de morte e tem “despedida” como título. Primas que são, podem estar se referindo a mesma pessoa. Também faz conexão com o livro de Jéssica o poema Flor Maria que é dedicado a Maria Malé, única mulher entre os cinco mortos citados pela prima no poema fúnebre (Despedida).
Para encerrar o livro, Jaque nos oferece Corpo (in) visível que é um poema que fala de um corpo que, se não está morto fisicamente, está simbolicamente: “parece perdido, estagnado/ como se estivesse anestesiado/ sem chance de ser acordado”. Um corpo que “fede carniça/ completamente para consumo televisivo”. Uma versão menos alegórica do samba De frente pro crime, de João Bosco e Aldir Blanc: “Tá lá um corpo estendido no chão…”. Mas não fica nítido se de fato tal corpo está falecido ou desfalecido. O último verso acentua a dúvida: “mas não se engane, a maré sempre volta”.
Silêncio e silenciamento
Na canção que acabo de citar, tem uma passagem que diz: “um silêncio servindo de amém”. Por meio desse verso que encerra a primeira estrofe da letra, os autores compõem o cenário fúnebre para um corpo que jaz no meio-fio na frente de um bar no subúrbio carioca. É o momento em que há algum indício solene perante o falecer de alguém, que, devido ao anonimato e abandono teve um jornal como caixão. Depois a prece silenciosa dá lugar a um ritual carnavalesco em torno do corpo numa alegoria extravagante e inusitada que serve como um grito, mas que é revelador do quanto a morte é algo naturalizado na sociedade brasileira.
O Brasil carrega na sua história o genocídio dos povos indígena e negro, uma população que continua sendo alvo da matança militar e paramilitar e que forma a maior parte das vítimas dos mais de 40 mil homicídios registrados em 2021. É desse povo que Jéssica e Jaque falam no livro que dividem. Um povo do qual fazem parte: preto, pobre e periférico. É por eles que elas gritam quando narram o sofrimento pela morte de um jovem da família, cujas circunstâncias não são explicitadas e nem vem ao caso. A poesia delas diz como foi que o fato ocorreu e um leitor atento saberá decifrar nas entrelinhas dos versos. O fato é que o parente delas não voltará mais a ver o fluxo do trem que corta a quebrada onde cresceu e que elas tanto amam. O primo delas é mais um jovem negro que confirma as estatísticas.
O silêncio que antecede o grito é a dor individual e coletiva, histórica e contemporânea. Jaque e Jéssica falam desse silêncio que serve de prece no embalo do luto e que também é um sentimento represado na iminência de explodir. Por isso elas falam do silenciamento que é uma violência que pune o povo oprimido das periferias. O que essas autoras e toda uma geração de escritoras e escritores fazem nos saraus e slams é gritar para romper as comportas do silêncio histórico de um povo que não quer se calar. Parafraseando Renato Russo, Pilares: raízes espelhadas é um livro que grita com a força proporcional a dor que as autoras sentem e esse alarido há de acordar não só as suas quebradas, mas a periferia inteira.
Veja em: https://outraspalavras.net/poeticas/literatura-o-silencio-que-antecede-o-grito/
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